O som mavioso das nossas palavras

Jornalismo comprometido com a verdade e o afeto, resulta numa entrega muito necessária para a sociedade bombardeada de fake news (Foto: Sascha Steinach / DPA / AFP)

Como ganhar dinheiro dizendo apenas o que as pessoas querem ouvir

Por Leo Aversa | ODS 12 • Publicada em 17 de abril de 2017 - 17:27 • Atualizada em 18 de abril de 2017 - 12:53

Jornalismo comprometido com a verdade e o afeto, resulta numa entrega muito necessária para a sociedade bombardeada de fake news (Foto: Sascha Steinach / DPA / AFP)
As colunas proliferam no mar de preguiça do leitor para ler e interpretar as notícias. Foto Sascha Steinach /DPA
As colunas proliferam no mar de preguiça do leitor para ler e interpretar as notícias. Foto Sascha Steinach /DPA

Eugênio Castro Prado é um cara de direita. Um liberal moderno, como ele mesmo prefere. Abre o seu jornal de domingo para saber o que anda na política. Vai nas colunas, pra não perder tempo. Uma defende o mercado, o lucro etc, mas, de repente, começa com uma conversa muito estranha sobre desigualdade e justiça social. Isso não, se revolta Eugênio. Vai na outra e ela também está do seu lado no mercado mas quer a expulsão de imigrantes, feministas e negros do país. Hummm…talvez isso não acabe bem, reflete, ponderado, o liberal moderno. Essa gente tá toda errada, conclui.

Toda a noite o software seleciona os fatos mais relevantes do dia anterior e os adapta ao gosto de cada leitor, sempre com o tom mastigadinho e indignado. Uma opinião customizada, no vocabulário contemporâneo.

A esquerda sempre foi o lado de Elisa Manzi. “Hay que endurecer…”, diz o pôster desbotado que guarda atrás do armário. Quando ela vai no blog progressista atrás das notícias que a grande imprensa esconde dá de cara com um artigo defendendo uma tal de “mudança de paradigma”. Que revisionismo absurdo, pensa Elisa. Outro artigo pede a estatização de toda atividade econômica e o envio dos burgueses para campos de reeducação na Amazônia. É uma boa ideia mas talvez não funcione. Esse povo é meio burro, conclui.

O que está havendo?

As colunas de política proliferam no mar de preguiça do leitor para ler as notícias. E, preguiça master, de interpretá-las: me expliquem o que tá acontecendo, clama o leitor estatelado no sofazão enquanto procura uma série nova no Netflix. Jornais, revistas e blogs investem em colunistas, que mastigam os acontecimentos com aquele tempero de indignação seletiva tão ao gosto do público atual. O problema é que, por mais antenado (ou puxa-saco) que um colunista seja, a mediunidade ainda não está ao seu alcance.

Como já percebemos, desde as tretas de 2013, as pessoas querem ver, ler e ouvir exatamente o que já têm na cabeça. Nem uma vírgula a mais ou a menos.

As pessoas querem ver, ler e ouvir exatamente o que já têm na cabeça. Nem uma vírgula a mais ou a menos. Foto Eva Hambach/AFP
As pessoas querem ver, ler e ouvir exatamente o que já têm na cabeça. Nem uma vírgula a mais ou a menos. Foto: Eva Hambach/AFP

Aí está a oportunidade. O próximo passo.

Preciso registrar essa ideia.

É fácil descobrir como uma pessoa pensa. Não precisa de pesquisa ou qualquer esforço maior. Basta ir nas redes sociais e ler meia dúzia de posts. E se o cara não escreve nada, é um isentão de quatro costados? Basta ver o que ele curte e, principalmente, o que ele não curte. Em segundos, um computador compõe um perfil de personalidade de fazer psicanalistas e astrólogos babarem de inveja.

Surge então um novo colunista online. Vamos chamá-lo de Janval Pereitas. Uma campanha de marketing mostra como Janval é destemido e audaz, como diz a verdade doa a quem doer, expõe os fatos, mostra como “os políticos” agem nos bastidores. Os publicitários podem até criar uma biografia para Pereitas, um “storytelling”, mostrando seu passado de repórter premiado, correspondente de guerras longínquas e autor de diversos livros censurados pelos “poderosos”.

Para receber a coluna do Janval você só precisa se inscrever. Pelo Facebook, é claro.

Já existem softwares que produzem matérias jornalísticas, a questão é só adaptar essa produção ao gosto do freguês. Para Janval, coisa rápida.

Toda a noite o software seleciona os fatos mais relevantes do dia anterior e os adapta ao gosto de cada leitor, sempre com o tom mastigadinho e indignado de Janval Pereitas. Uma opinião customizada, no vocabulário contemporâneo.

A reforma da Previdência chega ao Congresso, por exemplo.

Eugênio está tomando seu café da manhã com sucrilhos enquanto procura avidamente a coluna do Janval no laptop. Ela nunca decepciona. “A reforma permitirá ao país chegar ao primeiro mundo”. O liberal moderno sorri, Pereitas continua: “será um absurdo se os políticos não aprovarem uma reforma fundamental para nossa economia. O brasileiro, acostumado à indolência de Lula e Dilma, precisa se adaptar às leis de mercado, ao mundo moderno, e no mundo moderno todos têm que deixar a preguiça de lado e trabalhar mais.” Castro Prado exulta: esse Janval não erra uma.

No iPad de Elisa toca o alerta: a coluna já está disponível. Ela corre para ler: “Aposentadoria em risco”. Ainda bem que existe o Janval para dizer a verdade, pensa Elisa. “Mais uma vez os trabalhadores têm seus direitos ameaçados por esses políticos corruptos e fisiológicos, frutos da oligarquia reacionária que comanda o país há quinhentos anos”. Elisa sorri satisfeita: essa coluna acerta todas.

Quando fui registrar minha ideia de colunista virtual descobri que já tinham feito isso.

Há algum tempo.

Leo Aversa

Leo Aversa fotografa profissionalmente desde 1988, tendo ganho alguns prêmios e perdido vários outros. É formado em jornalismo pela ECO/UFRJ mas não faz ideia de onde guardou o diploma. Sua especialidade em fotografia é o retrato, onde pode exercer seu particular talento como domador de leões e encantador de serpentes, mas também gosta de fotografar viagens, especialmente lugares exóticos e perigosos como Somália, Coreia do Norte e Beto Carrero World. É tricolor, hipocondríaco e pai do Martín.

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