O reino dos brechós das causas nobres

Loja de livros da ONG Oxfam, em Londres. O mercado de usados no Reino Unido movimenta cerca de R$ 10 bilhões. Foto Divulgação

As lições da Inglaterra para um mundo cada vez mais consumista e o que a China pode ter a ver com isso

Por Vivian Oswald | ODS 1ODS 12ODS 17 • Publicada em 21 de abril de 2019 - 10:44 • Atualizada em 21 de abril de 2019 - 15:49

Loja de livros da ONG Oxfam, em Londres. O mercado de usados no Reino Unido movimenta cerca de R$ 10 bilhões. Foto Divulgação
Loja de livros da ONG Oxfam, em Londres. O mercado de usados no Reino Unido movimenta cerca de R$ 10 bilhões. Foto Divulgação
Loja de livros da ONG Oxfam, em Londres. O mercado de usados no Reino Unido movimenta cerca de R$ 10 bilhões. Foto Divulgação

Convivi com uma pilha de 15 livros mal equilibrados ao lado da porta do meu escritório por cinco meses desde que estou de volta a Londres. Tive de refazê-la algumas vezes, pois, de tão próxima da passagem, não resistiu a encontrões meus e do cachorro. Estava ali para que eu não me esquecesse de doar os volumes pesados que carrego comigo há pouco mais de duas décadas e cinco países. Tinha decidido que os deixaria partir logo que cheguei. Mesmo assim, ainda resisti. Eram dicionários de inglês-inglês, inglês-português, inglês-francês, um manual de gramática espanhola. Dois deles me pareciam amigos próximos, embora visivelmente distantes (já que permaneceram intocados nos anos recentes): um compêndio britânico com datas marcantes da história até a década de 1990 e um imenso glossário de termos de informática, editado no ano longínquo (quando se fala em tecnologia) de 1996. Cheguei a tirar uma foto deles, mas precisei apagá-la, por falta de espaço no iCloud. Meu glossário não tinha ideia do que isso significa (afinal, é do tempo em que, para usar os poucos computadores disponíveis para alunos na PUC, era preciso pegar uma senha, marcar dia e hora).

Estudo divulgado pela Charity Retail Association mostrou que 11.249 lojas de caridade funcionavam no Reino Unido até julho do ano passado. Deste total, 9.437 só na Inglaterra, outras 963 na Escócia, 549 no País de Gales e 300 na Irlanda do Norte.

O carinho por esta dupla em especial estava, certamente, associado à minha memória afetiva. Foram livros caros, como eram, e ainda são, as publicações importadas no Brasil. Eles e os outros foram comprados para mim pela minha avó, meu xodó, durante os meus anos de faculdade de Letras (Tradução Inglês-Português), na Pontifícia Universidade Católica do Rio. Fazia questão de me dar. “Livro é investimento. Não abro mão”, repetia. Tornou-se uma espécie de segredo de nós duas. Era pelo menos um por mês, a depender do preço, muitos variavam com a cotação do dólar. Pagava com cheques pré-datados, coisa tão brasileira. Quem nos vendia era uma livreira aposentada, que se espremia debaixo do vão da escada do curso de Letras. Nunca viu minha avó, mas a conhecia pelo nome; sua melhor freguesa.

Percorri boas memórias e vivi as sensações de apego e desapego até decidir o fim daqueles livrões. Entendi que seria mais digno. Seriam aproveitados por outras pessoas, ainda que, na era digital, dicionários tenham se tornado tão obsoletos. Não o seu conteúdo, claro. Mas carregá-los já não faz qualquer sentido (embora, admito, tenha guardado alguns poucos).

Pesquisa feita em 2015 mostrou que os britânicos preferem comprar quase tudo em lojas de caridade. Foto Divulgação
Pesquisa feita em 2015 mostrou que os britânicos preferem comprar quase tudo em lojas de caridade. Foto Divulgação

O Reino Unido tem a cultura das instituições de caridade. Estão por toda parte, não interessa o tamanho da cidade. Empunham as bandeiras das causas mais variadas. Suas lojas vão muito além dos brechós que a gente conhece no Brasil. Uma das voluntárias que trabalham no Thames Hospice, para onde finalmente doei os meus livros, na esquina de casa, é funcionária de uma butique inglesa elegante (dois números mais adiante na mesma rua) na maior parte do tempo. Ela arruma a vitrine da loja de caridade com o mesmo esmero. Manequins muito bem vestidos, seguindo as demandas das estações do ano, cercados por belos objetos e livros. Curadoria profissional. Essa é uma pequena instituição regional, que atende pessoas com deficiências e suas famílias nos condados de Berkshire e Buckinghamshire. O custo anual deste trabalho é de oito milhões de libras (cerca de R$ 40 milhões), de acordo com o site deles na internet, dos quais metade vem exclusivamente da arrecadação das lojas.

As doações são fonte de receita essencial das organizações sérias que ajudam os necessitados neste país. E não só isso (como se fosse pouco). Por tabela, promovem a reciclagem daqueles objetos que costumam ficar abandonados por anos, às vezes uma vida inteira, nas casas das pessoas. Eu me deparo com eles a cada nova mudança. Como se acumula coisa!

Recentemente, o jovem estilista brasileiro David Lee, prestigiado na Semana de Moda de Londres, me contou que, se o mundo parasse de produzir roupas hoje, ainda teríamos o que vestir por muitos e muitos anos. Daí a preocupação cada vez maior de designers, da indústria, e dos consumidores com a sustentabilidade da produção. Este, aliás, foi um dos critérios adotados pelo International Fashion Showcase para selecionar o David e os outros 15 da nova safra de talentos de cinco continentes a participar de uma grande exposição de moda na Somerset House, na capital britânica. Havia mais de 200 candidatos.

De acordo com estudo divulgado pela Charity Retail Association, 11.249 lojas de caridade funcionavam no Reino Unido até julho do ano passado. Deste total, 9.437 só na Inglaterra, outras 963 na Escócia, 549 no País de Gales e 300 na Irlanda do Norte. Todo mundo que conheço já comprou algo nessas lojas. A mesma pesquisa mostra que 81% dos entrevistados tinham visitado um desses estabelecimentos naquele ano, o que indicava um crescimento de 14% em comparação com os 12 meses anteriores. Na contramão do que tem acontecido com o comércio de rua, que vem fechando as portas em função da competição com as grandes marcas e a internet, os brechós vêm ganhando fôlego. Algumas entidades, têm optado inclusive por expandir, não apenas a sua capilaridade, como também os seus espaços. O Câncer Research UK tem grandes centros varejistas, com vários andares, pelo Reino Unido. O Exército da Salvação abriu uma superstore em Northampton e um café em 2017. Gosto de variar os locais para onde mando as minhas doações. Muita gente faz o mesmo.

Uma das lojas da Thames Hospice, em Londres. Foto Divulgação
Uma das lojas da Thames Hospice, em Londres. Foto Divulgação

Pesquisa realizada pela NfpSynergy, em 2015, indicava que a maioria dos britânicos preferia comprar quase tudo nas lojas de caridade — livros (84%), cartões (75%), DVDs e CDs (73%), roupas (62%), móveis (57%) e produtos de jardinagem (62%) —, menos perfumaria e alimentos. As pessoas vão atrás das pechinchas, claro. Por que pagar mais? No entanto, muitas o fazem conscientes de que estão comprando de maneira mais responsável. Há barganhas de todos os tipos para todos os bolsos, e para todos os casos de deslumbramento. Há lojas que recebem doações de celebridades de peças de marcas badaladas caríssimas. Há alguns anos, diante da demanda e da publicidade que se deu aos seus doadores, a Cruz Vermelha preferiu leiloar as bolsas, roupas e sapatos que havia recebido de David e Victoria Beckham, em uma das suas lojas de Chelsea, bairro nobre de Londres.

A cultura das instituições de caridade no Reino Unido me fez refletir sobre o que fazem os chineses com aquilo que não usam. Não vi lojas de caridade em Pequim. Pode até ser que existam. Mas não há essa cultura ostensiva como aqui no Reino Unido. E as regras para o funcionamento de Organizações Não Governamentais (ONGs) no país também são mais duras. Mesmo assim, na China, nada se perde. E isso foi algo que me chamou atenção nos quase três anos que morei em Pequim. Quem tem dinheiro, e isso é muito comum entre os novos ricos, não quer nada usado, velho. Essas pessoas fazem questão de pagar caro pelo que vestem ou comem, e, de fazer saber quanto custou cada item. Já recebi muito presente cujos preços jamais terão sido o que está marcado nas etiquetas. Sim, muitos chineses deixam as etiquetas à vista de quem está sendo prestigiado. Talvez até tenham a consciência de que o presenteado saberá que a mercadoria não custou aquilo tudo. Mas saberá também que, a despeito do empenho gasto naquela barganha, o valor nominal explicitado na etiqueta é o que ele merece receber.

Se os remediados desperdiçam, os mais pobres reciclam. No país mais populoso do mundo, onde as desigualdades sociais são crescentes e onde a escassez marcou a história de centenas de milhões de famílias por décadas, as pessoas acumulam tudo. Muitas grades de proteção nas janelas dos blocos de apartamentos viram depósitos de tralhas: de garrafões de água vazios a embalagens de vidro, potes, quinquilharias de todas as formas, objetos que poderão (ou não) ter uso um dia. Ainda que não sejam necessários, podem sempre ser trocados por outra coisa lá na frente.

O escambo é recorrente na China. Não há como quantificá-lo, ou conhecer, na ponta do lápis, a importância que terá para o país. Não encontrei estatísticas. Mas é um componente inegável do dia-a-dia da segunda maior economia do Planeta que os avanços do mundo moderno não foram capazes de extinguir. A revolução tecnológica permitiu que mais de um bilhão de usuários conectados ao Wechat (um cruzamento turbinado de WhatsApp com Twitter e Facebook) não precisassem mais carregar dinheiro no bolso — dão até esmola a partir do aplicativo —, ou em que o comércio eletrônico movimenta mais de US$ 1 trilhão por ano. O escambo continua lá. E isso é bom.

Para o chinês, tudo tem o seu valor. “Você pode me trazer umas dez barras de chocolate da sua viagem? Não quero uma grande. Mas dez pequenas mesmo”, me pediu a faxineira chinesa mais de uma vez. O motivo da encomenda não era o fato de ser uma chocólatra. Não ligava para chocolate, na verdade, como boa parte dos seus compatriotas. Queria apenas tê-los para retribuir favores, empréstimos e presentes que recebia de amigos. Um dia aparece com uma imensa sacola de roupas de bebê, quando já tem filho criado. “Posso trocar com alguém que esteja precisando por algo que eu queira”, explicou. Mas também mandou um punhado de itens da sacola para parentes mais pobres no Norte da China. Ganhou três estantes, que trocou por uma pequena televisão. E juntou os DVDs usados, que coletou na casa de uma amiga, ao conjunto de quatro pratos de louça branca que ganhara meses antes, para trocar com um vizinho comerciante por pedaços de tecido de refugo. Tinham defeitos de fabricação. Foram transformados nos lençóis do apartamento novo, que paga com o esforço de quatro empregos, e, volta e meia, com pequenos empréstimos dos amigos comedores de chocolate. A conta nunca fecha no final do mês.

A reciclagem de objetos usados na China faz parte da cultura local. Talvez menos pela consciência das questões modernas, e mais pela necessidade, ou a história de escassez. Estima-se que, no Reino Unido, o mercado de segunda mão dos equivalentes a brechós, somados aos sites de vendas de artigos usados, movimente cerca de 2,6 bilhões de libras, quase R$ 10 bilhões. Imagine quanto isso pode representar na China, com seus quase 1,4 bilhão de almas consumindo cada vez mais. E não é só isso: o país enfrenta problemas sérios com a produção de lixo. Já pensou se todos os chineses forem comprar tudo novo e jogar fora o que for velho?

Tomara que essa cultura de brechós dedicados à caridade, ou algo equivalente, prospere nesta que poderá se transformar na maior economia do Planeta num futuro não muito distante. E que siga crescendo aqui, no Brasil, assim como em qualquer país do mundo. O importante é dar uma chance para que objetos sem uso satisfaçam as necessidades de outras pessoas, deixem de ocupar espaço desnecessário em armários e gavetas, sem jamais perder seu lugar na memória, como os meus dicionários que, enfim, se foram, junto com umas xícaras e uma jarra de cristal.

Vivian Oswald

É jornalista e não sossega. Começou no JB. No Globo, foi repórter especial de economia em Brasília e correspondente em Bruxelas, Moscou, Londres e Pequim. Está de volta ao Reino Unido desde o final de 2018, quando deixou a China. Ganhou o prêmio Esso de Economia em 2015. É autora do livro "Com vista para o Kremlin" (Ed. Globo, 2011).

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Um comentário em “O reino dos brechós das causas nobres

  1. Maria teresa senise disse:

    Eu simplesmente devorei amateria da vivian Oswald. Nao percam.ela de vista. Escreve e descreve com.uma clareza impressiinante. Parabens a todos !!!

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