Já passou da hora de largar o osso

Colheitadeiras de soja na cidade de Campo Novo do Parecis, a cerca de 400 km de Cuiabá, no Mato Grosso. Em 2022, o setor recebeu quase R$ 57 bilhões em benefícios fiscais. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

Estudo mostra que subsídios para produtores de soja superam, em muito, os da cesta básica

Por Agostinho Vieira | ArtigoODS 12 • Publicada em 21 de novembro de 2023 - 08:45 • Atualizada em 25 de janeiro de 2024 - 16:49

Colheitadeiras de soja na cidade de Campo Novo do Parecis, a cerca de 400 km de Cuiabá, no Mato Grosso. Em 2022, o setor recebeu quase R$ 57 bilhões em benefícios fiscais. Foto Yasuyoshi Chiba/AFP

A reforma tributária finalmente foi aprovada. Como sofreu alterações no Senado, o texto ainda será votado mais uma vez na Câmara, mas nada indica que haverá uma grande reviravolta. Logo, a reforma tributária foi aprovada. E isso significa duas vitórias importantes para o país: uma econômica e outra política. A econômica é a simplificação do modelo fiscal brasileiro, que tende a se tornar um pouco mais justo. Como dizem os técnicos do Ministério da Fazenda, a complexidade hoje é 100, a proposta do governo levava para 10, as mudanças no Congresso puxaram para 30. Continua sendo um bom número.

A vitória política não está apenas na aprovação de uma reforma fundamental que vinha sendo discutida há 60 anos. Ela representa, se não o fim, pelo menos uma trégua na demonização da Política. Nos últimos anos, virou moda bater nos políticos e na política. Transformá-los em sinônimo de corrupção e desvios. Obviamente, isso nunca foi gratuito, muita gente se beneficiou desse discurso. O Congresso, com todas as críticas que podem e devem ser feitas a ele, representa a vontade do eleitor. Nenhuma cadeira foi ocupada à força, todos foram votados. Sendo assim, mal ou bem, a reforma aprovada representa, em média, a vontade dos brasileiros.

Dito isso, vale discutir o jogo de pressões e os interesses que circulam pelos corredores do Congresso. Um estudo divulgado no final de outubro mostrou o tamanho dos benefícios concedidos hoje a apenas um único setor da economia: o agronegócio. Mais especificamente, a cadeia produtiva da soja. O trabalho, realizado pelas ONGs Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), ACT Promoção da Saúde, Observatório das Economias da Sociobiodiversidade e pelo Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), revelou que a renúncia fiscal para a produção de soja no Brasil, em 2022, se aproximou dos R$ 57 bilhões, quase o dobro de toda a desoneração da cesta básica que, segundo a Receita Federal, gira em torno de R$ 30 bilhões.

Trabalhador agrícola em um campo de produção de soja em Goiás. Setor recebeu 52% do crédito rural disponível em 2022. Foto Mateus Bonomi/Anadolu Agency via AFP
Trabalhador agrícola em um campo de produção de soja em Goiás. Setor recebeu 52% do crédito rural disponível em 2022. Foto Mateus Bonomi/Anadolu Agency via AFP

Para chegar ao valor total do benefício fiscal, os autores do estudo calcularam a desoneração em cada etapa da cadeia produtiva:

  • Produção (apenas os insumos fertilizantes, agrotóxicos e semente): R$ 18,59 bilhões;
  • Indústria (farelo, óleo alimentar e biodiesel todos para o mercado interno): R$ 9,99 bilhões;
  • Exportações (de soja em grão, óleo e farelo): R$ 28,23 bilhões;
  • Crédito Presumido para a Indústria: R$ 2,78 bilhões;

Total da desoneração na cadeia produtiva da soja, sem incluir o crédito presumido: R$ 56,81 bilhões.

“Além do governo não arrecadar nada com estes tributos, o setor industrial tem direito a créditos presumidos, que podem ser utilizados no pagamento de outros tributos federais, ou, ainda, permitir que seja solicitado o ressarcimento pelo governo federal. O ‘cashback’ da indústria de soja é bilionário”, explicam os pesquisadores.

Os responsáveis pela análise, no entanto, reconhecessem que os benefícios concedidos ao longo do tempo foram importantes para que o agronegócio brasileiro se fortalecesse a assumisse a liderança do mercado global: “Em 50 anos de renúncias fiscais ininterruptas e outras políticas públicas de fomento, o Brasil se tornou o maior produtor e exportador mundial do grão”, escrevem. E isso contribuiu para que o setor “conquistasse participação relevante nas principais cadeias globais agroalimentares, gerando divisas para o país e ilhas de riqueza e prosperidade nos territórios onde concentra suas atividades”.

Entretanto, os pesquisadores defendem que chegou a hora do agro, que é pop, robusto e inquestionavelmente forte, seguir o seu próprio caminho: “Chegou o momento de os produtores de soja soltarem a mão do Estado brasileiro, que já cumpriu seu papel em apoiar a estruturação do setor. É preciso que o agronegócio assuma o seu tamanho e comece a pagar as contas, como qualquer brasileiro adulto”.

De acordo com o estudo, dados do Banco Central referentes ao ano de 2022, mostram que, do total de crédito rural para custear as lavouras brasileiras, nada menos que 52% foram destinados exclusivamente para o financiamento das lavouras de soja, repassados por meio de 187 mil contratos. Ou seja, de um total de R$ 133,2 bilhões emprestados para custear as lavouras no país, R$ 69,5 bilhões foram destinados para financiar exclusivamente o custeio da soja. A soja sozinha toma mais crédito com recursos em condições diferenciadas do que a soma de todos os outros alimentos cultivados no país. Se for adicionado o milho a esta conta, as duas culturas abocanharam 72% do crédito de custeio para as lavouras no país em 2022. A título de comparação, o feijão tomou menos de 1% dos recursos destinados ao custeio das lavouras em 2022, por meio de apenas 8,4 mil contratos. A mandioca não chegou a 0,4%, com 3,2 mil contratos, e as hortaliças não passam de um traço nas estatísticas. Ou seja, já passou da hora de largar o osso.

Agostinho Vieira

Formado em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Foi repórter de Cidade e de Política, editor, editor-executivo e diretor executivo do jornal O Globo. Também foi diretor do Sistema Globo de Rádio e da Rádio CBN. Ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo, em 1994, e dois prêmios da Society of Newspaper Design, em 1998 e 1999. Tem pós-graduação em Gestão de Negócios pelo Insead (Instituto Europeu de Administração de Negócios) e em Gestão Ambiental pela Coppe/UFRJ. É um dos criadores do Projeto #Colabora.

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