ODS 1
Famílias negras são as mais atingidas por ineficiência energética nas favelas
Pesquisa revela que 31% dos favelados vivem em situação de pobreza energética e comprometem mais de 10% da renda com a conta de luz
A pobreza energética tem endereço, classe social e cor. Esse é o entendimento do Relatório Eficiência Energética nas Favelas, desenvolvido por coletivos e moradores de favelas da Região Metropolitana do Rio. A pesquisa ouviu 1.156 pessoas, representando mais de 4.100 famílias, residentes em 15 comunidades da cidade do Rio e de outros quatro municípios da Baixada Fluminense. O estudo mapeou os principais problemas que moradores de favela enfrentam quando o assunto é energia. Os dados indicam que as famílias negras são as mais vulneráveis à ineficiência energética.
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O relatório é fruto do curso “Monitorando a Justiça Hídrica e Energética nas Favelas”, realizado pela Rede Favela Sustentável e pelo Painel Unificador das Favelas, iniciativas da ONG Comunidades Catalisadoras (ComCat), e outras sete organizações. Segundo Theresa Williamson, fundadora da ComCat, a solidez da pesquisa foi um resultado inesperado do curso. “O propósito foi o curso, não a pesquisa. O objetivo era que jovens e lideranças se apropriassem sobre a importância de fazer pesquisas dentro e pelas favelas e, depois, pudessem experimentar a construção de um estudo”, explica.
O curso contou com a participação de 45 jovens e lideranças locais, todos moradores de favelas. Foram cerca de 80 famílias entrevistadas em cada comunidade. Elas responderam a diversas perguntas sobre as condições de acesso à energia, qualidade do serviço e, também, sobre eficiência energética. Pouco mais de 500 mil pessoas vivem nos territórios abarcados pela pesquisa. Das 15 comunidades, nove estão na capital e outras seis na Baixada Fluminense, nas cidades de Mesquita, São João de Meriti, Duque de Caxias e Itaguaí. “O relatório acabou sendo bem impactante e descobrindo questões novas que precisam ser abordadas”, resume Theresa.
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Mais da metade das pessoas ouvidas tem uma renda familiar média de até um salário-mínimo. Especialmente para esse grupo, o valor da conta de energia pesa muito no orçamento. Os dados apontam que aproximadamente 31% das famílias ouvidas vivem em situação de pobreza energética. Isto é, elas comprometem 10% ou mais de sua renda mensal com o pagamento da tarifa de energia.
“A pobreza energética é mais presente entre as famílias mais pobres e podemos ver, pelos dados, que as famílias pretas ocupam mais esse espaço”, explica Kayo Moura, integrante do Laboratório de Narrativas e Dados do Jacarezinho, o LabJaca, organização parceira do projeto. Cientista social e estatístico em formação, Kayo foi uma das pessoas responsáveis pela análise dos dados e elaboração do relatório. Um dos indicadores mencionados por ele demonstra o perfil racial por faixa de renda. Com base nos dados é possível notar que quanto maior é a renda, menor é a presença de pessoas negras; e quanto menor é a renda, maior é a presença de negros. Dessa forma, se as pessoas mais pobres são as mais impactadas e as famílias negras ocupam mais esse espaço, é possível afirmar que elas são as mais vulneráveis.
Para as famílias mais pobres, a tarifa de energia compromete um recurso que poderia ser direcionado a itens básicos. Quase 70% das pessoas entrevistadas, quando perguntadas o que fariam com o dinheiro se a conta de energia fosse mais barata, responderam que usariam o valor para comprar alimentos. Contas e despesas domésticas é a indicação de 10% dos entrevistados, seguido de medicamentos e saúde (4%), roupas (4%), poupança (3%), educação (2%) e outros (9%).
Mas afinal, quanto pesa a conta de energia no orçamento das famílias? Segundo Kayo, para entender essa e outras questões trazidas pelo levantamento é fundamental não perder de vista a renda média relatada por mais da metade dos entrevistados: até um salário mínimo. Pouco mais de 41% relatou não pagar ou não receber conta de energia. Entre aqueles que pagam a tarifa, 20% indicam uma conta média entre R$ 61 e R$ 120; a segunda faixa mais comum, com 16%, aponta um valor médio entre R$ 121 e R$ 240.
Há mais de 20 anos foi criada uma lei (10.438/2002) para assistir as famílias mais pobres e reduzir o impacto da conta de energia sobre o orçamento delas. A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) propõe uma tarifa subsidiada e ainda premia o uso eficiente de energia, uma vez que oferece mais descontos conforme a redução do consumo. Apesar disso, quase 69% das pessoas ouvidas no estudo desconhecem o programa. Entre aqueles que conhecem, apenas 32,7% (93 pessoas) afirmaram receber o benefício. Na avaliação de Kayo isso demonstra, ao mesmo tempo, uma falha na implementação da política e, também, uma oportunidade, porque revela que ainda há bastante espaço para a ampliação do programa. Entre as famílias ouvidas, 623 se encaixam nos critérios para acessar à TSEE, mas afirmaram não ter o benefício.
E quando falta luz?
Nos três meses que antecederam as entrevistas, 32% das famílias ouvidas vivenciaram, ao menos, um episódio de falta de luz que perdurou por mais de 24 horas. As quedas no fornecimento não são incomuns e, por vezes, a situação demora a ser normalizada. Um a cada cinco entrevistados – ou 20% – relatou que, quando a energia cai, demora mais de um dia para ser restabelecida. De acordo com 23% dos respondentes, o retorno costuma demorar entre 6 e 24 horas. O mais comum, indicado por 30%, é esperar entre 1 e 6 horas pelo retorno. Quando observado a faixa salarial das famílias, é possível notar que as mais pobres são as que mais sofrem com a frequência no interrompimento do serviço e, também, com a demora para a sua normalização.
A falta de energia atrapalha e inviabiliza atividades simples do dia a dia, mas às vezes também impacta no bolso. Isso porque a instabilidade ou queda de energia queima eletrodomésticos e aparelhos eletrônicos. Entre os entrevistados, 32% relataram ter tido alguma perda por conta disso, contra 66% que não declararam prejuízo.
Dentro das favelas, quando os problemas com a rede elétrica acontecem, nem sempre é a concessionária de energia quem resolve. Por vezes, os moradores até entram em contato com a empresa, mas não conseguem uma visita. Os dados mostram que na maioria dos casos eles buscam por soluções alternativas. Uma boa parcela tenta solucionar o problema com ajuda de um eletricista local, resolve por conta própria ou com a ajuda da associação de moradores. Apenas 38% das pessoas ouvidas disseram recorrer à concessionária. Segundo o relatório, quanto menor é a faixa de renda, menos as pessoas se relacionam com a empresa fornecedora do serviço.
A ausência de medidor nas residências é outro elemento que ilustra a relação entre concessionárias e favelas: 43% dos domicílios da amostra não possuíam relógio de energia elétrica. Apesar de a instalação ser uma obrigação prevista em lei, muitos entrevistados relataram a falta de atendimento por parte das empresas. “Os moradores diziam: ‘a gente liga, a gente tá pedindo, quer pagar para poder, inclusive, reclamar, mas a concessionária não entrega esse serviço’. [A empresa] tem vários argumentos, mas o morador da comunidade não tem culpa. O morador da comunidade sabe que o que ele tem é uma conta de luz alta, um serviço ruim e, muitas vezes, tem o desrespeito por parte da concessionária”, avalia Kayo.
Quando se fala em energia elétrica nas favelas, um dos pontos mais sensíveis é a instalação irregular, conhecida como “gato”. Esse tipo de conexão à rede é criminalizada e, também, é um desafio à eficiência energética e à segurança dos imóveis e das pessoas. Poder estudar essa questão pelo olhar da própria favela é, no entendimento de Kayo, uma contribuição importante da pesquisa. Existe um imaginário, fortemente enraizado na sociedade, que pensa o “gato” como a norma na favela e o morador como um sujeito “criminoso” e “aproveitador”. Para Kayo, o relatório mostra que a questão é bem mais complexa: “a gente tem um conjunto de fatores que faz com que o ‘gato’, muitas vezes, se mostre a única forma de acesso das famílias pobres ao serviço”.
Os dados indicam que o contexto social e econômico é determinante para que as famílias acessem a rede elétrica por meio do “gato”. Entre as pessoas ouvidas, 49% afirmaram ter um ou mais aparelhos ligados em uma instalação irregular. As famílias com a menor renda são as que mais têm “gato” na rede elétrica. A presença da ligação irregular vai caindo conforme a faixa de renda aumenta. “Isso para mim é um indicativo forte de que se a família tem condição de pagar a conta de luz, ela passa a pagar mesmo”, opina Kayo. Na visão dele, uma mudança de cenário depende de políticas que reduzam o valor da tarifa nesses territórios e, também, de esforços que visem melhorar a qualidade do serviço oferecido e aproximar as empresas dos territórios.
Construído coletivamente, a sessão final do relatório propõe medidas voltadas a monitorar e melhorar o serviço nas comunidades. Uma das propostas é a criação de um Posto Comunitário de Luz, um espaço criado com o objetivo de receber relatos e denúncias de falta ou baixa qualidade do serviço, que facilitasse a comunicação e acelerasse a resolução do problema. Esse posto também poderia prestar atendimento aos moradores para acessarem tarifas sociais, o CadÚnico, entre outras coisas.
Outra ação proposta no relatório é o cadastro e contratação de eletricistas locais. Além de acelerar o atendimento, a medida poderia conferir mais segurança à concessionária, visto que os profissionais são moradores do território atendido. O estabelecimento de uma taxa popular, mais acessível, é outra sugestão indicada pelo estudo. “Se a gente tiver uma tarifa social mais acessada pela comunidade e com um desconto maior, teremos a concessionária ganhando muito mais do que no estágio atual. Possibilitar uma tarifa que caiba no orçamento e que premie, inclusive, comportamentos energeticamente eficientes caminha no sentido de pensar numa solução. Acho que é a partir daí que a discussão tem que acontecer”, defende Kayo.
Favelas gerando dados
A construção do projeto teve como ponto de partida um curso sobre pesquisa e monitoramento, realizado entre março e setembro do ano passado. Lideranças locais de 15 favelas participaram da formação. Além delas, foram selecionados dois jovens por comunidade, formando, assim, um trio de moradores-pesquisadores para cada território. O objetivo do curso era desmistificar o processo de coleta e compreensão de dados, mostrando que as favelas e seus moradores podem gerar dados.
Quando as perguntas são pensadas por quem vivencia os problemas, elas evidenciam questões prioritárias para o território e olham, também, para formas de solucionar os problemas encontrados. “Muitas perguntas interessantes, que geralmente não são feitas, foram feitas porque foram pensadas por eles”, avalia a diretora executiva da ComCat, Theresa Williamson.
“São pessoas que pensam o mundo de outro lugar, então as perguntas que querem fazer são de outra natureza. São questões voltadas à mudança de realidade, propõem coisas que vão ter impacto na vida das pessoas. Poucas vezes a gente vê isso. Definir o que vai ser perguntado, definir o que vai ser pesquisado é o topo da hierarquia da pesquisa e esse lugar foi compartilhado pelos moradores”, explica Kayo, pesquisador do LabJaca.
Matheus Rodrigues, de 24 anos, é um dos 30 jovens participantes do curso e da pesquisa. Nascido e criado em Rio das Pedras, na Zona Oeste do Rio, o jovem cursa Geografia na PUC-Rio, instituição localizada na Zona Sul da cidade. A formação tem bastante proximidade com o que Matheus estuda na universidade, mas a experiência de conhecer outras localidades e realidades dentro da favela onde mora o marcou. “Enxerguei no curso a possibilidade de me conectar com outras favelas, de conhecer outros jovens e lideranças. Não fazia ideia do quanto iria aprender sobre Rio das Pedras”, conta.
A parte prática de definição e construção dos indicadores, a coleta das informações em campo, a análise e compreensão dos dados, bem como os usos e a comunicação dos dados fizeram parte da formação. Matheus foi a campo em Rio das Pedras e ouvindo os moradores entendeu a importância dessa escuta. “Vi o quanto é necessário a gente escutar a população até para a formulação de política pública, precisa escutar quem está vivenciando”, defende o jovem.
A comunicação da pesquisa foi a última etapa do curso. Em setembro, o primeiro relatório – Justiça Hídrica e Energética nas Favelas – veio à público durante uma coletiva de imprensa com participação das lideranças e jovens. A pesquisa trouxe dados sobre o acesso, qualidade e eficiência dos serviços de energia e água nas 15 favelas estudadas. A amostra do estudo não é probabilística, isto significa que ela não pode ser lida como representativa do todo. Ela traz, no entanto, apontamentos que chamam a atenção para os desafios do presente e podem ser aprofundados em estudos futuros.
A qualidade e a repercussão do primeiro relatório levaram à publicação do segundo – Eficiência Energética nas Favelas. Publicado em abril deste ano, o estudo aprofunda a análise sobre o serviço de energia, dando ênfase ao contexto econômico e racial das famílias frente às questões sobre acesso, qualidade e eficiência energética. Nesta matéria, mencionamos dados de ambos os relatórios, mantendo o foco sobre o serviço de energia.
Com base no curso de pesquisa e nos relatórios gerados, foi criado um novo projeto para trabalhar as possibilidades de incidência política a partir dos dados. Segundo Theresa Williamson, esse segundo projeto levará os dados aos territórios para discutí-los localmente. Até o momento, seis favelas receberam o lançamento e, nos próximos meses, outras nove receberão. Nesses eventos, são os jovens dos próprios territórios que apresentam os resultados, debatem e entendem com a comunidade se eles representam ou não a realidade local. “As reações [nos lançamentos locais] têm sido muito fortes de orgulho pelos jovens e de conscientização sobre a situação das comunidades em geral”, conta Theresa, que acrescenta: “a ideia é colocar os resultados nas mãos dos moradores e aprofundar o entendimento para que, depois, a gente possa ter outras ações de incidência política junto às comunidades.
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Jaqueline Suarez é carioca, nascida e criada no Fallet, favela na zona central da cidade. É jornalista e comunicadora popular, com mestrado na área de comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Passou pela redação da Record e foi editora do RioOnWatch. Atualmente trabalha na intersecção entre comunicação e educação, integrando a equipe da Fundação Roberto Marinho.