Quando, no porvir (se houver), for contada a história do século 21, vai se falar da eterna insensatez humana – principal característica da espécie -, da crise climática, de pandemias (atenção para o plural), da inteligência artificial e, provavelmente, da extinção do dinheiro físico. Notas e moedas, símbolos materiais do capitalismo, nunca estiveram tão desprestigiados como nesses tempos de transferências digitais, do dinheiro – da vida – dentro do celular. A olho nu, parece contemporâneo, eficiente, prático, seguro – mas uma observação mais profunda desnuda alguns esqueletos no armário da tecnologia. Especialista no assunto, Caio Almendra analisa movimentos e estratégias que escoltam a alegada modernidade, revelando que o nome do jogo, na verdade, é o de sempre: poder. Agora, em versão superconcentrada.
Leu essa? De tecnologia e apocalipse
À entrevista:
#Colabora – O dinheiro físico vai acabar?
Caio Almendra – Quando vou pagar alguma coisa, pergunto ao caixa, de piada: “aceita dinheiro?” Tem uma discussão bastante interessante sobre o que é o dinheiro. Temos a ideia de que dinheiro nasce porque facilita as transações, mas no livro “Dívida”, o antropólogo David Graeber, infelizmente recém-falecido, começa a desmontar a falácia. ao afirmar algo bem diferente: o dinheiro facilita as obrigações, ou seja, viabiliza que um Estado cobre imposto, retire parte do dinheiro que circula na economia direcionando para um ente centralizado. Ele diz o seguinte: a teoria liberal é de que você precisava comprar uma galinha e produzia vaca, logo você precisava achar um vendedor de galinha que estivesse interessado em vaca. Era difícil e o dinheiro veio para resolver essas coisas. Graeber utilizou uma arqueologia para concluir que é mentira: o produtor de galinha e o de vaca faziam diretamente todas as transações e compensações necessárias. A ideia do dinheiro como coisa prática, e não uma imposição em cima da economia popular, ganha importância nos dias atuais.
#Colabora – Mas o dinheiro físico, as notas e moedas?
Não será exatamente o fim do dinheiro, mas a implantação de um superdinheiro. Se o dinheiro serve para transferir uma parte do que todo mundo produzia para o aparelho controlador superior, com o dinheiro eletrônico a autonomia das pessoas sobre as próprias transações e a própria economia é muito menor. O Estado e o sistema bancário têm controle sobre a circulação de moeda e, consequentemente, sobre a economia muito maior.
#Colabora – Quando notas e moedas vão acabar?
Quando as últimas pessoas que estão acostumadas a utilizarem dinheiro nesse formato saírem do jogo, deixarem a sociedade, a vida econômica, o que em geral significa morte. Quando essa geração de pessoas ainda acostumadas com dinheiro se for, a forma eletrônica será a mais comum.
#Colabora – Na era que a gente vive, nada é mais valioso do que informação. Então, até aquele CPF que você dá na farmácia para ter o desconto, vira uma commodity que vai circular, porque esses lugares vendem essas informações. Se as transações mais banais passarem para o modo eletrônico, estaremos jogando mais informação dentro de algum lugar. Está certo ou é paranoia demais?
Está absolutamente correto. Quando falei disso no (podcast) Medo e Delírio em Brasília, uma pessoa pediu para explicar o conceito de Open Finance. A possibilidade de receber todos os dados que são produzidos sobre você a partir da sua vida econômica. É uma discussão dentro de um meio tecnolibertário, uma crítica à concentração de capital, e com isso à concentração de produção de informação, na mão dessas big techs, do sistema financeiro tecnológico atual.
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Veja o que já enviamos#Colabora – Mas os dados estão protegidos?
Acho muito complicado por diversas razões. A partir do momento em que se produz esses dados, eles são registrados em algum lugar. Mesmo que você tenha direito a saber que dados são, ou a vendê-los, está transferindo parcela significativa do seu poder político no sentido mais filosófico da expressão – ou seja, do seu poder de se comportar em sociedade – para quem controla os dados. É algo que eu consideraria inalienável, porque faz parte da dignidade da pessoa humana. Tenho o defeito de ser formado em Direito – apesar de falar sobre tecnologia – e nele existe o conceito de que você não pode vender parcelas da sua dignidade. Não se pode vender o direito de alguém arrancar sua mão, ou de alguém lhe espancar. Você não pode vender um órgão, não é? E por que as informações sobre suas compras, sua vida financeira, podem? O bielorrusso Evgeny Morozov tem um livro chamado “Big Tech”, em que ele propõe o seguinte: imagine que você tem dados sobre uma pessoa e vende a um anunciante, que começa um leilão pela sua liberdade de escolha.
#Colabora – Como assim?
Uma empresa descobre, pelo seu comportamento de buscas na internet, que você resolveu se tornar vegetariano. Aí vamos supor que existam dois interessados nessa informação. Um é um vendedor de tofu – já que você vai virar vegetariano, vai querer comprar queijo de soja. O outro é um vendedor de carne, para quem é importante lhe convencer a desistir. Você vai estar sentindo falta de carne, ele anuncia uma picanha e por aí vai. Não importa quem vença a batalha pela sua escolha, pela sua liberdade de agir – ela foi travada fora da sua esfera, fora de você. Ou seja, a capacidade de indução do desejo a partir do controle de dados produzidos por um indivíduo é um poder político muito relevante.
#Colabora – Compras têm essa importância toda?
A gente subestima o que compras significam. Se você pega todas as informações dos gastos de uma pessoa, tem muito dado sobre como ela se comporta. Há dois polos críticos a isso. O meu vai dizer que esses dados não devem ser acumulados. A Lei Geral de Proteção de Dados que se discute no Brasil evita que as informações fiquem sendo usadas e vendidas por aí, e responsabiliza quem o fizer. E tem o polo Open Finance: se você souber que dados estão sendo usados e para quê, está tudo bem. Dados de compra são mais intensos, por isso são os mais fáceis de vender.
#Colabora – O nome do jogo, então, é poder?
A gente nunca deu tanto poder para tão poucas pessoas. Por isso é um processo tão concentrador. É porque as empresas que controlam esses gigantescos bancos de dados são muito poucas.
#Colabora – Vamos a obviedades: dinheiro no bolso é perigoso, enquanto no celular é possível bloquear, ter senha etc.
Teremos que olhar um bando de estatísticas sobre o que é mais perigoso, mas a resposta final será que a quantidade de dinheiro roubada em fraudes no Pix é muito superior à dos assaltos “convencionais”. E até que ponto quero que uma parcela da minha riqueza seja retirada de mim por esses meios para evitar que uma parcela da minha riqueza, eventualmente, possa ser retirada de forma violenta? Até que ponto não é um certo populismo penal, de que existe um medo permanente e que, por causa dele, vamos buscar uma segurança que não nos deixa mais seguros? De fato, eu diria, e talvez essa seja uma coisa positiva, que assaltos comuns, cotidianos e por aí vai, são mais violentos do que golpes do Pix. Porém, quando começou essa história de dinheiro eletrônico, surgiu o sequestro-relâmpago. E se aprofundou com a concentração de informações no celular.
#Colabora – Você é contra o Pix?
Não. Acho o crescimento do dinheiro eletrônico um avanço. Mas se não discutirmos o que estamos perdendo, vamos dar muito poder às pessoas que cortarão as asas desse avanço. É engraçado que sou de uma consultoria de inovação e tecnologia e demoro a embarcar no avanço. Porque minha primeira reação é: isso é bom, querem que eu use, o que vão me cobrar? Qual vai ser o custo? Uma velha piada entre empreendedores diz que quando você está em uma empresa e não paga para estar, você é o produto dela. Exemplo cruel e machista, mas verdadeiro: quando uma boate anuncia que mulheres não pagam, elas são o chamariz dos homens. Estão sendo produtificadas, fazendo parte do produto à venda.
#Colabora – A olho nu, parece uma contradição.
Só quero que a gente, minimamente, coletivamente, pense o que está perdendo, o que está dando em troca desse avanço gratuito. Uma empresa não deveria saber onde estou 100% do tempo apenas porque comprei um celular ou instalei um aplicativo. Nenhuma empresa tem direito de saber todo o meu comportamento na internet, o que busco etc. Nem governos têm.
#Colabora – Dá para confiar no sigilo e na segurança da privacidade dos dados que estão em nuvens e algoritmos?
Uma comparação terrível, que sempre faço. Se um estudioso da década de 1960 ressuscitasse e ouvisse que existe um governo que sabe onde todos seus indivíduos estão em tempo real, sabe quando acordam, quando vão dormir, o que falam; que é capaz de identificar se um texto é escrito por aquela pessoa simplesmente pela escolha de palavras, ele, o especialista, chamaria de totalitarismo. Hitler e Stalin nunca sonharam com o tipo e a quantidade de dados que Big Techs como a Apple sabe, o Facebook sabe. A Big Techs têm mais controle sobre nossos dados do que qualquer ditador jamais sonhou em ter. Não só isso: há uma porta giratória entre essas empresas e os aparatos de segurança dos Estados Unidos.
#Colabora – De que forma?
Há uma troca muito grande de profissionais entre as quatro grandes empresas de tecnologia dos Estados Unidos – Alphabet, que é do Google; Meta, do Facebook e do Instagram; Apple e Amazon – e a NSA, a CIA, o Departamento de Estado. Então, o governo americano sabe – daí a guerra geopolítica e geoeconômica com a China, pelo TikTok e outras empresas de lá.
#Colabora – O presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, exaltou o Pix como inclusivo, porque democratizou o acesso ao sistema bancário, permitindo que empreendedores criassem seus negócios. Até o menino que vende bala no sinal pode receber por Pix. Qual é sua opinião?
Gostaria de citar aqui duas economistas: Laura Carvalho, autora de “Valsa brasileira: do boom ao caos econômico”, e Juliane Furno, professora da Uerj. Elas pregam que as classes sociais consomem geograficamente próximas de si mesmas. No supermercado perto de casa, no restaurante vizinho, no cabeleireiro do bairro. O dinheiro circula pouco em termos físicos, não sai voando de uma classe para outra. Com o Pix, mais pessoas da classe média passaram a consumir produtos de gente mais pobre, transferindo renda.
#Colabora – Logo, é positivo.
Mas tem um problema: quanto mais você financiariza a economia dos pobres, mais permite que empresas tentem bicar essa economia popular e trazer o dinheiro escada acima. Em especial, porque o grande modelo de negócio contemporâneo, a grande revolução sociotécnica na administração de empresas, foi a ideia de cauda longa. Com a revolução informacional e logística dos últimos 30 anos, é preciso chegar à maior quantidade possível de consumidores do produto, gastando um resíduo. Cauda longa vem a partir de um gráfico econômico, que basicamente falava do custo de adquirir um cliente. Então havia uma curva que acaba em zero, e agora nunca chega a zero – os meios sociotécnicos permitem expandir a base de consumo muito mais facilmente. O mecanismo acaba tirando dinheiro das comunidades e botando nas empresas que vão pagar os acionistas. O dinheiro não goteja de volta para os setores mais pobres.
#Colabora – Uma espécie de imposto privado?
Outro conceito interessante é a fee economy, ou economia da taxinha. Você não compra a quantidade de dinheiro que se gasta cada vez mais pagando uma taxa de 2%, para comprar o ingresso online do cinema, ou para a simples manutenção da sua conta.
#Colabora – O frete do delivery?
Isso. O objetivo é sempre tirar um percentual de uma economia grande, ampla e dinâmica.
#Colabora – É onde está o lucro das plataformas?
Uma plataforma tecnológica, é, na verdade, o espaço que faz o encontro entre três agentes: o administrador, o usuário e o financiador. O Google, todas as redes sociais, a Amazon, todos os marketplaces são isso. E aí tem o processo que (o escritor canadense) Cory Doctorow chama de emerdalização.
#Colabora – De merda mesmo?
Em inglês é enshittification, que traduzo para emerdalização, porque é o processo em que a plataforma vai se transformando em pior. Quando a plataforma é lançada, o primeiro objetivo é atrair usuários. Então, temos o melhor produto possível para o usuário. Quando você entra em uma rede social nova, tudo está lá e tudo o que você posta é muito visto, porque são as duas coisas que você quer. O número de usuários cresce e começa a venda de publicidade. A plataforma, então, melhora muito a vida do publicitário, dá benefícios, ao custo de quem? Do usuário. Quando alguém paga pelo anúncio, vai parar em muitas pessoas, nas pessoas certas e por aí vai. Então, vira uma boa plataforma de venda ao custo do usuário. Enquanto isso, vai tirando qualidades para o usuário – ao invés de ele ver o que queria, passa a receber muito mais anúncios. Até aqui, foi investimento. Depois, chega a hora de a empresa dar lucro. Aí, piora a vida dos dois. Caem a frequência em que um conteúdo chega ao cliente, e do conteúdo que o anunciante quer fazer chegar ao consumidor. O processo tripartite da plataformização, que faz a experiência online ficar cada vez pior, vale para tudo – Netflix, Prime Video etc.
#Colabora – Para o consumidor, é uma espécie de catástrofe digital?
O caso clássico é o YouTube e o que se chamou de adsmageddon, quando a plataforma baixou drasticamente o valor do view e quebrou várias produtoras. Agora, com a greve dos roteiristas, a Netflix vai espremer o outro lado. Já tem muito conteúdo, não vai lançar tanta coisa mais. A prometida democratização vai acabar.
#Colabora – Uma nova face do capitalismo.
Aliás, precisamos lembrar aqui a teoria econômica marxista – com o perdão da palavra (risos). A forma clássica de descrever a produção de riqueza é o capital aplicado na fabricação de um produto, que vira uma mercadoria para ser vendida por mais do que o dinheiro investido. Há outra maneira de gerar riqueza, que os marxistas chamam de fetichista: o capital investido para se transformar em mais capital. Rentismo, capital financeiro, que nos Estados Unidos, ganhou a sigla Fire de Finance (finanças), Insurance (seguros) e Real Estate (mercado imobiliário). São as três fontes de rentismo tradicional, onde se investe e recebe dinheiro sem produzir, sem transformar nada em mercadoria. Agora chegou o quarto cavaleiro do apocalipse, os dados.
#Colabora – Não há produção por trás dos dados?
É mais uma reprodução fetichista, uma forma de rentismo. Não se investe em dados para produzir dados como mercadoria. Primeiro porque é 100% automatizado, não há ninguém mexendo uma manivela para produzir o dado. Segundo é altamente perecível, pode ser jogado fora muito facilmente – são descartados dezenas de terabytes todos os dias. A compra do Twitter pelo Elon Musk foi basicamente para excluir os dados que não interessam. Interessa saber se você está virando vegetariano agora, e não o que aconteceu há dez anos.
#Colabora – Qual o custo dessa produção?
Dados só são relevantes conforme a quantidade, fator que, aliás, concentra muito a riqueza. Você produzir muitos dados sobre o Caio, significa que vai conseguir ganhar com esses dados muito dinheiro em cima do Caio, fazendo ele comprar a carne ou o tofu. Ao produzir muitos dados sobre muitas pessoas, vai entender uma tendência de comportamento que pode importar a um determinado mercado. Dá para induzir a atitude de uma quantidade importante de pessoas.
#Colabora – Pode dar um exemplo?
Todos os dados produzidos na campanha de 2022, por um milhão de robôs, de bots e mecanismos de pesquisa, passaram a valer quase nada com o fim da votação. Simplesmente saíram do mercado, quando o William Bonner anunciou o Lula presidente. Servem agora no máximo para treinar uma inteligência artificial visando a decifrar o comportamento do eleitorado em 2026.
#Colabora – O que, então, significam as big techs no mundo atual?
Um estrangulamento da economia popular. São as empresas mais valiosas da história da humanidade. Superaram a energia, o grande mercado anterior. E é por isso que tudo hoje parece um golpe. O que eu quero dizer com isso? Levou dez anos para a Amazon dar lucro. A Netflix ainda não dá lucro, nem a Uber. Mas a Amazon deu muito lucro e, por isso, ditou a forma do mercado, a forma que se investe e se espera que um resultado do investimento seja dado. Tudo está sendo organizado como uma Fire Economy. E aí a gente volta para o assunto do dinheiro.
#Colabora – Como?
O Starbucks lá fora tem um cartão, o Starbucks Coin, que dá desconto e permite não entrar na fila. Virou uma febre tão grande, que a empresa lucra muito com ele, porque muita gente esquece o dinheiro lá. São centenas de milhões de dólares nesses cartões e o Starbucks ganha em cima de juros, da gestão financeira. Toda empresa hoje busca se tornar um cobrador de juros ou um banco de depósito.
#Colabora – Como os cartões de transporte, tipo o RioCard?
Sim. Toda empresa de consumo permanente quer ter um banco interno. Então, no final das contas, esse sistema acaba sendo bem relevante. E aqui entramos no fim do monopólio do dinheiro estatal, das moedas dos países e blocos econômicos. Sempre se criou dinheiro privado – quando uma pessoa devia à outra e comercializava o título da dívida para um terceiro. Mas o volume e a forma atual não têm paralelo. A crise global de 2008 nasce aí: uma produção de dinheiro privado estapafúrdia, sem garantia; quando explodiu, trilhões que foram injetados na economia desapareceram da noite para o dia. Ainda hoje há uma profusão de tokens, de gift cards, de vale-presentes, vale-café, cuja grande objetivo é emitir dinheiro. Quando o Starbucks entrega um vale de café futuro, está construindo uma máquina de fazer dinheiro. Tem a ver com o início da conversa: há uma profusão de dinheiro privado, para controlar o trânsito de dados e de riqueza. Tanto a informação das pessoas quanto a própria quantidade de dinheiro que têm no bolso. Para voltar ao início: vai acabar o dinheiro? Não, está surgindo cada vez mais. A qualidade dele como meio de circulação é que está mudando.