De nagô a box braid, com jumbo ou sem, as tranças afro que carregam um forte legado ancestral estão ganhando cada vez mais espaço, ultrapassando as fronteiras das periferias urbanas e se tornando símbolo de identidade e resistência diante da sociedade. As profissionais que, desde julho de 2025, foram reconhecidas oficialmente pelo Ministério do Trabalho e Emprego continuam se aprimorando diante dos diversos estilos e modelos que têm surgido. Enquanto isso, uma trancista preocupada com o impacto ambiental que os resíduos das tranças podem causar descobriu a possibilidade de reciclar o material utilizado nos penteados, dando origem ao projeto Recicla Braids.
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Vitória Emanoely Campos, de 24 anos, conhecida nas redes sociais como Afrovity, iniciou uma pesquisa acadêmica sobre reciclagem de cabelo sintético. Em maio deste ano, ela começou a enviar os resíduos de jumbo do próprio salão e de mais 10 trancistas ativas no projeto, assegurando o tratamento e a destinação correta desses materiais. A profissional admite que não tinha pretensão de ser trancista no início; em contrapartida, o desejo de “iniciar o projeto” partiu da necessidade de resolver um problema constante. Segundo ela, por meio da iniciativa, mais de 70 quilos de material já foram reciclados.
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Veja o que já enviamosAssim como muitas mulheres negras, Afrovity encontrou nas tranças um meio de facilitar sua rotina na época da escola, sem imaginar que anos depois essa se tornaria uma das suas fontes de renda. Ela começou a trançar por falta de condições para ir a uma profissional fazer o cabelo.
“Quando eu tinha 14 anos, eu não trabalhava, então minha mãe fez um orçamento que não cabia na nossa realidade no momento. Minha mãe pegou e falou: ‘Ah, Vitória, você sabe trançar, se eu te der o valor do material, você não consegue fazer o seu cabelo?’ Eu comprei os rolos de linha de crochê, que na época nem eram jumbo, e assim fiz minha primeira trança”, conta.
Contato com a Universidade
Ela começou a empreender aos poucos em Francisco Morato (SP), onde mora, fazendo o cabelo apenas de conhecidas, até que, aos 17 anos, começou a expandir e enxergar o que estava fazendo “como profissão”. Assim que Vitória concluiu o ensino médio, ela passou em Biologia na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
“Eu fui a primeira pessoa da minha família a entrar na universidade pública, cheguei a passar na federal do Rio, mas como era longe e teria muitas despesas com moradia, entrei na de Sorocaba”, afirma. Se ela pudesse escolher, teria optado por bacharel: “Eu acabei me apaixonando pelo universo da educação, aí continuei a licenciatura, tanto que hoje também dou aula de biologia, conciliando com as tranças”.
Eu tenho essa preocupação em descartar corretamente o jumbo, muda a conscientização e as clientes já estão trazendo para cá. Acabamos de ter a COP30, eu acho que é o momento adequado para trazer isso à tona
Entre os modelos que executa, a Chanel utiliza apenas uma parte do material, já que ela fica na altura do pescoço. Isso gerava um incômodo em Vitória por ter que jogar fora aquela quantidade expressiva de jumbo; em uma das técnicas para realizar o acabamento desse penteado, é necessário queimar parte do cabelo. Quando Vitória fez esse processo, deduziu que poderia se tratar de plástico. Ao vê-lo derreter, questionou-se: “Esse material não tem como ser reciclado, não? Será que tem como dar um outro caminho para ele a não ser o lixo?”.
Para comprovar de qual material o cabelo sintético era feito, a trancista, que tinha vínculo com a área de conservação e meio ambiente por meio da faculdade, procurou a professora Jane Paiva, que pesquisava sobre plástico na UFSCar. Foi então que elas deram início ao estudo.
“A professora e mais uma aluna de mestrado fizeram os testes com um volume grande de jumbos, que eu levava para elas, e foi possível comprovar que os cabelos sintéticos realmente são feitos de plástico: o polipropileno, que derretia em uma determinada temperatura, comprovando que podem ser reciclados, tanto com resíduo, a pomada, quanto limpos”, explica. Como Afrovity já estava coletando material de outras meninas, incluindo de clientes para a pesquisa, ela desejava “mostrar para as pessoas a possibilidade de fazer a reciclagem do Jumbo”.
Inovação
Durante a pesquisa, não foram encontrados estudos no Brasil relacionados à reciclagem de cabelo sintético ou sua matéria-prima. Em relação à iniciativa, a trancista destaca que a questão do descarte do jumbo era uma inquietação recorrente entre as profissionais. “Não me sinto à vontade em usar o termo pioneira, porque sim, eu fui a pessoa que desenvolveu um projeto para a reciclagem de jumbo, só que, ao iniciar a divulgação, percebi que outras trancistas também tinham esse desejo”, ressalta.
Com a empresa de reciclagem encontrada, Vitória divulgou o projeto nas redes sociais e não acreditou quando ele tomou proporções maiores do que imaginava. “Foi meio assustador, eu não esperava o retorno das trancistas, e principalmente de fora de São Paulo… Muitas eram do Rio, do Nordeste e eu ficava sem saber o que fazer, porque a princípio só conseguiria atender às da capital paulista e região metropolitana”.
Segundo ela, algumas trancistas acabaram preenchendo o cadastro para fazerem parte, mas não enviam a coleta. A profissional acredita que a falta de conscientização da sociedade e o fato de o projeto não ter retorno financeiro podem ser motivos para essas desistências. Entretanto, aquelas que fazem parte veem a importância que o projeto pode ter, inclusive no meio ambiente.
Rede de conscientização
Aos 21 anos, Lavínia Cristina de Abreu já empreende há quatro anos e percebeu que o material usado nos atendimentos era plástico, da mesma forma que a Afrovity: “ao queimar, notou que derretia com facilidade”, conta. “Eu não sabia o que fazer com ele e só nós, trancistas, sabemos a quantidade de material que vai para o lixo e, sabendo o impacto que tem no meio ambiente, dói muito”.
Em um curso de extensão da faculdade, onde cursava recursos humanos, ela teve aulas de meio ambiente e foi ali que seu incômodo com o resto de jumbo começou a aumentar. A empreendedora até cogitou “levá-los para o ferro-velho”, na tentativa de ter o descarte correto.
“Foi muito engraçado, porque um dia depois que eu estava pensando sobre o descarte do material, foi que apareceu o vídeo da Vitória no Instagram, e aí, eu amei a ideia e entrei em contato”, revela Lavínia.
Vou trabalhar pelo menos reciclando parte desse material [cabelo sintético] que a gente não vai parar de comprar. Acredito que as pequenas ações são relevantes, já que somos parte desse ecossistema
A trancista Beatriz Araújo Domingos, de 27 anos, também tem seu próprio salão e trabalha nesse ramo há cinco anos. A princípio achava que os cabelos não podiam ser reciclados, embora ela já tentasse conscientizar suas clientes sobre o processo de retirada das tranças. Ela, que também conheceu o projeto por meio da internet, achou “muito interessante a iniciativa”, e enfatiza que “a gente tá fazendo um serviço que realmente tem um autodescarte, então nós, como trancistas, precisamos pensar no bem ou mal que isso faz à natureza”.
“Eu tenho essa preocupação em descartar corretamente o jumbo, muda a conscientização e as clientes já estão trazendo para cá. Acabamos de ter a COP30, eu acho que é o momento adequado para trazer isso à tona. E pensar no papel que a indústria da beleza pode ter, de forma consciente e sustentável, é importante”, destaca Beatriz.
Para Lavínia, o que pode dificultar o engajamento da ação é que as profissionais já têm o costume de jogar fora os cabelos no lixo comum, então elas podem acabar esquecendo, além da logística para entregar as coletas à Vitória.
“Eu moro longe dela e, para entregar os cabelos, acaba exigindo tempo e que nossas agendas batam. Eu acredito que é mais sobre isso, porque não é difícil descartar, é até mais fácil do que os nossos lixos comuns, do dia a dia”.
Futuro do Recicla Braids
A idealizadora do Recicla Braids contou que o “projeto foi acontecendo”, então muitas coisas ainda não estão como o esperado, já que sua primeira urgência foi “tirá-lo do papel” e, por isso, neste momento, ela está estruturando-o para poder expandir e reajustar o que já está fazendo.
“Agora estou entrando em partes mais burocráticas do projeto, como registro de marca e montar uma equipe. Eu já tenho uma advogada, marketing, uma amiga que está vendo editais, para que nós consigamos captar recursos”.
Segundo Vitória, atualmente não há nenhum retorno financeiro para ela. “Eu espero em algum momento ter, não para ganhar dinheiro, mas para conseguir ter tempo de me dedicar mais ao projeto, fazer reuniões e organizar as coletas, por exemplo”.
A trancista deseja em 2026 conseguir aumentar o envio de cabelo para as empresas de reciclagem: “Eu quero conseguir encontrar uma empresa que aceite os jumbos com pomada, porque assim quem usa as tranças, as consumidoras, também podem fazer suas coletas para nos enviar”.
Vitória deseja levar seu projeto de reciclagem para outros estados e quer começar pelo Rio de Janeiro, além de “recompensar” as profissionais que fazem parte. “Eu pretendo voltar alguma coisa para elas. Infelizmente não tem como ser em dinheiro, mas sim em curso, preparação, workshops, alguns incentivos para as integrantes e, no paralelo, usar minhas redes sociais para conscientizar as pessoas”, detalha.
Sobre o papel que o Recicla Braids está fazendo na preservação do meio ambiente, ela pondera: “Eu não tenho esse poder de mudar a cadeia de produção do plástico e eu sei que a indústria tem um peso gigantesco em desastres ambientais, então, por enquanto, eu vou trabalhar pelo menos reciclando parte desse material [cabelo sintético] que a gente não vai parar de comprar. Acredito que as pequenas ações são relevantes, já que somos parte desse ecossistema”.
