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Sobre tecnologia e apocalipse: a insensatez dos humanos

O cotidiano dá sinais eloquentes - e cada vez mais frequentes - de que estamos a caminho do precipício, mas insistimos em ignorar

ODS 10ODS 12ODS 13 • Publicada em 13 de abril de 2023 - 11:31 • Atualizada em 13 de abril de 2023 - 15:28

Jornalista assiste, no Kuwait, ao vídeo de Fedha, apresentadora criada por inteligência artificial. Foto Yasser Al-Zayyat/AFP
Jornalista assiste, no Kuwait, ao vídeo de Fedha, apresentadora criada por inteligência artificial: #vaivendo. Foto Yasser Al-Zayyat/AFP

Para encenar o apocalipse, Hollywood utiliza formato padrão: uma sequência vertiginosa, explosiva, pirotécnica, barulhenta e devastadora de cataclismas que, em poucos minutos, destrói o mundo. Assim, estabeleceu-se a estética do juízo final – explosões, desmoronamentos, tsunamis, terremotos, catástrofes numerosas e simultâneas, restos de humanos varridos do mapa até além do horizonte.

Mas a vida não é filme e pode – deve – não ser ligeiro assim. Até demorar muito mais do que um par de horas.

Leu essa? O planeta virou uma armadilha

Na realidade sempre desarrumada, um exterminador não viajará no tempo para sumir com o futuro líder rebelde, que resiste contra as evidências. Tampouco haverá a pílula vermelha, que permite enxergar a verdade além da Matrix. Muito menos os alienígenas malvadões, surgindo por trás das nuvens em naves gigantes para atear fogo em tudo. Será devagar – mas dá para perceber alguns sinais eloquentes.

O maior deles está no querido #Colabora dia sim, dia também: a crise climática. As ocorrências se sucedem, crescendo em progressão geométrica, mundo afora. Já se conhece o primeiro país que pode sumir do mapa com a subida dos oceanos. O mundo está mais quente, espécies são extintas, florestas padecem na devastação impiedosa – e os humanos que dominam o planeta fazem cera para tomar as devidas e urgentes providências.

Não pode haver juízo final mais heterodoxo, sem explosões, fogaréu, barulho, correria, tiro, po**ada e bomba. Prato cheio aos negacionistas, que zombam dos “ecochatos” e seus alertas teimosos. Dá, também, aquela preguicinha delícia para fazer a parte que cabe a cada um: consumir menos e com mais consciência, aposentar o carro, reciclar lixo, economizar recursos naturais, votar nos candidatos certos (e cobrá-los depois)… Muito trabalho, estresse, um suplício – só que a alternativa será pior.

Mas a humanidade parece surda, e dobra a aposta na insensatez. Num exemplo entre muitos, se entrega sem freios à dependência das máquinas, em especial o telefone celular. Sim, o apocalipse pode estar com você, na bolsa, no bolso – ou na mão, hipnotizando seus olhos e sua mente, para materializar a cena urbana e contemporânea de zumbis pelas calçadas, tropeçando uns nos outros, os olhos no aparelho, os dedos a correr por aplicativos, redes sociais, sites.

Lixo eletrônico a perder de vista na periferia de Acra, capital de Gana: realidade devastadora. Foto Reprodução

O celular se transformou em droga daquelas pesadas, que viciam inapelavelmente. Produziu até epidemia de vista cansada em crianças expostas excessivamente às telas. A indústria, claro, ignorou efeitos colaterais e foi atrás e pôs tudo para dentro dos aparelhinhos “smarts”. Espertos, aliás, não faltam nesse negócio. Comer, pagar os boletos, jogar, se divertir, ler, marcar uma consulta médica, acessar as informações mais variadas, saber para onde ir (literalmente, porque metaforicamente todo mundo anda sem rumo) – está tudo lá.

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#sóquenão. As fake news inoculam cérebros e almas mais vulneráveis também pelo celular, levando a bizarrices como eleger o Bolsonaro. Em outra faceta do feitiço, nada ganha em credibilidade e aceitação do que brota no aparelhinho. O Lula morreu e botaram um sósia no lugar, se tomar vacina vira jacaré, o Brasil vendeu a Copa para a Nike, a terra é plana. Tudo no celular – logo, verdade.

De novo, a indústria radicaliza o mergulho. Outro exemplo: com o pix, passamos a carregar todo o nosso dinheiro – antes, sob guarda do banco, que nunca foi grande coisa, mas estancava a vulnerabilidade – dentro do telefone. E vamos com ele inteiro passear na rua. Bicho sagaz, o ser humano.

A etapa seguinte da trama apresenta golpes os mais surrealistas e o crescimento vertiginoso dos roubos de celulares. Mas tente, você aí, interagir com uma instituição financeira sem o aparelho. Impossível – e, se tentar, ainda fica com fama de maluco. (Alerta de #whitepeopleproblem.)

Diante de tão patológica dependência, o aparelho, além de não faltar, tampouco pode falhar. Nova arapuca: ele é concebido para envelhecer velozmente, a tal obsolescência programada, face perversa da indústria digital. Programas começam a não rodar, aplicativos deixam de atualizar, o bicho trava… E surgem as propagandas que massificam a necessidade urgente do modelo mais novo, com a câmera mais potente, a tela mais iluminada, a memória mais espaçosa, pipipi popopó. Serviço completo.

O capitalismo, então, dá o braço à crise climática, na produção brutal de lixo eletrônico. Porque jogar fora, na verdade, não existe – os objetos somente trocam de lugar. Nova cena para o apocalipse: países, como Gana, que compram os rejeitos, até virarem depósitos chocantes de quinquilharias descartadas. (O processo é todo errado, porque, na fabricação, aparelhos eletrônicos usam metais que, na extração, destroem florestas como a Amazônia.)

Mas os humanos fazem como Millor Fernandes, gênio menos citado do que deveria, comentou um dia, sobre um ex-presidente: “Incorreu no erro e, não obstante, prosseguiu”. As marcas mais valorizadas são justamente das empresas de tecnologia. Outros setores inteiros veem empregos, possibilidades e perspectivas se esvanecerem, mas ninguém tem a coragem do passo atrás, do freio de arrumação.

Inimigo da tecnologia? Jamais. Os avanços, nas áreas mais variadas, são evidentes e fascinantes. Mas uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa. Estamos desafiados a domar nossa própria volúpia diante do encanto que os equipamentos ostentam. Tem muito de armadilha.

Como, aliás, evidencia a cereja recém-chegada nesse bolo esquisito: a inteligência artificial. Máquinas que realizam funções antes exclusivas dos humanos com eficiência quase igual – e fazer até melhor é, obviamente, mera questão de tempo. O avanço tecnológico fascina, a gente vai lá brincar, se associar, decifrar as melhores formas de utilizar. A marcha não será interrompida, levando, no bojo, as poucas ocupações que sobraram do capítulo anterior da revolução.

E as máquinas – perdão pela repetição – ganham mais INTELIGÊNCIA. O que lembra isso? Skynet, T-101, Dia do Julgamento… Ah, mas é cinema, deixa de ser paranoico, colunista! Pode ser – só não adianta esperar John Connor para liderar a resistência.

Ele, sim, só tem em Hollywood.

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