“Aqui é tudo sem veneno”, diz Renato Sebastião, mostrando a plantação de abóbora, beterraba, cebola, alface, melancia, aipim, quiabo, feijão, milho, rabanete e maxixe na entrada do acampamento Cícero Guedes, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) em Campos dos Goytacazes. É uma área de 10 mil metros quadrados cuja plantação de alimentos tem menos de dois meses e já começou a render as primeiras colheitas. Seus produtos abastecem a cozinha coletiva, que serve a mais de 300 famílias que, em 24 de junho, ocuparam uma das três propriedades improdutivas da antiga Usina Cambahyba, a Fazenda Saquarema.
Leu essa? Professor de Agroecologia: ‘Soberania nacional e alimentar foi colocada em jogo’
Sebastião é coordenador de infraestrutura do acampamento, já foi motorista de ônibus, entregador de gás, pedreiro, sabe fazer uma casa “do buraco no chão até o telhado”, mas carrega a lembrança de quando era criança e herdava as enxadas antigas dos irmãos mais velhos. Por isso, está na expectativa de ter seu lote para poder plantar mais.
Rodrigo Alves também espera viver de agricultura. Antes mesmo de ter sua terra, já planta no espaço de 70 metros quadrados que cerca seu barraco no acampamento. Quiabo, couve, abóbora, milho, tomate, banana e graviola, tudo isso também sem usar agrotóxico. Mas o xodó é o pé de jiló, que ainda é transportado num vaso de cerâmica que ele mesmo fez, aguardando um local definitivo para ser transplantado para o chão. O agricultor aproveita cada pedacinho de terra: “Eu colhia abóbora em cima de um galinheiro de nove metros quadrados; era o espaço que eu tinha. A plantação protegia o galinheiro do calor do Sol”, lembra Alves, vendo o lado bom da empreitada e esperando poder plantar numa área maior.
A estimativa do MST é que cada família, uma vez assentada, possa ter um lote de cerca de 1 hectare, aumentando o cultivo agroecológico. “É um sonho tão grande que você nem imagina”, emociona-se o agricultor. O desejo se aproximou da realidade em 5 de julho, quando a Justiça Federal concedeu as terras da antiga Usina Cambahyba, cerca de 1.300 hectares, para o Instituto Nacional da Reforma Agrária (Incra) – o processo de desapropriação tramitava desde 2013. No entanto, no último dia 21, uma visita do superintendente regional do Incra, Cassius Rodrigo de Almeida e Silva, contradizendo o nome da instituição que representa, mostrou ser contra a determinação da Justiça. Segundo nota emitida pela direção estadual do MST no Rio de Janeiro, o superintendente chegou ao acampamento “escoltado por carros da Polícia Federal fortemente armada e com uso de coletes de balas” e se dirigiu a alguns acampados “em tom de ameaça de reintegração de posse”.
Leu essa? Campanha conecta agricultores orgânicos a comunidades em insegurança alimentar
No entanto, de acordo com o processo de desapropriação na 1ª Vara Federal de Campos, não houve mudança na decisão da Justiça. “Apesar das ameaças do Incra, nestes dois meses em que as famílias estão se estruturando e aguardando para serem assentadas, estão com horta com produção agroecológica e já realizaram a primeira colheita”, informa a nota do MST. A reportagem procurou o superintendente do Incra, mas não teve retorno.
Contraste com a produção das usinas
Os primeiros alimentos orgânicos colhidos são fruto de 2.500 mudas de hortaliças que foram doadas pela Cedae. O plantio começou em 10 de julho e, pouco mais de um mês depois, os agricultores estavam fazendo a semeadura, gerando mudas próprias. O trabalho começa logo que amanhece, diariamente, por equipes que se revezam em suas funções. “Eu me encarrego da molhagem, que é feita de manhã e no fim da tarde”, diz Adriano Alves, coordenador de produção do acampamento e estudioso de agronomia que se dedica a ampliar as características agroecológicas da horta a cada dia. Outras 500 mudas de árvores frutíferas foram plantadas na área, que recebeu o nome de Bosque Marielle Franco.
Um dos aspectos que colaboram para o cultivo mais sustentável é a policultura. Adriano explica que árvores frutíferas – como pé de araçá e uvaia – foram plantadas em consórcio com as abóboras: “Assim o solo fica mais rico, uma planta beneficia a outra”. A prática também contribui para afastar pragas: “Se um inseto quer comer uma determinada folha mas do lado dessa folha tiver capim-cidreira ou capim-limão, o ataque acaba sendo inibido”. Quanto ao uso das árvores frutíferas, há uma função a mais: “Nosso ecossistema está muito desregulado por causa de desmatamentos. O reflorestamento traz equilíbrio para plantas e animais”, ensina.
O tipo de água usada na irrigação também merece cuidado. Espera-se que seja inaugurado, ainda em setembro, um sistema a partir de um poço artesiano feito no local, com água mais adequada ao cultivo de alimentos do que a que chega pela tubulação da rua por não conter aditivos químicos.
Professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf), o geógrafo Marcos Pedlowski acompanha os trabalhos feitos pelos assentamentos do MST na região há 24 anos e acredita que a prática agroecológica é uma mudança necessária no cultivo desse território, principalmente porque os antigos proprietários privilegiaram apenas um tipo de cultura, especialmente de cana-de-açúcar, por muitos anos. “O solo tem uma memória química que afeta sua estrutura e a biota (conjunto dos seres vivos). As terras que receberam agrotóxico por muito tempo, como as das usinas de Campos, podem levar de três a cinco anos para se recuperarem totalmente”.
A agricultura familiar, segundo Pedlowski, contribui muito para a recuperação do solo intoxicado. Mesmo as produções que não são agroecológicas são melhores do que as dos latifúndios: “Não é o assentado quem usa o grosso do agrotóxico. Ele é usado nos commodities de exportação, como soja, cana-de-açúcar, milho e algodão. Em comparação com o latifúndio, esse consumo é considerado residual na agricultura familiar”, comenta o professor.
Gostando do conteúdo? Nossas notícias também podem chegar no seu e-mail.
Veja o que já enviamosA cana-de-açúcar, que teve seu auge no século 19, ainda é o principal produto agrícola em Campos dos Goytacazes. De acordo com o relatório da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado do Rio de Janeiro (Emater/RJ), o município lidera a produção de cana. Em 2020, teve uma colheita de 1,8 tonelada de 1.715 produtores. “Como a maior parte do plantio de cana está nos latifúndios, a tendência histórica do uso de um grande volume de agrotóxico nesse cultivo persiste, não há plantio de cana sem agrotóxico porque quando a escala de produção aumenta muito, favorece o surgimento de predadores, as pragas agrícolas”, explica Marcos Pedlowski.
Em 2017, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dos 7.789 estabelecimentos agropecuários do município, 7.082 não usaram agrotóxicos, mas isto não significa que a maior parte da produção não os utiliza. O geógrafo argumenta que, em Campos, poucas propriedades concentram grande parte da área agrícola do município: “Isso quer dizer que um pequeno número de propriedades que dizem usar agrotóxico pode representar um altíssimo volume do produto”, diz ele, lembrando do intenso uso do inseticida Dicloro-Difenil-Tricloroetano (DDT), que tem mercúrio em sua fórmula, nas grandes plantações: “Todas as vezes que tinha queimada nos campos de cana, era como se tivesse lançado uma bomba de mercúrio na atmosfera”.
A produção agroecológica de alimentos, que chega principalmente pela agricultura familiar, contrasta com essas práticas latifundiárias e, segundo Pedlowski, pode transformar a experiência do acampamento Cícero Guedes num modelo de produção de alimentos, se o trabalho desenvolvido for integrado a outros assentamento e tiver o apoio de políticas públicas. “Os assentados acabam produzindo muita comida, mas não são beneficiados porque não recebem apoio dos governos”, diz o professor.
Programa de alimentos ameaçado
Uma das principais políticas que contribui para a produção de pequenos agricultores é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Mas, criado em 2003 pelo governo federal para incentivar a agricultura familiar e promover acesso à alimentação, o PAA vem sofrendo sucessivos cortes em seu orçamento desde 2015. Foi da defasagem do programa federal que surgiu o Terra Crioula do estado do Rio de Janeiro, um trabalho cooperado que reúne os produtores agroecológicos do MST de três dos 11 assentamentos do Norte Fluminense: Dandara dos Palmares, Zumbi dos Palmares e Josué de Castro, responsáveis por pelo menos 600 quilos de produtos que são comercializados pelo coletivo por mês. “Com o esfacelamento do programa do governo, nasceu a demanda de levar os produtos para serem comercializados na cidade sem atravessador”, conta Carlos Gouveia, engenheiro agrônomo que trabalha no setor de produção do MST desde 2010.
O militante acredita que o acampamento Cícero Guedes possa se tornar um importante fornecedor de produtos orgânicos. “Já começamos a colher alimentos de ciclo curto na horta coletiva. Todos os setores têm se mobilizado para que o acampamento tenha suas próprias referências, suas formas de produção, seus coordenadores. Agora estamos numa segunda etapa, melhorando a organização para poder avançar na produção”, diz Gouveia. Esta nova fase também inclui a construção de uma escola para crianças e adultos, o Barracão da Educação, que ainda está em processo.
A presença da agroecologia nos acampamentos do MST é uma orientação do seu Programa de Reforma Agrária Popular de 2014. O documento propõe “produzir alimentos com o povo e para o povo, cultivando ambientes sustentáveis com produção saudável, preferencialmente, a partir de técnicas agroecológicas, livres de agrotóxicos e sementes transgênicas”. No entanto, essa preocupação vem de antes da redação deste documento, há pelo menos 20 anos.
Alerta de 20 anos
Em 2001, o MST realizou a Jornada Agroecológica para debater o assunto. Em 2010, na primeira Feira da Reforma Agrária no Rio de Janeiro, Cícero Guedes (1964-2013), principal liderança do movimento no estado, resumiu a importância dessa forma de produção: “A agroecologia protege as nascentes, as matas, o solo e o o meio ambiente, recuperando as terras degradadas com fogo e agrotóxico, que é a prática dos usineiros”, disse, em depoimento gravado em vídeo.
Guedes foi assassinado em 2013 a poucos metros do acampamento que hoje leva seu nome, assim como a feira. Na ocasião, o MST ocupava uma área da Usina Cambahyba, como hoje. Após a morte do líder, o acampamento foi desfeito, mas não o empenho para tornar as mesmas terras produtivas. Prova disso é a atual ocupação e a destinação das fazendas para a reforma agrária. Luana Carvalho, da direção nacional do MST, considera a experiência do Acampamento Cícero Guedes um momento histórico. “Porque são muitos anos de luta e resistência e porque esse latifúndio tem uma história de muita violência e exploração do trabalho”, diz a dirigente, referindo-se aos vários ataques aos direitos humanos ocorridos na região.
Além do assassinato de Guedes, corpos de presos políticos da ditadura militar foram incinerados na usina, de acordo com registros da Comissão da Verdade – e a mão de obra escrava predominava nos latifúndios, a ponto de Campos ficar conhecida como a última cidade brasileira a aderir à abolição. “Plantar e colher nessas terras, transformá-la em espaço de reforma agrária popular é semear a vida do Cícero. É como se a gente brotasse, renascesse tudo que foi a história dele e a do MST”, afirma Luana.
Renato Sebastião concorda. “É por isso que nossa horta coletiva é bem na frente do acampamento: pra todo mundo ver que o Cícero está com a gente”.