Trilha Transcarioca sem visitantes enfrenta mais queimadas e desmatamento

Corpo de Guarda-Parques do Inea enfrenta o fogo no Parque Estadual da Pedra Branca: pandemia afastou visitas da Trilha Transcarioca e incidência de queimadas e desmatamento aumentou (Foto: Inea/Corpo de Guarda-Parques)

Pandemia afastou usuários que ajudam a preservar Mata Atlântica na Floresta da Tijuca, no Parque Pedra Branca e outras sete unidades de conservação

Por Guilherme Tupinambá | ODS 11ODS 15 • Publicada em 2 de agosto de 2021 - 10:29 • Atualizada em 10 de agosto de 2021 - 08:57

Corpo de Guarda-Parques do Inea enfrenta o fogo no Parque Estadual da Pedra Branca: pandemia afastou visitas da Trilha Transcarioca e incidência de queimadas e desmatamento aumentou (Foto: Inea/Corpo de Guarda-Parques)

A Transcarioca, maior trilha urbana de longo percurso do país, mobiliza milhares de visitantes de diversas partes do mundo, atravessando a cidade do Rio de Janeiro desde a Barra de Guaratiba, na Zona Oeste, até o Morro Pão de Açúcar, na Zona Sul, em um percurso de cerca de 180 quilômetros. O Movimento Trilha Transcarioca reúne mais de dez mil voluntários que contribuem com a manutenção dos trechos e a preservação da área de Mata Atlântica ao redor da trilha e atividades de reflorestamento de plantas nativas do bioma. Entretanto, com a redução do número de visitantes e voluntários, causada pela pandemia da Covid-19, aumentaram os casos de queimadas, desmatamento e ocupações ilegais dentro das unidades de conservação.

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Coordenadora de comunicação do Movimento Trilha Transcarioca, Luciana Nogueira aponta que a queda do número de visitantes durante a pandemia está diretamente relacionada com o aumento dos registros de focos de incêndio na Mata Atlântica carioca. “Nesse período de pandemia, a situação piorou, justamente porque não tinham caminhantes e turistas no parque. A fiscalização foi muito prejudicada, porque o frequentador é o olheiro”, disse Luciana.

Todos esses incêndios que temos hoje são criminosos. A floresta não pega fogo, a floresta está numa área de Mata Atlântica, de floresta tropical úmida.

A Trilha Transcarioca atravessa nove unidades de conservação – entre elas, o Parque Estadual da Pedra Branca e o Parque Nacional da Tijuca, que, juntos, representam 16 dos seus 25 trechos. A Transcarioca também passa pelo Parque Natural Municipal de Grumari, Parque Natural Municipal da Cidade, Parque Natural Municipal da Catacumba, Parque Natural Municipal Fonte da Saudade, Parque Natural Municipal Jose Guilerme Merquior, Parque Natural Municipal Paisagem Carioca e pelo Monumento Natural dos Morros do Pão de Açúcar e da Urca.

Mesmo com a colaboração dos fiscais desses nove parques ecológicos, a quantidade de funcionários não é o suficiente para a gestão dos seus 180 quilômetros. Sem os voluntários, cresceram os números de queimadas e desmatamentos, principalmente nos parques maiores.

Pelo menos 79 queimadas foram registradas no município do Rio entre julho de 2020 e janeiro de 2021, uma média de um incêndio a cada dois dias e meio, de acordo com dados coletados pelo InFogo, sistema recém-criado de monitoramento de incêndios florestais. O mapeamento das queimadas levou em conta toda a região municipal do Rio de Janeiro, com dados levantados pela NASA, pelo INPE e pelo próprio InFogo. A área onde a situação foi mais grave foi na região da Piraquara, próxima a Realengo, área do Trecho 7 da Trilha Transcarioca, na Zona Norte.

“Todos esses incêndios que temos hoje são criminosos”, afirma Diego Monsores, coordenador de Reflorestamento da Transcarioca.  “A floresta não pega fogo, a floresta está numa área de Mata Atlântica, de floresta tropical úmida. O que acontece hoje é que, infelizmente, a cidade tende a pressionar muito os fragmentos verdes”, lamenta o voluntário, morador de Realengo que tem a face norte do Parque Estadual da Pedra Branca como quintal de casa. Desde 2014, ele visita a Trilha Transcarioca e, em 2019, se tornou adotante do Trecho 7 (Pau-da-Fome-Piraquara), contribuindo no reflorestamento e manejo do ambiente.

Diego sabe que a face norte é mais seca, sendo mais propensa a sofrer incêndios florestais, por não receber as correntes úmidas de ar vindas do mar que atingem a face sul. Mas observou ainda mais queimadas durante o ano de 2020: “No ano passado, nós tivemos altos índices de queimadas. O pessoal continuou soltando balão, continuou botando fogo no lixo… Nós achávamos que iria diminuir, mas não foi isso que foi constatado”, contou.

Segundo o voluntário, muitas queimadas nas chamadas zonas de amortecimento (regiões de borda de parque) são resultado da ação dos moradores que ateiam fogo a seu próprio lixo. A prática da pecuária realizada por moradores também gera conflitos com funcionários do Parque Estadual da Pedra Branca. Muitos animais atravessam as zonas de amortecimento e ficam pastando dentro da unidade de conservação. “Fazemos um trabalho de educação ambiental com os moradores das zonas de amortecimento, justamente com o objetivo de evitar que mais queimadas e desmatamentos ocorram”, conta Diego.

Combate ao fogo na na Serra do Barata, no Parque Estadual da Pedra Branca: incêndios são frutos de ação humana (Foto: Corpo de Guarda-Parques/Inea)
Combate ao fogo na na Serra do Barata, no Parque Estadual da Pedra Branca: incêndios são frutos de ação humana (Foto: Corpo de Guarda-Parques/Inea)

Luciana Nogueira reitera que a maioria dos incêndios florestais não é acidental: as duas grandes causas são as queimadas para pasto, realizadas pelos moradores que vivem em zonas rurais próximas aos parques, e focos de incêndio resultantes da queda de balões, principalmente durante a época das festas juninas. Já o desmate é para pasto, plantio e construções ilegais.

Em março de 2020, com a pandemia, todo o trabalho voluntário no Parque Estadual da Pedra Branca e no Parque Nacional da Tijuca foi suspenso. Entretanto, quatro meses depois, os índices de queimadas no Parque Estadual da Pedra Branca começaram a subir e foi concedida a permissão para o retorno dos voluntários para ajudar no trabalho de reflorestamento, o único permitido atualmente. De acordo com os dados do Inea, até abril de 2020, não haviam sido registrados focos de incêndios nos parques estaduais no município. A partir de maio, as brigadas de fogo foram mobilizadas para, pelo menos, duas ocorrências por mês até agosto, quando a trilha foi reaberta.

No Rio, o desmatamento está muito ligado à ocupação irregular, e a ocupação irregular está ligada à milícia na Zona Oeste. As milícias são um problema de segurança. É ilusão achar que vamos consertar o problema de segurança na Trilha Transcarioca, sem consertar no Rio de Janeiro, sem consertar no Brasil

O Inea informou que registra e atende às ocorrências de incêndios florestais através do Corpo de Guarda-Parques, “tendo como protocolo acionar o Corpo de Bombeiros da região, para atuar em conjunto ou em apoio Institucional, principalmente dentro dos limites e zonas de amortecimento das Unidades de Conservação Estaduais”. Além disso, acrescentou o órgão estadual em nota, é realizado diariamente o monitoramento pelos Guarda-Parques em campo, além da observação e controle dos pontos quentes divulgado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

No Parque Nacional da Tijuca, apenas o trabalho de manutenção da trilha está sendo feito. “Não está sendo feito nada novo, porque a gente aguarda autorização do ICMBio para retornar com o trabalho voluntário. A trilha sofre muito com a estiagem, com a falta de água, com as queimadas: o trabalho voluntário não pode parar”, defende Luciana. Os responsáveis pelo Parque Nacional da Tijuca não quiseram atender a reportagem.

Trilha Transcarioca: desafios além da pandemia

Os problemas da Tranascarioca foram intensificados com a pandemia, mas, com certeza, já existiam antes da chegada do novo coronavírus, lembra o diplomata e ambientalista Pedro Cunha e Menezes, que idealizadou a Transcarioca ainda na década de 1980, sonhando com um Rio de Janeiro conectado por meio das trilhas que cortam o maciço da Tijuca e o maciço da Pedra Branca. Na chegada do século 21, Pedro era diretor-executivo do Parque Nacional da Tijuca e começou a tirar a ideia do papel, com a criação de dois circuitos circulares sinalizados. As trilhas foram avançando com apoio de ambientalistas, montanhistas e voluntários. Mas, somente 2017, a Trilha Transcarioca foi instituída por decreto municipal e passou a ser reconhecida internacionalmente. O principal objetivo atual é fazer com que seja também reconhecida pelos cariocas e brasileiros como um patrimônio que precisa de manutenção constante.

O diplomata Pedro Cunha e Menezes – atualmente servindo na embaixada do Brasil no Equador – segue em contato frequente com os coordenadores do Movimento Trilha Transcarioca. Sua maior preocupação são as ocupações ilegais, que vêm crescendo significativamente e são consequência, em sua perspectiva, da falta de capacidade do Estado de manter a integridade das unidades de conservação.

Fogo no Parque Nacional da Tijuca, próximo à Estrada do Itanhangá, na Barra: unidades de conservação sofrem com queimadas, desmatamento e ocupações irregulares (Foto: Movimento Trilha Transcarioca)

Para o ambientalista, o desmatamento é um problema diretamente relacionado a outro enfrentado diariamente pelo carioca, seja na floresta ou no asfalto: a segurança pública. “O problema da segurança é menor nas trilhas do que fora delas”, afirmou. “No Rio, o desmatamento está muito ligado à ocupação irregular, e a ocupação irregular está ligada à milícia na Zona Oeste. As milícias são um problema de segurança. É ilusão achar que vamos consertar o problema de segurança na Trilha Transcarioca, sem consertar no Rio de Janeiro, sem consertar no Brasil”, argumenta Pedro.

Um dos mais famosos e frequentados, o Trecho 18 (Primatas x Paineiras/Corcovado) é o que registra mais casos de assalto. Essa questão leva a um paradoxo: quanto mais famosa a trilha, mais pessoas podem se interessar no trabalho voluntário, assim aumentando o contingente de protetores da Mata Atlântica carioca. Porém, mais assaltantes podem ver no local uma oportunidade, enquanto as trilhas não tão conhecidas podem não estar com a manutenção em dia por causa do número reduzido de voluntários, mas a chance de um turista ser assaltado é menor.

Informado como inacabado pelo site da Transcarioca, o Trecho 10, que passa pela Serra da Covanca, conectaria o Parque Estadual da Pedra Branca ao Parque Nacional da Tijuca. Mas, por ser uma zona de risco, atravessando regiões dominadas tanto pelo tráfico quanto pela milícia, a trilha não consta no site oficial, embora exista. Os gestores optaram por não divulgar para não expor trilheiros a qualquer perigo. Como não há segurança nem visitantes, o desmatamento ilegal por lá ocorre com mais facilidade.

“É um trecho inseguro. Nós não temos como garantir a segurança de ninguém. Eu mesma já encontrei cartucho de bala. É um lugar fechado única e exclusivamente por falta de segurança. A gente informa que é uma área que costuma ter a presença de criminosos. A gente tenta conversar com a segurança pública. O CPAm, que é a polícia ambiental da Polícia Militar, tem ajudado muito. Mas o Trecho 10 não é aconselhável”, afirma Luciana.

O Movimento Trilha Transcarioca lamenta a falta de investimento público na trilha. O grupo voluntário recebe doações e faz parcerias para se sustentar, além de buscar recursos, através de emendas parlamentares destinadas ao Mosaico Carioca, criado em 2010 para reunir 27 unidades de conservação – federais, estaduais e municipais – no Rio de Janeiro e em seu retorno.  A gestão e aplicação desses recursos, para diferentes atividades do Mosaico, são responsabilidade do ICMBio.

Fogo na face norte do Maciço da Pedra Branca: ação de traficantes e milicianos dificulta conservação de parques (Foto: Movimento Trilha Carioca)
Fogo na face norte do Maciço da Pedra Branca: ação de traficantes e milicianos dificulta conservação de parques (Foto: Movimento Trilha Carioca)

Visitantes podem ser reflorestadores e guardiões

Gestor do Projeto Pão de Açúcar Verde, ação de reflorestamento das faces leste e sul do morro em parceria com voluntários da Trilha Transcarioca, o ambientalista Sávio Teixeira partilha da visão de Luciana: a presença de frequentadores na Trilha Transcarioca é fundamental para o reflorestamento da Mata Atlântica e o combate ao capim colonião (Panicum maximum), espécie exótica invasora que dominava as áreas desmatadas e gradativamente substituía a vegetação da Mata Atlântica. De origem africana, o capim colonião não se adaptava bem ao inverno carioca, ficando seco e se tornando combustível para as queimadas florestais. “As áreas reflorestadas seguraram incêndios que começaram em áreas desmatadas com espécies que não eram nativas da Mata Atlântica”, explica Teixeira.

Com os voluntários realizando a manutenção da trilha e das áreas ao seu redor, os esforços para a preservação da natureza carioca não ficam sob responsabilidade exclusiva dos funcionários das unidades de conservação. Para os voluntários da Transcarioca, as queimadas, o desmatamento e as ocupações irregulares são consequência da falta de fiscalização, justamente porque os visitantes – que passam pelas trilhas dos parques e denunciam irregularidades – ainda são poucos. “A visitação também é uma estratégia de conservação”, enfatiza Pedro Cunha e Menezes.

Para o idealizador do movimento, a Trilha Transcarioca pode ser vista como uma ferramenta de combate às queimadas, ao desmatamento e às ocupações através de três pilares: conectividade; geração de emprego e renda; recriação de qualidade. “Numa sociedade capitalista democrática, a floresta tem que fazer sentido financeiramente”, argumenta.

As denúncias realizadas por frequentadores da trilha podem ajudar as as autoridades a tomarem conhecimento de áreas da Mata Atlântica desmatadas, queimadas ou com qualquer outro problema nas regiões marginais à trilha e dentro dos parques. No aplicativo da Trilha Transcarioca (Transcarioca Trail, disponível para iOS e Android), existe a seção “Guardião”, onde o usuário pode fazer denúncias, através de textos e fotos, que serão recebidas pelos adotantes do trecho.

“É uma ferramenta essencial para o nosso trabalho de manutenção, mas a gente teve uma baixa disso na pandemia porque não tinha gente caminhando”, afirma Luciana Nogueira, lembrando que, com a pandemia, os problemas que já existiam só aumentaram. O Movimento Trilha Transcarioca aponta que, em paralelo ao retorno da visitação é preciso que o número de voluntários também aumente – ou pelo menos volte a ser o que era – assim que a crise sanitária acabar.

Guilherme Tupinambá

Guilherme Tupinambá é jornalista recém-formado na PUC-Rio. Gosta de escrever sobre ecologia, artes e política. É pesquisador de história da música brasileira e estudante de teoria musical, buscando relacionar a vida profissional no jornalismo com a prática de saxofone. É repórter na WebTV Redentor e professor no Curso de Música e Tecnologia Studio 9.

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