Saberes da Mangueira a serviço da administração pública no Rio

Rafaela Bastos, no Centro de Operações da Prefeitura e na Sapucaí: aposta no estudo e empoderamento como passista. Fotos do acervo pessoal

Passista e musa da Estação Primeira, a geógrafa Rafaela Bastos será a presidente da Fundação João Goulart, na nova gestão da prefeitura carioca

Por Aydano André Motta | ODS 11ODS 5 • Publicada em 30 de dezembro de 2020 - 08:16 • Atualizada em 5 de janeiro de 2021 - 09:38

Rafaela Bastos, no Centro de Operações da Prefeitura e na Sapucaí: aposta no estudo e empoderamento como passista. Fotos do acervo pessoal

Era o Dia Nacional do Samba, 2 de Dezembro, mas nem de longe parecia, no vaivém engravatado do edifício da Firjan, a Federação das Indústrias do Rio, numa esquina do Centro carioca. No início da tarde, duas cidades historicamente separadas se uniram, com a chegada de uma mulher negra, que cruzou com passos decididos – de bamba, veremos – o saguão asséptico, a caminho do terceiro andar. No enclave da elite empresarial, ninho de homens brancos, Rafaela Bastos, musa da Mangueira, passista-show de longa milhagem na Sapucaí, tornou-se presidente de uma autarquia municipal.

Geógrafa com especializações em gerenciamento de projetos, branding e economia comportamental, ela foi encontrar o então prefeito eleito, Eduardo Paes, e seus dois comandados mais importantes, os secretários Pedro Paulo (Fazenda e Planejamento) e Marcelo Calero (Governo e Integridade Pública), no gabinete de transição instalado no prédio. Uma hora depois, saiu com a indicação para presidir, a partir desta sexta-feira (1º) a Fundação João Goulart, que forma lideranças e aprimora as ferramentas de gestão do Executivo carioca.

Rafaela não caiu de paraquedas na administração pública. Trabalha na Prefeitura há seis anos, atravessando o segundo governo de Paes e o do bispo Marcelo Crivella nas secretarias de Conservação e Cultura. O último cargo dela foi justamente na fundação que agora presidirá, como assistente do antecessor, José Moulin Netto.

Os estudos – “Nunca parei, nem pretendo”, avisa, sobre a própria formação – convivem com o trabalho e o cotidiano de componente da Mangueira, muito mais extenso, em dores e delícias, do que o simples desfile na Sapucaí. Foram 13 anos como passista e outros 10 na função de musa, quase todo o tempo no grupo de shows da escola, apresentando-se por todo o país e em vários destinos no exterior.

(Breve tutorial: na Mangueira, as musas são mulheres da comunidade, nascidas no morro ou de ligação umbilical com a verde e rosa. São as dançarinas mais importantes, guardiãs de uma das preciosas identidades da Estação Primeira.)

Rafaela tem consciência de que conseguiu lugar no governo pela sua capacidade – mas por ser mulher negra também. Logo depois de eleito, Paes prometeu montar a equipe tendo diversidade como um dos critérios, mas decepcionou no início, ao escalar um convencional grupo de homens e mulheres brancos. Indicada por alguns interlocutores, a geógrafa acabou, assim, se valorizando também por gênero e raça.

Sem problema. “Das poucas vezes na vida que ser negra foi uma vantagem”, ela brinca, no jeito irônico e sutil que emoldura uma personalidade serena. “Não estou me sentindo cotista, mas a ideia não me incomoda”, assegura, integrante da primeira turma de Geografia a entrar na Uerj pela ação afirmativa. “Foi muito importante participar daquela experiência”, atesta ela, que se formou em 2008, indo trabalhar com georreferenciamento em Furnas.

“No encontro, ninguém tocou no assunto. Falamos apenas do trabalho”, relembra, referindo-se ao plano de valorizar a gestão pública, apostando na formação e na criação de projetos inovadores para o desenvolvimento gerencial. Logo no início, o portelense Eduardo Paes não deixou o Carnaval de fora. “Ei, conheço você da Sapucaí”, comentou, logo no início. Rafaela confirmou, acrescentando ter foto com o prefeito, que se esbalda na pista durante o espetáculo das escolas.

Vencido o momento social, ela se estendeu sobre os planos para o cargo, no qual chefiará 12 funcionários, todos concursados, dos quadros de carreira da fundação. “Não vou indicar ninguém”, planeja. “Quero trabalhar as questões objetivas do administrador, sem esquecer o lado emocional. A boa gestão compreende um sistema de tomadores de decisão em cargos essenciais. Precisamos qualificar essas competências”, detalha.

Levará, para a nova função, os saberes acumulados na Estação Primeira. “Há aspectos da vida de passista que me credenciam como gestora pública”, aponta. “Escola de samba tem visão sistêmica do risco. Todo o processo que desemboca no desfile trabalha com a questão e funciona”.

Mais: “Na Mangueira, aprendi a importância de ter dignidade. Vivi todas as dores e todos os encantos daquele mundo. O desestímulo e os obstáculos por lá são permanentes”, constata ela, que até hoje faz o cabelo no morro – além do contato permanente com os muitos amigos que mantém entre os herdeiros de Cartola, Saturnino, Zé Espinguela, Carlos Cachaça, Dona Neuma, Delegado e tantos outros ícones da cultura popular. Aqui, ela invoca o conceito de “Sala de Recepção”, obra-prima de Cartola. “Vai me ajudar a ter sempre presente a perspectiva do cidadão na gestão pública”.

Com os pais, na quadra da Mangueira: família unida no amor pela verde e rosa. Foto do acervo pessoal
Com os pais, na quadra da Mangueira: família unida no amor pela verde e rosa. Foto de Valéria del Cueto

Rafaela chegou na escola adolescente, levada pelos pais (a mãe, costureira, e o pai, alfaiate, explicação para as roupas cotidianamente impecáveis). Apaixonou-se no primeiro rufar da bateria que não tem surdo de segunda e mergulhou naquele mundo único, legitimando-se no dia a dia da escola.

Como aqui é o Brasil, encarou toda a sorte de machismo e preconceito, mas segurou a barra. “Quando sabem que sou passista, surgem questionamentos motivados pelo estereótipo da mulher que dança com sensualidade e pouca roupa”, reconhece. “Fui estudar a função, conhecer sua importância, para combater esse racismo estrutural”, relata. Em toda sua trajetória, trabalhou pelo empoderamento das dançarinas e dos outros artistas do Carnaval, desvalorizados pela sociedade preconceituosa que os espreita. Tornou-se líder das musas, negociando com a própria direção verde e rosa melhores condições para o grupo.

Rafaela tinha encerrado a carreira na Sapucaí em 2019, no título inesquecível do enredo “Histórias para ninar gente grande”, do carnavalesco Leandro Vieira, desfile famoso pela homenagem a Marielle Franco. Ensaiou outra carreira na tribo do samba, criando projeto de branding que redesenhou o emblema da Mangueira. O amadorismo pontilhado de idiossincrasias do poder na folia terminou por afastá-la.

Mas quando houver Carnaval novamente, a musa Rafaela Bastos deverá reaparecer com seu tufão nos quadris e todo o repertório. “Penso em voltar para alterar essa narrativa e mostrar como os sambistas são multitarefa”, explica, condicionando o retorno a conseguir administrar os muitos ensaios obrigatórios e a rotina como gestora pública. Mas qualquer passo será dado com cuidado e critério. “Tenho minha carreira planejada até 2050”, revela, prevendo vários dias como o último 2 de Dezembro.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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