
A final dos Slam das Minas RJ estava marcada para a Praça Mauá, mas a ameaça de chuva provocou a transferência, na véspera, da disputa a céu aberto para o Hub, espaço na Zona Portuária do Rio, que, mesmo assim, recebeu quase 200 pessoas na noite daquela quinta-feira, 10 de outubro. No dia seguinte, dezenas de pessoas cercaram a estátua de João Cândido, na Praça XV, para ver a final do Slam Negritude. No domingo, uma espaço no alto do Morro do Adeus, com vista para a cidade, foi o palco da final do Slam Laje, do Complexo do Alemão. Na semana anterior, houve batalhas decisivas do Slam Maré Cheia – na Lona Cultural do Complexo de Favelas da Maré – e do Slam Manguinhos, realizado em frente à estação de trem que cruza a comunidade.
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Veja o que já enviamosFoi a programação da Festa Literária das Periferias (FLUP) que me chamou a atenção para essas batalhas poéticas faladas que vão se multiplicando pelo Rio de Janeiro – na verdade, por todo o Brasil. A onda dos slams cresce nas comunidades pobres: é quase totalmente negra, majoritariamente feminina. Este ano já teve batalha de slam na FLIP, a Festa Literária Internacional de Paraty, e no palco favela do Rock in Rio. Na Flup, houve uma competição nacional, na Casa Porto, e a Rio Poetry Slam – maior competição de poesia falada da América Latina que a festa abriga desde 2012 – nos pilotis do MAR.
A auto-estima desceu para o estacionamento subterrâneo e se perdeu
Agora é apenas a imagem distorcida do meu reflexo e eu
As pessoas dizem que eu sou bonita
Mas não é essa a imagem que eu vejo no espelho refletida
A esperança morre a cada dia
Não sei mais se um dia terei uma família
Não penso mais se um dia terei uma filha
Se você não está entendo o que eu quero te falar
Deixe que agora eu vou me apresentar
Eu sou a que está nos lençóis, nos quartos de hotel
nas noites de terça-feira frias
Mas nunca a que está no cinema do shopping
nos domingos cheios de alegria
Eu sou a que não serve para ser amada
Muitas vezes que não merece ser beijada
Eu sou a que eles querem transar na madrugada
Prazer: sou mulher trans negra
E, mais do que a porra da Barbie, sou objetificada
Meu nome é Valentine
Nunca Valentina
Se quiser me encontrar, vai me achar num slam
Nunca numa esquina
A representante do Rio na competição nacional da Flup foi Valentine Pimenta, mulher trans negra, que, em um ano, passou de cantora em apresentações no transporte público para slammer: ganhou 10 batalhas em 2019 e participou do Rock in Rio. “O slam abriu um espaço para as mulheres negras que o rap nunca deu. Para mim, mulher trans negra, foi uma porta para poder falar da minha realidade, uma realidade que é ainda mais pesada”, conta Valentine, 22 anos, que nasceu e mora em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, e coleciona ataques por sua condição. Já sofreu questionamentos até em batalhas poéticas, foi agredida durante uma apresentação na barca Rio-Niterói alguns meses atrás.
Racismo, preconceito, violência, condição feminina na periferia: esses temas estão sempre presentes nas batalhas de slams, mas dividem espaço com perrengues cotidianos, corações partidos e dúvidas existenciais – é tudo poesia afinal. E vai ganhando a rua. Hoje, só no Rio de Janeiro, 15 slams organizados estão fazendo suas seletivas para a final do Slam RJ, dia 31 de outubro no Circo Voador: mas a poesia falada se multiplica pelas favelas e periferias As batalhas têm regras simples: cada participante tem até três minutos para fazer sua apresentação, sem acompanhamento musical. O júri – geralmente cinco pessoas – é recrutado entre o público e dá suas notas, avaliando poesia, originalidade, performance e recepção da platéia.
Então eu cresci e embarquei num expresso sem direção
Conflitos entravam na minha mente sem explicação
Tristeza, ansiedade e depressão
Pensei em tirar a minha vida
Mas a poesia foi a minha salvação
Mas uns amigos ficaram sozinhos no vagão
Não tiveram outra opção
Não conheceram a poesia
Do pique-pega, eles foram em direção à guilhotina
E eu lembro daquela tia, agarrada na perna do assassino
Pedindo para não matarem seu filho.
Mas POU – ele foi executado
Gelson da Silva, meu amigo assassinado
Não teve futuro, morreu no presente, só teve passado
Mas minha lembrança é ele jogando bolinha de gude ao meu lado
Ai quem me dera se a vida fosse uma eterna infância
Sei que nem todas serão iguais à minha
Mas eu ainda tenho esperança
Que criança viva como criança
E que ali, para ela, a vida seja uma eterna brincadeira
E que pais desorientados saibam:
um gesto errado afeta uma criança pela vida inteira
Então que nossas lembranças sejam nossas heranças
Porque brincadeira de criança é paz, amor e esperança
A vencedora do Slam das Minas RJ foi a poeta, atriz, cantora, produtora e diretora Luiza Loroza, 21 anos, filho do ator Sergio Loroza; no Slam Manguinhos, ganhou Sabrina Azevedo, poeta, atriz, escritora e produtora cultural da Cidade de Deus, que já representou o Rio de Janeiro no Brasileiro de Poesia Falada em 2017 e 2018. Duas mulheres negras como também foi uma jovem mulher a vencedora do Slam Negritude, na Praça XV: a paulista King – KeehAckles, poeta e rapper de 18 anos, que foi vice-campeã do BR Slam de 2018, em disputa apertada com a mineira Pieta Poeta, campeã brasileira que representou o Brasil no Mundial de Poesia Falada – Grand Poetry Slam – em Paris e agora na competição internacional da Flup. No domingo agora (20/10), Pieta venceu a Rio Poetry batendo slammers de 15 países; na batalha nacional da Flup, ganhou a paulista Kimani.
A mulherada vem ocupando espaço na poesia falada desde a criação do primeiro Slam das Minas, em São Paulo, sete anos atrás – exatamente para garantir a voz feminina nas batalhas. Depois, versões do Slam das Minas foram surgindo em cada estado; hoje são muitos os coletivos apenas de mulheres. Campeã da batalha no Rock in Rio, Letícia Brito, do Slam das Minas RJ, defendeu, após a vitória, “a oportunidade de ocupar todos os espaços que não censurem nossas vozes”. O slam nasceu e cresceu na rua – agora, com as minas no comando, ninguém pode saber onde ele vai parar.
#RioéRua