#RioéRua: o convento, a história e a pandemia

O Convento do Carmo, construído a partir de 1619, em reformas: trajetória que ilustra história do Rio de Janeiro (Foto: Oscar Valporto)

No devastado Centro, obra recupera imóvel com história ilustrativa da ocupação e desenvolvimento da cidade e da relação entre público e privado

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 9 de outubro de 2020 - 09:42 • Atualizada em 12 de outubro de 2020 - 11:51

O Convento do Carmo, construído a partir de 1619, em reformas: trajetória que ilustra história do Rio de Janeiro (Foto: Oscar Valporto)

É desolador andar pelo Centro neste cenário de pandemia do Rio de Janeiro (mais de 11 mil mortes e 108 mil casos, taxa de mortalidade acima de 10%). Na Zona Sul e na Zona Norte, já pode ser visto um novo normal, de pessoas circulando mascaradas (ou não), a caminho do trabalho, das compras e agora até da escola – a doença não cede mas vai vencendo pelo cansaço e pela impossibilidade, após seis meses de incompetência federal, de ficar longe das atividades produtivas. No Centro do Rio, entretanto, a maioria dos escritórios segue em home office e aqui temos ruas quase desertas – muitas ocupadas pela legião cada vez maior de sem tetos que aproveitam as generosas marquises dos edifícios: são dezenas de restaurantes, lanchonetes, lojas, livrarias e outros estabelecimentos fechados.

O Convento do Carmo e o Edifício Cândido Mendes , construído: agressão à arquitetura e ao patrimônio na visão dos urbanistas (Foto: Oscar Valporto)
O Convento do Carmo e o Edifício Cândido Mendes, torre de 30 andares construído ao lado: agressão à arquitetura e ao patrimônio na visão dos urbanistas (Foto: Oscar Valporto)

Em meio a esse cenário melancólico, qualquer movimento indica novidade e alegra o carioca apaixonado pela cidade e suas ruas – até barulho de obra. Foi o que ouvi quando descia a Sete de Setembro em direção à Praça XV: sons de raspagem, de martelo, de serra, vindos do imóvel encoberto pela tela fachadeira e por tapumes. Não é um prédio qualquer: é o Convento do Carmo, uma das mais antigas construções da cidade, que começou a ser erguida em 1619. O convento é um patrimônio muito mais histórico do que artístico – a história do convento ilustra como nenhuma outra a história de quase cinco séculos desta cidade de São Sebastião, de sua ocupação, do exercício de poder, das peculiaridades constrangedoras de seu desenvolvimento.

Os frades carmelitas ergueram seu convento ao lado da pequena capela cedida a eles ainda no fim do século XVI – os primeiros integrantes da ordem desembarcaram aqui em 1589. A capela ficava em frente à Praia de Nossa Senhora do Ó – nome também da ermida antes da chegada dos carmelitas. Foram os frades que, ao construíram o convento e reformarem a capela, também foram aterrando à área em frente como haviam feito  religiosos para levantar uma capela a São José. e estavam fazendo também as autoridades da colônia para erguer a cadeia velha (na área da atual Assembleia Legislativa).  Os carmelitas conseguiram a cessão provisória da área aterrada em frente ao convento ainda em meados do século XVI e, por 100 anos, resistiram às tentativas de construções ali, que alegavam, iriam devassar os quartos dos religiosos enclausurados e bloquear a vista. Por mais de uma vez, apelaram ao Rei de Portugal para impedir a vizinhança de residências e lojas comerciais na hoje movimentada Rua Primeiro de Março.

Os religiosos tinham influência na Corte Portuguesa mas, conforme o Rio de Janeiro ganhava em importância, crescia o poder dos políticos locais. Em 1733, o governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire (Conde de Bobadela) conseguiu a autorização real para construir, em frente ao convento a Casa do Governo – obra que demorou a começar e só foi concluída em 1743, 20 anos antes do Rio virar capital da colônia. O prédio vizinho ao convento passou a ser chamado de Paço dos Vice-Reis, denominação do governante do Brasil, e Paço Real, a partir do momento de 1808, quando Dom João XVI desembarcou no Brasil.

Para abrigar a família real portuguesa, que não caberia no paço, os capuchinhos foram despejados do convento – por compensação, ganharam um imóvel na Rua da Ajuda. Aliás, também foram despejados os juízes, abrigados em prédio na Rua do Lavradio, e os presos, transferidos para mais longe, que compartilhavam a Cadeia Velha.  Antes mesmo da chegada da corte, o Conde dos Arcos, o último vice-rei, mandou construir um passadiço, ligando o paço ao convento. Quando Dom João VI desembarcou, ficou com a família e seus serviçais no agora Paço Real e instalou sua mãe – a Rainha Dona Maria, conhecida no Brasil com Maria, a Louca. que, por sua instabilidade mental, tinha passado a regência do reino ao filho. Dona Maria morou no convento até morrer, em 1816, quando Dom João XVI mudou-se para o Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, sede do Museu Nacional, consumida pelas chamas em 2018. Além do convento, os carmelitas perderam também sua capela, transformada em Capela Real e Sé do Reino.

Até 1848, o convento continuou servindo de anexo ao agora Paço Imperial pois, muitas vezes, ali eram despachados os assuntos do jovem Império do Brasil – a irmã mais velha de Pedro II, Januária, chegou a morar lá com o marido. Foi o segundo Imperador do Brasil que cedeu o antigo prédio do convento ao Instituto Histórico Geográfico Brasileiro, do qual era patrono. Fundado em 1838, o instituto ganhou sala no Paço Imperial para servir de sede inicial. Entusiasta da instituição, o Imperador presidia suas sessões, financiava pesquisas e, por fim, cedeu o convento para servir de sede permanente para o IHGB, que foi desalojado em 1896 – vítima, como tantas outras coisas, das perseguições da República proclamada em 1889 a iniciativas do Império.

Lateral do Convento do Carmo na Sete de Setembro: reforma prevista para terminar no segundo semestre de 2021 (Foto: Oscar Valporto)
Lateral do Convento do Carmo na Sete de Setembro: reforma prevista para terminar no segundo semestre de 2021 (Foto: Oscar Valporto)

Mas nada mais parecido com o Império do que a jovem República – o compadrio era semelhante. Assim, em 1902, o governo republicano cedeu o prédio do convento – público desde 1808 – à Sociedade Brasileira de Instrução, primeira instituição de ensino privada do país, dos advogados Cândido e Fernando Mendes de Almeida, também proprietários, na época, do Jornal do Brasil. Aparentemente, já naquela época, ensino superior privado era mais rentável do que jornal. Os Mendes de Almeida passaram o diário endividado em 1919. mas permaneceram com a instituição de ensino, transformada depois em Faculdade Cândido Mendes – hoje universidade e em recuperação judicial.

A Cândido Mendes ocupou o convento por mais de 100 anos, Na década de 1970, em plena da ditadura, a faculdade recebeu autorização do governador Chagas Freitas, do MDB (nada mais parecido com um governo da Arena que o governo Chagas), de construir um prédio de 42 andares no anexo do pátio. Os urbanistas são pródigos ao classificar ao Edifício Cândido Mendes: aberração, violência, atentado ao patrimônio, crime arquitetônica. Não sou urbanista ou arquiteto, mas o prédio, todo preto, além de horroroso, contrasta com toda a área da Praça XV, jogando sua sombra sobre o convento (de 1638), a Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé (de 1730, bela e restaurada), o Palácio Tiradentes (de 1926) e a Igreja de São José (concluída em 1842) e o Paço Imperial (1743).

O Paço Imperial (de 1743), na Praça XV, com o prédio de 42 andares ao fundo: área histórico com agressão urbana (Foto: Oscar Valporto)
O Paço Imperial (de 1743), na Praça XV, com o prédio de 42 andares ao fundo: área histórico com agressão urbana (Foto: Oscar Valporto)

Em 2011, depois de disputa judicial, o governo do Rio de Janeiro conseguiu retomar o Convento do Carmo para a poder público: a ideia era servir de sede para a Secretaria Estadual de Cultural e o Inepac (Instituto Estadual do Patrimônio Cultural). Por essas peculiaridades constrangedoras, os órgãos culturais desistiram do prédio que acabou cedido à Procuradoria Geral do Estado. É a PGE a responsável pela obra de reforma e restauração que inspira essa história. Tem conclusão para o segundo semestre de 2021: enfim, uma boa notícia. Vai abrigar a escola da procuradoria, uma enorme biblioteca jurídica e atividades culturais. É um sopro de vida no Centro do Rio, tão devastado pelas consequências da pandemia; um sopro de vida que vem exatamente do prédio que espelha a conturbada história desta resistente cidade.

#RIoéRua

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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