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Veja o que já enviamosPaço Imperial: seu primeiro ocupante e a capital no Rio de Janeiro
Governador por 30 anos na época colonial, Gomes Freire mandou construir o palácio no século 18 e defendia a importância estratégica da cidade para o Brasil
Naquela flanada básica pelo Centro do Rio, me chamam a atenção os cartazes para novas exposições no Paço Imperial e descubro que fazem parte das celebrações dos 40 anos como espaço cultural de uma das mais antigas edificações da cidade. O palácio foi construído na primeira metade do século 18, ainda no período colonial, serviu de sede administrativa do Império do Brasil e sobreviveu às sucessivas reformas promovidas no coração da cidade após a instalação da República.
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Nos espaços dedicados ao Paço Imperial nos roteiros turísticos, nos livros sobre o Império brasileiro e na própria exposição sobre o palácio no primeiro andar do imóvel, são sempre destacados os eventos dessa sua fase como centro do poder imperial. Foi de sua sacada que, em janeiro de 1822, o então príncipe Dom Pedro, então regente do Brasil, anunciou ao povo, reunido na rua, a sua intenção de ficar no Brasil, recusando a ordem da Coroa de voltar a Portugal: o Dia do Fico entrou na história como marco inicial do processo que culminaria na Independência do Brasil. No mesmo Paço Imperial, em 1888, a princesa Isabel assinou a chamada Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil, medida também anunciada para a população das sacadas do palácio.

Apesar de o Paço Imperial ter se tornado parte da paisagem carioca e, nos últimos 40 anos, da vida cultural da cidade, não é devidamente creditado ao velho palácio seu papel para que o Rio de Janeiro se tornasse a capital do Brasil colônia e, assim, com a chegada de Dom João VI e a sua corte, também a capital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves – e, posteriormente, capital do Império e da República. Naturalmente, o mérito não é exatamente do palácio, mas de seu primeiro ocupante, o general Gomes Freire de Andrade, governador-geral do Rio de Janeiro por 30 anos, que o mandou construir. Nessas três décadas, o português, nascido no Alentejo, propagandeou o papel estratégico da cidade para o Brasil.
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Veja o que já enviamosGomes Freire – hoje nome de rua na Lapa – já chegou no Rio de Janeiro, aos 48 anos, com prestígio de ter lutado no exército de Portugal em guerras na Europa e ter sido do conselho de escudeiros do rei Dom João V. A capitania já vinha ganhando cada vez mais importância desde a descoberta de ouro e outras pedras preciosas em Minas Gerais: todo o minério saía pelo porto da Baía de Guanabara, por onde também chegavam levas e mais levas de africanos escravizados. Logo depois de chegar, em 1733, o novo governador pediu autorização real para construir uma casa mais ampla, que servisse também como sede administrativa.

Em 1743, ficou pronta a Casa dos Governadores, com dois andares, para servir ao titular da Capitania; o futuro Paço Imperial já nasceu como toques de realeza: o projeto do engenheiro militar José Fernandes Pinto Alpoim foi inspirado no Paço da Ribeira, residência dos monarcas portugueses em Lisboa. Àquela altura, Gomes Freire já tinha sido também encarregado pela coroa portuguesa de administrar provisoriamente a capitania de Minas Gerais; depois ganhou poderes ainda sobre São Paulo, Goiás e Mato Grosso. Participou da demarcação das novas fronteiras no sul do Brasil, onde comandou, posteriormente, as tropas de Portugal que, ao lado das espanholas, lutaram contra indígenas guaranis na região dos Sete Povos das Missões.
No Rio de Janeiro, durante a administração de Gomes Freire, foi ampliado e reconstruído o Aqueduto da Carioca – ganhando a forma do hoje internacionalmente conhecidos Arcos da Lapa, outro projeto do engenheiro Alboim, responsável também pelo chafariz na praça onde estava a Casa dos Governadores e o Convento do Carmo. Na mesma época, foi erguido, com apoio do governador, o Convento das Carmelitas, hoje Convento de Santa Teresa, onde estão sepultados seus restos mortais.
Gomes Freire também teve apoio do Rei de Portugal, dom José I, e do seu poderoso ministro, o Marquês de Pombal, para reforçar as defesas da cidade, sempre ressaltando o protagonismo do Rio de Janeiro para o desenvolvimento da colônia. O prestígio do governador junto à Corte lhe valeu o título de Conde de Bobadela, concedido em 1758. Esse prestígio, certamente, não era pela sua administração no Rio, mas pela atuação em defesa dos interesses portugueses: foi implacável na cobrança de impostos sobre o ouro em Minas, perseguiu os jesuítas conforme a orientação de Pombal e a história registra o massacre dos indígenas dos Sete Povos das Missões.

No começo de 1761, ele recebeu uma carta régia, ordenando que fosse para a Bahia assumir o lugar do vice-rei (desde 1720, os governadores gerais da colônia passaram a ter essa denominação), que havia falecido. Gomes Freire recusou: em sua carta de resposta, registrada nos arquivos portugueses, disse que o Rio de Janeiro era importante demais para ficar “sem cabeça”, que seu porto era o “Empório do Brasil” por ter “as circunstâncias de uma posição e defesa fortíssima e de uma barra incomparável; as principais forças militares que há no Brasil nele se acham; aqui entram, saem, e se manejam milhões…”

O general, governador e também conde defendeu com veemência sua permanência na cidade. “As maiores causas, ou demandas do Brasil são sem dúvida as minerais”, escreveu para lembrar a importância estratégica do porto. “Esta importante dependência, unida às já referidas…, mostra que este Governo é a mais importante joia deste grande Tesouro. Aqui correm e correrão adiante os mais importantes negócios, tanto da Coroa, como dos Vassalos”.
Gomes Freire ficou – assumiu uma junta governativa à espera de um novo vice-rei. E morreu no Rio, ainda governador, no primeiro dia de 1763, ano em que a capital da colônia (e seus vice-reis) seria transferida para a cidade. Não registros históricos das razões para a decisão de Portugal de transferir a capital de sua principal colônia de Salvador para o Rio de Janeiro, mas podemos imaginar que os argumentos do Conde de Bobadela pesaram.

Seu palácio também ficou. A Casa dos Vice-Reis passou apenas por pequenas reformas até o começo do século 19 – em 1789, o vice-rei Luís de Vasconcelos mandou substituir o chafariz da praça adjacente pelo chafariz de Mestre Valentim, que está lá até hoje. O último vice-rei, o Conde dos Arcos, promoveu a reforma mais ampla para receber a família real portuguesa. Dom João VI, ainda regente, instalou sua mãe – a Rainha Maria I – no Convento do Carmo, mandou construir passarelas ligando as duas edificações, mas logo se mudou para o Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista, deixando o agora Paço Real como sede administrativa do reino.
Em 1817, foi construído o terceiro pavimento, ainda restrito ao lado da fachada voltada para a Baía de Guanabara, que passou a ser destinado apenas ao rei. Após a independência, os imperadores Pedro I e Pedro II mantiveram a residência em São Cristóvão e o Paço Imperial como sede do governo. Pedro II mandou construir mais uma passarela, ligando o palácio à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, vizinha ao convento e construída também em meados do século 18: a igreja, desde a chegada de Dom João VI, abrigou a Capela Real e foi alçada a Igreja Sé (sede da Igreja Católica) do Rio de Janeiro, posto que só perdeu com a construção da nova catedral metropolitana, em 1970 .

Após o golpe militar que derrubou a monarquia, o palácio foi esvaziado, toda a mobília retirada. Temeu-se até pela demolição como ocorreu com outros símbolos do Império. O Largo do Paço foi rebatizado como Praça XV de Novembro, data da proclamação da República. Mas o palácio virou sede da agência central dos Correios e Telégrafos – foi um dos primeiros imóveis tombados quando o Iphan (então Sphan – Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) foi criado em 1938.
A reforma no começo dos anos 1980 permitiu que o Paço Imperial fosse aberto à visitação, agora como Centro Cultural, em 1985: nas celebrações dos 40 anos, há exposição de importantes artistas contemporâneos como Iole de Freitas, Roberto Magalhães e Carlos Zílio. Mas a visita ao velho palácio, com sua vista para vizinhos muito antigos – o Convento do Carmo, recentemente reformado para virar também espaço cultural, o Chafariz de Mestre Valentim e a hoje Igreja de Nossa Senhora do Carmo da Antiga Sé -, leva o carioca a imaginar como poderia ser a parte mais antiga da cidade se não tivesse sido tão violentamente atropelada pelas reformas urbanas.
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