Ilhas endinheiradas enfrentam a covid-19

Lavagem de ruas e calçadas em Niterói: tecnologia importada da China. Foto de divulgação

Donas de orçamentos generosos, Niterói e Maricá se destacam com ações eficientes contra a pandemia e ajudam até São Gonçalo, a vizinha pobre e problemática

Por Aydano André Motta | ODS 11 • Publicada em 9 de abril de 2020 - 08:00 • Atualizada em 7 de março de 2021 - 14:30

Lavagem de ruas e calçadas em Niterói: tecnologia importada da China. Foto de divulgação

“Ó mãe, ensaboa mãe
Pra depois quarar
Ó, mãe! Ensaboa, mãe!
Ensaboa, pra depois quarar
Ora yê yê ô oxum! Seu dourado tem axé
Faz o seu quilombo no Abaeté
Quem lava a alma dessa gente veste ouro
É Viradouro! É Viradouro!”

O caminhão-pipa atravessa o cruzamento deserto, espalhando água e um produto químico semelhante a sabão na rua e nas calçadas, ao som da parte mais célebre do samba da Viradouro, campeão do Carnaval 2020. A criatividade espontânea das redes sociais aliou o canto empolgado do puxador Zé Paulo Sierra ao vídeo oficial, para referendar, no melhor ritmo, as boas ações de Niterói no combate à covid-19. Conjugando respeito às informações científicas e excelente situação orçamentária, a cidade investe pesadamente em medidas de prevenção contra a pandemia. Pelo mesmo caminho, vai a vizinha – e igualmente endinheirada – Maricá.

O temor de a doença se espalhar chegou cedo à capital do antigo Estado do Rio, por circunstâncias demográficas. Metade dos 520 mil habitantes está nas classes A e B, uma turma que viaja com frequência para o exterior, fonte da contaminação no primeiro estágio. Um mês antes de a Viradouro conquistar o título na Sapucaí, diante das notícias que chegavam da China, a cidade começou a se preparar – e R$ 200 milhões estão sendo investidos na saúde, no socorro à economia e na estrutura social.

É possível salvar vidas e manter pequenas e médias empresas de pé. Não há contradição

O dinheiro foi empregado na compra emergencial de insumos, equipamentos de proteção individual e abertura de leitos, incluindo o arrendamento do Hospital Oceânico, no bairro de Piratininga, para abertura de 140 leitos de UTI exclusivos para coronavírus. Será o primeiro hospital do país voltado exclusivamente ao tratamento da doença. Foram adquiridos ainda equipamentos para testes em 80 mil pessoas (16% da população), e distribuídos 80 mil kits de limpeza, por meio do Programa Médico de Família.

Nesta quinta-feira (9), começou a distribuição de 1 milhão de máscaras para a população (duas por pessoa), em igrejas e templos religiosos, associações de moradores, pelo Médico de Família e nas administrações regionais. A produção foi encomendada a pequenas e médias confecções da cidade. No pacote, está incluída a sanitização de ruas, calçadas – da imagem enfeitada pelo samba -, hospitais e comunidades populares com a mesma tecnologia usada na China.

Leitos do Hospital Oceânico: exclusivo para coronavírus. Foto de divulgação
Leitos do Hospital Oceânico: exclusivo para coronavírus. Foto de divulgação

A inspiração oriental surgiu ainda em janeiro, quando foi criado um grupo de resposta rápida para acompanhar o problema e planejar a reação. Vinculada à Secretaria Municipal de Saúde, a equipe compilou publicações acadêmicas sobre a covid-19 e desenvolveu o plano de contingência, treinando servidores do setor. Em 18 de março, a prefeitura anunciou o pagamento de um auxílio de R$ 500, por três meses, a 35 mil famílias de Niterói que estão no Cadastro Único de Programas Sociais do Governo Federal. Em decorrência do fechamento das escolas, houve a distribuição de 32 mil cestas básicas às famílias dos alunos da rede municipal.

Além do dinheiro, medidas contundentes foram tomada para amenizar os efeitos do coronavírus. Os acessos a Itacoatiara, mítica praia da Região Oceânica, foram fechados com tapumes; nas outras do farto litoral da cidade, a guarda municipal se encarregou de expulsar os banhistas equivocados, que pensam estar de férias em plena quarentena. Foi estabelecido ainda um plano de fechamento dos acessos, implementado em sete pontos centrais. Táxis de outras cidades tiveram circulação proibida, e os ônibus intermunicipais foram limitados a 30% da frota habitual.

Para tourear a catástrofe econômica embutida no isolamento, os microempreendedores individuais (MEIs) de Niterói receberão R$ 500 por três meses. A prefeitura firmou ainda parceria com o setor financeiro que viabiliza crédito de R$ 50 mil, R$ 100 mil, R$ 150 mil e R$ 200 mil para as pequenas e médias empresas sediadas terem capital de giro. O Executivo municipal vai subsidiar os juros. Também foi criado o Programa Empresa Cidadã, para companhias com até 19 funcionários que se comprometerem a não reduzir postos de trabalho por seis meses. A Prefeitura pagará um salário mínimo a até nove empregados durante três meses. “É possível salvar vidas e manter pequenas e médias empresas de pé. Não há contradição”, defende Rodrigo Neves.

 

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📖 Diário de quarentena – 15° dia O estagiário lançou a braba! Limpeza das ruas de Niterói ao som do samba-enredo da Viradouro 😂 Seguimos!💪🏼

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Um vilão ambiental é decisivo para a prosperidade niteroiense. O município recebe R$ 1,3 bilhão por ano de royalties da produção de petróleo do litoral fluminense, dinheiro que não vai para o custeio, mas banca obras estruturantes, pavimentação e contenção de encostas, além do programa de segurança Niterói Presente. Além disso, a cidade, com sua numerosa classe média, ostenta arrecadação alta – tanto que a receita do petróleo soma apenas 40% do bolo.

“A Prefeitura de Niterói tem acompanhado de maneira convergente a agenda das ações de isolamento social”, reconhece Flávio Serafini, deputado estadual pelo PSOL, de oposição à atual administração. Ele decifra pelo contigenciamento pré-eleitoral a atual abundância de recursos. “A gestão guardou para gastar no último ano, e veio a pandemia. Agora, acerta na agenda – e tem condições para fazer muito”, acrescenta ele, criticando a redução da frota de ônibus intermunicipais. O correto, prega, seria diminuir o número de passageiros, pelo incentivo às pessoas ficarem em casa, e não os veículos, aumentando a lotação e o desconforto. “Mas a maior parte das ações é positiva, mesmo as que ajudam no marketing”, conclui.

Vem dos royalties a bonança da vizinha Maricá, primeira cidade da Região dos Lagos. A prefeitura destinou R$ 130 milhões da receita externa para ações de saúde e um pacote econômico que pretende amenizar o impacto do isolamento social. O abono natalino foi antecipado para os 42,5 mil beneficiários da Renda Básica da Cidadania (RBC). Cada um deles recebeu 130 mumbucas, a moeda social (cotada a R$ 1) aceita somente no comércio credenciado, numa injeção de, aproximadamente, R$ 21 milhões na economia. Nos próximos três meses, a prefeitura vai entregar cerca de 31 mil cestas básicas para alunos da rede pública (escolas municipais, estaduais e do Instituto Federal Fluminense – IFF), num total de 95 mil kits, que exigiram investimento de R$ 30 milhões.

O município de 32 mil habitantes, vítima de piada infeliz do então prefeito do Rio, Eduardo Paes, flagrado num grampo com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuida também dos trabalhadores liberais, informais e autônomos com renda familiar de até R$ 5 mil. Vão todos receber, por três meses, um salário mínimo (R$ 1.045) convertidos em mumbucas. Ao todo, serão 12 mil beneficiados com investimento de R$ 37,6 milhões.

Os empresários da cidade terão uma linha de crédito de R$ 20 milhões aberta pela prefeitura. Quem optar pelo uso do fomento poderá obter microcrédito de até R$ 50 mil, com início de pagamento em janeiro de 2021. Os principais bairros de Maricá passaram pelo mesmo trabalho de desinfecção das ruas, que continuará por todo o município, duas vezes por dia, pelos próximos seis meses.

O recém-inaugurado Hospital Dr. Ernesto Che Guevara: 138 leitos exclusivos para covid-19. Foto da Prefeitura de Maricá
O recém-inaugurado Hospital Dr. Ernesto Che Guevara: 138 leitos exclusivos para covid-19. Foto da Prefeitura de Maricá

A cidade, que adquiriu 40 mil testes da covid-19, abriu na segunda-feira (6) três polos de atendimento para a doença e finalizou a construção do Hospital Municipal Dr. Ernesto Che Guevara – as redes sociais vão adorar -, com 138 leitos para internação, dois CTIs, 19 enfermarias (com três leitos cada), seis salas de observação para adultos e mais três alas de observação pediátrica. Tudo exclusivo para a pandemia.

Niterói e Maricá ainda uniram sua prosperidade para ajudar, com R$ 90 milhões (R$ 45 milhões cada uma) a vizinha cheio de urgências: São Gonçalo. Com a maioria do 1,1 milhão de habitantes (a segunda população do estado) lutando contra a pobreza, pontilhado por demandas urbanas e ambientais, a cidade vai receber um hospital de campanha com 200 leitos, a ser construído pelo estado.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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