Negros e moradores da Baixada são maioria entre atropelados por trens no Rio

Painel na Estação Coelho da Rocha, na Baixada, lembrando a universitária Joana Bonifácio, arrastada por trem: negros são maioria entre mortos na linha férrea (Foto: Casa Fluminense – 24/04/2018)

Levantamento mostra que, em 10 anos, foram registrados 368 mortes na linha férrea da Região Metropolitana: em 2019, foram 70 atropelamentos

Por Casa Fluminense | ODS 10ODS 11 • Publicada em 30 de abril de 2021 - 09:10 • Atualizada em 22 de setembro de 2022 - 16:07

Painel na Estação Coelho da Rocha, na Baixada, lembrando a universitária Joana Bonifácio, arrastada por trem: negros são maioria entre mortos na linha férrea (Foto: Casa Fluminense – 24/04/2018)

Luize Sampaio*

Todos os dias, a universitária Joana Bonifácio pegava o trem na estação Coelho da Rocha, na Baixada Fluminense, a caminho da Fundação Centro Universitário da Zona Oeste do Rio de Janeiro (UEZO), em Campo Grande. Era um trajeto de 100 quilômetros, uma média de quatro horas diárias no transporte. No dia 24 de abril de 2017, há quatro anos, a estudante morreu ao tentar embarcar em um trem na estação de Coelho da Rocha, no município de São João de Meriti.

Não foi um caso isolado. Levantamento produzido pela Casa Fluminense – organização com foco no debate de políticas públicas para a redução das desigualdades no Região Metropolitana do Rio – em parceria com a pesquisadora Rafaela Albergaria, prima da vítima, mostra que de 2008 a 2018 foram registrados 368 casos de homicídios por atropelamento ferroviário, de acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP).

Apenas em 2019, antes da pandemia, nove dos 12 municípios da Região Metropolitana do Rio, atravessados pelas linhas de trens da concessionária SuperVia registraram mortes nas mesmas condições. Foram no total 70 atropelamentos, uma morte por semana na média anual, sendo que 72,6% dos casos são de pessoas negras. Esse levantamento foi atualizado no dia 26 de abril, a partir dos dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) da Secretaria Estadual de Saúde, mas os números de óbitos podem ser ainda maiores já que os casos ainda seguem sendo computados no banco da secretaria.

Na média do ano de 2019, por semana, mais de uma pessoa morreu por atropelamento ferroviário (Arte: Taynara Cabral/Casa Fluminense)
Na média do ano de 2019, por semana, mais de uma pessoa morreu por atropelamento ferroviário (Arte: Taynara Cabral/Casa Fluminense)

Os números de homicídios culposos, aqueles em que não há a intenção de matar, podem ser maiores do que os dados apresentados. A história de Joana Bonifácio ilustra essa possibilidade: sua morte nunca foi contabilizada nas estatísticas. A concessionária tentou inicialmente classificar o ocorrido como um caso de suicídio, segundo afirma a família da vítima, e depois como imprudência da passageira. “Imagina quanto outros casos sem investigação e aprofundamento corretos existem; no caso da Joana, houve uma pressão da família para que os protocolos fossem seguidos”, destacou o coordenador executivo da Casa Fluminense, Vitor Mihessen.

Especialista em transportes, Mihessen lamentou a falta de dados e de transparência. “Faltam protocolos por parte da concessionária e das delegacias para fazer com que todos os ocorridos virem informação e em seguida fontes para mudanças nas políticas urbanas. Só para se ter uma noção desse apagamento, quando estávamos fazendo a pesquisa, tivemos que requerer a mesma informação 16 vezes, isso não pode acontecer”, apontou.

Tragédia na linha do trem

Filha mais velha de Teresa Cristina e João Roberto, Joana Bonifácio foi a segunda pessoa da família a ingressar em uma universidade pública, um sonho compartilhado por todos da casa. Tinha apenas 19 anos quando, ao tentar embarcar no vagão, uma das suas pernas ficou presa na porta: ela se desequilibrou e caiu no vão entre o trem e a plataforma. O maquinista deu a partida e Joana foi arrastada pelo trem por mais 20 metros, sem que nenhum sensor fosse acionado. Seu corpo ficou estirado sob os trilhos por 8 horas e sua família soube da morte pelas redes sociais.

Acostumada também a andar de trem diariamente antes da pandemia, Teresa Cristina, mãe da Joana, afirma que a morte da filha está ligada à negligência da Supervia com os passageiros, principalmente dos ramais mais distantes do centro. “Eles mandam os piores trens aqui para a Baixada. Já tive que sair correndo do vagão por causa de incêndio e muitas vezes ir andando sob os trilhos quando o trem quebrava no meio da viagem. Quando a Joana morreu, o trem que a atropelou seguiu viagem normal, como se nada tivesse acontecido. O que fizeram com a minha filha, uma menina que era puro amor, foi desumano. Joana não merecia ter tido seus sonhos interrompidos dessa forma tão brutal”, lamenta.

Em nota, a Supervia afirmou que o atropelamento seguido de morte da passageira aconteceu porque Joana tentou entrar em um trem em movimento. No boletim de ocorrência, a única testemunha ouvida foi um segurança da própria empresa, que confirmou a versão da empresa. A família nega e afirma que passageiros relataram que o segurança nem estava na estação na hora da morte. Parentes de Joana lembram que, no depoimento, o segurança afirmou que a mão da estudante ficou presa na porta do trem quando na verdade teria sido sua perna.

Teresa Cristina (à direita), mãe de Joana, e a pesquisadora Rafaela, prima da universitária atropelada: revolta com o descaso (Foto: Fael Miranda/Casa Fluminense)
Teresa Cristina (à direita), mãe de Joana, e a pesquisadora Rafaela, prima da universitária atropelada: revolta com o descaso (Foto: Fael Miranda/Casa Fluminense)

No ano passado, a Supervia foi multada em quase um milhão de reais pela morte de outros dois passageiros, que ocorreram também por conta do espaço do vão entre o trem e a plataforma. A Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) prevê na norma 14021/2005 que os limites máximos de vãos e desníveis entre o trem e a plataforma não podem ultrapassar 10 cm e 8 cm, respectivamente.

O caso da Joana foi um dos principais pontos da CPI aberta na Alerj em 2017 para investigar as irregularidades da gestão pública no setor de transporte público. No relatório final da investigação o papel da Agência Reguladora de Serviços Públicos Concedidos de Transportes do Rio, a Agetransp, é questionado e criticado pelos deputados e técnicos da área. A agência, que tem o papel de fiscalizar as concessionárias, só abriu o processo para investigar as causas do acidente da Joana três meses após a morte da estudante, segundo o relatório final da CPI.

Mestre em Serviço Social, a pesquisadora Rafaela Albergaria lamenta o descaso do Poder Público com o que aconteceu com sua prima Joana. “A agência tem a obrigação de investigar todos os acidentes, mas a única coisa que eles fizeram no caso da Joana foi reafirmar a suposta investigação da Supervia, que tinha como única testemunha o guarda da própria empresa. Assim, a ação criminal acabou sendo arquivada por falta de provas. A Agetransp não fez nenhuma perícia técnica efetiva. Esse relatório coloca a Joana como a culpada exclusiva pela sua própria morte. A entidade foi conivente com a Supervia e não com os direitos dos passageiros”, afirmou Rafaela, que produziu, em parceria com a Casa Fluminense, o livro digital Não Foi em Vão, com a história da universitária morta na linha do trem.

A Agetransp informou que a Supervia foi multada no valor de R$ 253.395.43 pela morte da estudante, mas que esse valor ainda não foi pago. A tramitação do processo regulatório permanece em aberto e ainda cabe mais um recurso para a empresa. “O estado não se responsabiliza pelos territórios pretos e periféricos. Na omissão do governo, as empresas exploram essa população com preços altos e uma série de violências”, acentuou a pesquisadora.

Trem na estação Coelho da Rocha: ramais que atravessam a Baixada são alvos de reclamações sobre abandono e falta de manutenção (Foto: Laís Dantas/Casa Fluminense)
Trem na estação Coelho da Rocha: ramais que atravessam a Baixada são alvos de reclamações sobre abandono e falta de manutenção (Foto: Laís Dantas/Casa Fluminense)

Concessão até 2048

A SuperVia opera o serviço de trens urbanos da Região Metropolitana do Rio de Janeiro desde 1º de novembro de 1998. Além da capital, a empresa tem estações em Duque de Caxias, Nova Iguaçu, Nilópolis, Mesquita, Queimados, São João de Meriti, Belford Roxo, Japeri, Magé, Paracambi e Guapimirim: uma malha ferroviária de 270 quilômetros dividida em cinco ramais, três extensões e 104 estações. De acordo com a empresa, os trens transportavam quase 600 mil pessoas por dia, antes da pandemia. O contrato inicial de concessão terminaria em 2023, mas, em 2010, o governo do Rio prorrogou o contrato por mais 25 anos, ate´2048: com a assinatura do oitavo aditivo ao contrato, a concessão à SuperVia deve completar 50 anos.

A contrapartida exigida pelo estado eram as obras nas estações para que as plataformas se adequassem às normas de acessibilidade. A história de Joana e os dados apresentados anteriormente mostram que as mudanças exigidas, desde a prorrogação, há mais de 10 anos, nunca foram completadas. Questionada sobre o descumprimento, a Agetransp informou que a Supervia tinha até o final de 2020 para regularizar as estações, mas que, com a pandemia, o prazo foi congelado e só volta a valer quando for decretado o fim da crise sanitária. No futuro, caso a empresa não faça as mudanças, a agência reguladora vai multar a Supervia.

Em 2019, a questão da falta de acessibilidade nos trens voltou a ser cobrada, desta vez junto ao Ministério Público que chegou a um novo acordo com a empresa. Ambos assinaram o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que suspendia uma série de ações civis contra a empresa em troca da realização de um Relatório de Diagnóstico de Acessibilidade das 104 estações. Com essa análise em mãos, um novo TAC seria feito para esquematizar o cronograma e execução das obras necessárias. O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro informou que a Supervia entregou o relatório na data correta e que um novo TAC com cronograma das obras e execuções já está em tramitação, porém não disponibilizou o relatório.

Busca por justiça

Do luto à luta, a família da estudante Joana Bonifácio está há quatro anos à espera da primeira audiência da ação civil aberta contra a Supervia. Durante esse tempo, além das manifestações, a família não parou na cobrança por justiça. Entre as principais ações, estão o lançamento do livro contanto a história da jovem e também a atuação ativa na CPI da Alerj. “O dinheiro não vai trazer minha filha de volta, mas a Supervia precisa aprender que não vai mais ficar impune. Só assim a gente chama a atenção deles. Antes do processo, a concessionária nem havia tentado entrar em contato com a gente. Isso tem que mudar. Estamos fazendo essa ação para que o serviço melhore, esse é meu desejo”, contou Cristina, mãe da Joana.

Um novo passo foi dado neste mês de abril. As deputadas estaduais Renata Souza e Mônica Francisco produziram o Projeto de Lei 4030/2021 para a criação do Dossiê Joana Bonifácio. O objetivo da proposta é dar mais transparência aos casos; para isso, a medida quer tornar obrigatório a publicação sobre casos de atropelamentos ferroviários, com morte ou lesão corporal, além de colocar essas informações na base da elaboração de políticas públicas para a área. O caso da jovem também ecoa a nível nacional. A deputada federal Talíria Petrone (PSol/RJ) apresentou o Projeto de Lei Joana Bonifácio, PL 1524/2021, que busca a criação do Seguro Obrigatório de Danos Pessoais causados por trens ou por sua carga.

*Casa Fluminense

Casa Fluminense

A Casa Fluminense é um espaço permanente para a construção coletiva de políticas e ações públicas por um Rio mais justo, democrático e sustentável. Formada em 2013 por ativistas, pesquisadores e cidadãos identificados com a visão de um Rio mais integrado, acredita que a realização deste horizonte passa pela afirmação de uma agenda pública aberta à participação de todos os fluminenses e destinada universalmente a todo o seu território e população e não apenas - ou prioritariamente - para as áreas centrais da capital.

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Um comentário em “Negros e moradores da Baixada são maioria entre atropelados por trens no Rio

  1. Alexandre disse:

    É só não andar na linha do trem… Preto, branco, estudante… O calote ninguém vê né? Um monte de gente se arriscando pra pular o muro e entrar pelo buraco que o próprio morador fez

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