Chacina no Salgueiro: polícia é responsável por 41% da letalidade violenta em São Gonçalo

Policiais na área do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, onde foram encontrados oito corpos após operação: 41% da letalidade violenta no município vem de intervenções de agentes do estado (Foto: Reprodução/TV Globo)

Monitoramento de políticas públicas da Casa Fluminense mostra que, em seis municípios, mais de 40% das mortes violentas são por intervenção dos agentes do estado

Por Oscar Valporto | ODS 11ODS 16 • Publicada em 25 de novembro de 2021 - 11:50 • Atualizada em 28 de novembro de 2021 - 11:17

Policiais na área do Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, onde foram encontrados oito corpos após operação: 41% da letalidade violenta no município vem de intervenções de agentes do estado (Foto: Reprodução/TV Globo)

A morte a tiros de nove homens no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, em operação do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da PM do Rio de Janeiro confirma uma macabra estatística: grande parte das mortes violentas no estado é provocada pela intervenção de agentes do estado. Dados levantados junto ao ISP (Instituto de Segurança Pública) pela Casa Fluminense mostra que, em seis municípios da Região Metropolitana da capital, mais de 40% dos casos de letalidade violenta são consequência da intervenção de agentes do estado: São Gonçalo (41%) está na lista que inclui ainda Japeri (41%), Queimados (43%), Mesquita (46%), Niterói (48%) e Itaguaí (49%).

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Os dados sobre segurança pública fazem parte do Relatório de Monitoramento Agenda Rio 2030, documento organizado pela Casa Fluminense — organização que debate políticas públicas para a redução das desigualdades na Região Metropolitana do Rio – e lançado nesta quarta-feira (24/11). A publicação reúne dados e análises sobre políticas públicas de habitação, emprego, transporte, segurança, saneamento, saúde, educação, cultura, assistência social e gestão pública. Mas a matança no Salgueiro tornou a segurança o tema principal do lançamento virtual. “O Rio de Janeiro tem um histórico de chacinas e a polícia do Rio é a que mais mata e mais morre em todo o país”, frisou a socióloga Claudia Cruz, coordenadora de Informação da Casa Fluminense.

No caso do Complexo do Salgueiro, pelo menos, nove homens foram mortos a tiros entre a noite de sábado (20) e o domingo (21), horas depois do sargento PM Leandro Rumbelsperger da Silva, de 38 anos, ter sido assassinado por criminosos na região. Operação do Bope provocou intenso tiroteio que deixou a população vizinha em pânico. Na manhã de domingo, os próprios moradores retiraram oito corpos do manguezal ao lado da favela. Não foram encontradas armas. A nona vítima fatal foi levada por policiais para um hospital da região já sem vida.

A Polícia Militar confirmou a ação do Bope no local e afirmou que criminosos esconderam-se no mangue para reagir aos policiais. O Ministério Público, a Defensoria Pública, a Polícia Civil e a própria PM vão investigar o caso. Os laudos de necropsia dos corpos dos nove mortos no Complexo de favelas do Salgueiro registram um total de 44 tiros recebidos pelas vítimas – a maioria na cabeça e no tórax. A Polícia Militar informou que 75 PMs do Batalhão de Operações Especiais (Bope) participaram da operação, mas só oito agentes teriam tomado parte na troca de tiros.

O indicador de letalidade violenta, criado pelo ISP, engloba os óbitos por homicídio doloso, latrocínio, lesão corporal seguida de morte ou morte por intervenção de agente de estado. De acordo com o levantamento da Casa Fluminense, foram registrados, em 2020, 4907 óbitos com essas características no estado do Rio – 73,3% na RMRJ, onde houve 3595 mortes violentas. “Os dados confirmam a inutilidade das operações policiais. Como está registrado no relatório, a letalidade policial nunca serviu para reduzir a violência, ou para aumentar a sensação de segurança ou para combater a criminalidade”, frisou a historiadora Marilene de Paula, coordenadora de Programas e Projetos de Direitos Humanos da Fundação Heinrich Böll no Brasil, que também participou da live de lançamento.

Ela também destacou outros dados do relatório da Casa Fluminense: nos últimos cinco anos, 100 crianças foram baleadas em operações policiais no Grande Rio e, desde 2017, oito grávidas foram mortas a tiros no Rio de Janeiro. “É uma triste realidade: a polícia do Rio também é a que mais mata crianças e adolescentes”, acrescentou Marilene de Paula, lamentando a letalidade policial. No próprio Complexo do Salgueiro, em maio de 2020, o estudante João Pedro Mattos, de 14 anos, foi baleado e morto quando brincava com amigos dentro de casa, durante uma operação conjunta das polícias Federal e Civil.

O relatório lembra que os seis municípios onde ação policial é responsável por mais de 40% da letalidade violenta – Itaguaí, Niterói, Mesquita, Queimados, Japeri e São Gonçalo – estão também no topo da lista de mortos por 100 mil, com exceção de Niterói. “Apesar disso, Niterói chama a atenção não apenas pelo fato de as mortes por agentes policiais representarem 48% das mortes violentas ocorridas no município, mas, sobretudo, por conta de 81,3% dos vitimados nesse tipo de crime serem pretos ou pardos, enquanto apenas 35% da população da cidade é negra, de acordo com dados do Censo do IBGE (2010)”, aponta o relatório.

A parte sobre segurança do Relatório de Monitoramento Agenda Rio 2030 também lembra a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635 (ADPF), em que o STF restringiu a realização de operações policiais nas comunidades do Rio de Janeiro durante a pandemia. “A ADPF inicialmente chegou nos espaços como sopro de esperança, mas com o passar do tempo ela indicava não ter logrado sucesso, haja vista a continuidade de ações e trocas de tiros em diversas favelas da RMRJ”, afirma o documento.

O relatório reúne ainda parentes de vítimas da letalidade policial como Lidia da Silva Moreira Santos, avó das meninas Emily e Rebecca, mortas em Duque de Caxias. “É importante humanizar essas histórias que não podem se perder em estatísticas cruéis. Sabemos que as grandes vítimas da letalidade policial são os pretos e os pobres e precisamos lembrá-los sempre, principalmente as mulheres e as crianças”, disse a deputada estadual Renata Souza.

Região Metropolitana tem seis municípios onde a ação da polícia é responsável por mais de 40% das mortes violentas (Arte: Casa Fluminense)
Região Metropolitana tem seis municípios onde a ação da polícia é responsável por mais de 40% das mortes violentas (Arte: Casa Fluminense)

Monitoramento de políticas públicas

O lançamento marcou também a abertura do Fórum Rio 2021, com três dias de laboratórios dedicados ao intercâmbio de experiências sobre temas urbanos e metropolitanos analisados no Relatório de Monitoramento nas suas 10 áreas – habitação, emprego, transporte, segurança, saneamento, saúde, educação, cultura, assistência social e gestão pública. “Esse relatório pretende apresentar a cada dois anos, o monitoramento das propostas apontadas na Agenda Rio 2030 e dos indicadores do Mapa das Desigualdades”, explicou Claudia Cruz.

Além da segurança, outro ponto destacado pelos pesquisadores da Casa Fluminense no relatório foi a habitação. De acordo com dados de 2019, o estado do Rio tinha um déficit habitacional de quase meio milhão de moradias – 360 mil concentradas na Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ). Em relação ao número de domicílios com inadequação de infraestrutura, fundiária ou de equipamentos mínimos, no total, existem 2,1 milhões em todo o estado e 1,6 milhão na RMRJ com urgentes necessidades de melhorias.

Na área de Saúde, prioritária no pós-pandemia, o Relatório de Monitoramento aponta que dez municípios da RMRJ perderam capacidade de atendimento na Atenção Básica nos últimos cinco anos: Itaguaí, Paracambi e Cachoeiras de Macacu perderam mais de 20%. Entre as 22 cidades metropolitanas, Paracambi, Rio de Janeiro, Duque de Caxias, Queimados e Belford Roxo atendem menos da metade da população com atenção básica. “A publicação cruza questões estruturais com o cenário da pandemia em um contexto de drástico acirramento das desigualdades, da violência e do reaparecimento da fome e da pobreza extrema”, afirmou a coordenadora de Informação da Casa Fluminense.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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