A Lagoa dos Tupinambás

A estátua do Curumim é a única homenagem aos primeiros moradores que sequer conseguiram deixar de herança um nome indígena para o lugar. Foto Oscar Valporto

O Dia do Índio pode ser um bom pretexto para mudar o nome do maltratado cartão postal

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 15 de abril de 2018 - 17:40 • Atualizada em 23 de fevereiro de 2023 - 15:06

A estátua do Curumim é a única homenagem aos primeiros moradores que sequer conseguiram deixar de herança um nome indígena para o lugar. Foto Oscar Valporto

Foi mestre Carlos Heitor Cony, morador apaixonado, que reproduziu uma definição da Lagoa, em seu livro da série Cantos do Rio, como a maior rotunda rodoviária do mundo, com 64 entradas e saídas para carros. De todas as violências cometidas contra a antiga Piraguá (água parada em tupi) ou Sacopenapã (caminho dos socós, uma ave de bico comprido), essa epidemia de veículos de hoje é a que mais me incomoda. Transformaram o entorno da lagoa em uma via expressa, quase sempre engarrafada por excesso de carros e sinais. O lugar privilegiado pela vista – que inclui o Cristo Redentor, a Pedra da Gávea e o próprio espelho d’água – é uma área de lazer elitista, onde o transporte de massa não chega e ir de ônibus significa enfrentar congestionamento: lazer na Zona Sul para a Zona Sul.

Mas, em um dia azul do outono carioca, com tempo e disposição para andar, passear pela orla da Lagoa é um ótimo programa, programa tão bom como deveria ser para os primeiros habitantes das suas margens, os tupinambás da aldeia Kariane. Os índios plantavam mandioca e tabaco, colhiam frutas, fabricavam panelas de barro, machados de pedra, cestas e cipó, caçavam – inclusive os socós – e pescavam na lagoa, pelo menos, até 1575. Os tupinambás foram aliados dos franceses contra os portugueses nas batalhas pela Baía de Guanabara: não é de espantar que muitas de suas aldeias tenham sido destruídas após a vitória das tropas de Estácio de Sá e da fundação da cidade do Rio de Janeiro, em 1565. Os livros registram que, dez anos depois, os tupinambás da Lagoa foram dizimados por uma epidemia de varíola: o governador da capitania, Antonio Salema, um precursor da guerra bacteriológica, espalhou roupas de pessoas mortas pela doença pelas matas do entorno para acabar com os índios e criar um engenho de açúcar.

Difícil imaginar tanto as roças rudimentares indígenas quanto os campos de cana ao andar à beira da lagoa do século XXI. Com a informação de que o espelho d’água era, na chegada da Família Real ao Brasil, praticamente o dobro de hoje, é mais fácil visualizar o avanço dos aterros. Após Dom João VI desapropriar o engenho para fazer uma fábrica de pólvora e o Jardim Botânico, atraindo as primeiras moradias urbanas, a orla da lagoa recomeçou a ser ocupada por gente, quase 250 anos depois dos tupinambás, E após mais de um século, começou a ser aterrada sistematicamente, quando já era então vítima da poluição. A primeira grande invasão veio com a construção dos canais da Visconde de Albuquerque e do Jardim de Alah, este o ponto de partido desta minha caminhada: toneladas e mais toneladas de terra retiradas para abertura dos canais a partir de 1920 serviram para criar aterros para a construção da Avenida Epitácio Pessoa, então presidente da República, e, depois, para o Hipódromo da Gávea (em 1926), o Clube dos Caiçaras (em 1931), a sede do Piraquê (em 1940), o Estádio de Remo da Lagoa (em 1954)…

No domingo de sol, o movimento no entorno é grande, mas ainda assim há menos cariocas ali do que nos carros engarrafados ao redor. Foto Oscar Valporto
No domingo de sol, o movimento no entorno é grande, mas ainda assim há menos cariocas ali do que nos carros engarrafados ao redor. Foto Oscar Valporto

Com o avanço dos aterros, nos mais de sete quilômetros em torno da lagoa, já teve de tudo um pouco: brincava-se num tobogã e hoje há pistas de skate e patins; criaram ali um Drive-In perto de onde hoje há um complexo de cinemas; abrigou parque de diversões e hoje multiplicam-se áreas de piquenique e lazer para crianças. E mais heliporto, cais para pedalinhos, garagens de remo, quiosques sem muito atrativos, quadras de basquete e tênis, parque para cães e até um campo de baseball. No domingo de sol, o movimento no entorno é grande, mas ainda assim há menos cariocas ali do que nos carros engarrafados ao redor, a caminho do Rebouças ou do Zuzu Angel: foram as construções dos túneis ligando à Zona Norte à Barra que transformaram a Lagoa na maior rotatória do mundo.

Também dá para imaginar neste caminho as favelas da Ilha das Dragas, aterrada na duplicação da avenida, da Praia do Pinto, que deu lugar à Selva de Pedra, e da Catacumba, onde surgiram edifícios luxuosos e o parque – todas removidas na década de 1960. A poluição das águas, praga desde o século XIX, tornou-se endêmica com a especulação imobiliária: mergulhar, como faziam os índios, tornou-se inimaginável. O calor, a sede e as pernas me levam em direção ao Bar Lagoa, já na Borges de Medeiros, onde bebe-se um dos melhores chopes da cidade e é possível beliscar petiscos alemães na varanda com vista do Cristo e do espelho d’água. Sob o sol de 2018, encontram-se até cariocas repetindo outros hábitos tupinambás de cinco séculos atrás como atravessar a lagoa a remo – antes com canoas, hoje com barcos esportivos – e pescar nas suas margens – antes com lança ou arco e flecha, hoje com varas de pescar.

A estátua do Curumim – instalada numa pedra no espelho d’água, perto da garagem de remo do Vasco – é a única homenagem aos primeiros moradores que sequer conseguiram deixar de herança um nome indígena para o lugar. Se Ipanema, bairro batizado com nome tupi, e Copacabana – nome quechua, tribo andina – vêm sendo cantadas em versos há gerações, a Lagoa Rodrigo de Freitas traz muito menos inspiração aos poetas, por conta, certamente, deste infeliz nome de batismo, homenageando um militar português que herdou as terras da mulher e nada fez de significativo nos seus 15 anos no Rio (1702/1717). Como estamos perto do Dia do Índio, fica a ideia para os nossos representantes no Legislativo e no Executivo: rebatizar a Lagoa – o acidente geográfico, não o bairro – de  Piraguá ou Sacopenapã para homenagear os tupinambás, que cuidaram do lugar bem melhor do que fez Rodrigo de Freitas ou qualquer outro homem branco nos séculos seguintes.

#RioéRua

A orla da Lagoa recomeçou a ser ocupada por gente quase 250 anos depois dos tupinambás. Foto Oscar Valporto
A orla da Lagoa recomeçou a ser ocupada por gente quase 250 anos depois dos tupinambás. Foto Oscar Valporto

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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