ODS 1
Guanabara, espelho do Rio
Uma declaração de amor à baía de tantas histórias e batalhas
Desde a chegada dos primeiros portugueses colonizadores com suas naus, a Baía de Guanabara vem sendo alvo de disputas e invasões. As mais modernas envolvem a polêmica despoluição de suas águas, a presença ostensiva de navios petroleiros, a sobrevivência das comunidades ribeirinhas com sua pesca artesanal e a preservação dos 34 botos remanescentes. Estas e outras batalhas fazem parte do livro “Guanabara, espelho do Rio”, que os jornalistas Custodio Coimbra e Cristina Chacel lançaram em julho de 2016. São 240 páginas e 170 fotos de um profundo carinho por esta cidade. A seguir o #Colabora publica, com exclusividade, o primeiro capítulo e algumas fotos do livro. (Clique ou toque na imagem abaixo para ver a fotogaleria). Aproveite.
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Espelho meu, quem é mais bela do que eu?
Ela é berço, núcleo, raiz e matriz. Guarda meio século de história de um país continental. Habitada por índios Tamoios, da nação Tupi-Guarani, desde que um português de nome Gaspar de Lemos cruzou seus domínios, com sua nau colonizadora, em janeiro de 1502, tem sido palco de disputas e invasões. Algumas acontecidas, outras aguardadas ou simplesmente sugeridas por um conjunto de fortificações espalhadas em pontos estratégicos de defesa militar.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]É certo que a vida não anda fácil para quem vive da pesca na Guanabara, um contingente estimado em 20 mil pescadores. Na baía fortemente disputada, são muitas as chamadas zonas de exclusão, áreas interditadas, seja em razão da segurança militar, da preservação ambiental ou ocupação econômica
[/g1_quote]Bela, estupidamente bela, inacreditavelmente bela, é Paisagem Cultural da Humanidade, título conferido em 2012 pelas Nações Unidas, diante de evidências inenarráveis. Feita de pedra, mata e água, dispostas em abundância e perturbadora harmonia, é ensolarada e quente. Desvela-se em cores. É muito azul, muito verde, dourada no amanhecer e vermelha ao cair da tarde. Um espetáculo diário a quem tem olhos para ver e tempo a perceber.
Baía metropolitana. Sua bacia hidrográfica ocupa uma área de 4 mil Km², aproximadamente, tendo o espelho d’água 380 km², ou 9,5% da unidade. Pioneiro e aguerrido estudioso de sua ocorrência social e científica, o geógrafo Elmo Amador, de respeitável memória e a quem rendemos homenagem, deixou registrado tratar-se de “um estuário originado pelo afogamento marinho de uma bacia fluvial”, o que significa dizer que geologicamente é uma área baixa inundada pelo avanço do mar.
Metropolitana, é caso e descaso. Ao seu redor, assentam-se 16 cidades. Sua face mais visível é a do Rio de Janeiro, com o morro do Pão de Açúcar e o Cristo Redentor, mirantes assediados por turistas o ano inteiro. Todos querem apreciar, do alto e de longe, o esplendor da baía de Guanabara.
Retaguarda invisível. O deleite da paisagem sem atropelos, entretanto, é de quem mora em frente, do outro lado da poça, em Niterói, conhecida por oferecer a mais bela vista do Rio de Janeiro. De todas as 16 cidades da Guanabara, Niterói é a que melhor enxerga e respira sua atmosfera marítima. Na retaguarda, estão municípios pobres e quase invisíveis, como Caxias, Magé, Guapimirim, Itaboraí e São Gonçalo, que nasceram para servir à Corte instalada no Brasil colônia e cresceram em desgoverno.
Juntas, essas cidades somam oito milhões de cidadãos, em condições de vida desigual. Oito milhões de pessoas que em pleno século 21 demandam investimentos em infraestrutura e serviços urbanos de uma agenda de saúde pública do século 19 – saneamento básico, captação e tratamento de água e esgoto sanitário, coleta de lixo. Uma agenda que há mais de um século drena recursos públicos para programas de saneamento ou despoluição que não acontecem, ou acontecem por baixo, e não resolvem.
Pulmão do recôncavo. Viva e generosa, ela se regenera na Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, a primeira unidade de conservação de manguezais do Brasil, criada em 1984. São 14,3 mil hectares de extensão e 80 km² de florestas contínuas de mangues, que atravessam quatro municípios – Magé, Guapimirim, Itaboraí e São Gonçalo – com direito a uma reserva de proteção integral de 2 mil hectares, a Estação Ecológica da Guanabara, que ainda guarda mata primária.
Há 30 anos, não era assim. O lugar sofria com desmatamento crescente, provocado pela extração da madeira do mangue para servir de lenha às olarias da região. Hoje, oferece a quem passa por ali a mesma paisagem que o português Gaspar de Lemos conheceu e revelou ao mundo há 500 anos. Mas pouca gente passa. A maioria dos 8 milhões de brasileiros que vive no entorno da baía desconhece a APA de Guapimirim, uma história exemplar de luta e conquistas.
Nesta porção rural da Guanabara, dentro da APA de Guapimirim, onde a vida é silenciosa e o tempo corre devagar, vivem comunidades tradicionais, gente que trabalha na pesca artesanal, um legado da cultura indígena presente na região. Negócio familiar, por organização, e de subsistência, por escala e precisão, a pesca artesanal se desenvolve de forma rudimentar. Como o próprio nome indica, praticamente todos os meios, artefatos e apetrechos são criados pelos pescadores e fabricados à mão.
Zonas de exclusão. É certo que a vida não anda fácil para quem vive da pesca na Guanabara, um contingente estimado em 20 mil pescadores. Na baía fortemente disputada, são muitas as chamadas zonas de exclusão, áreas interditadas, seja em razão da segurança militar, da preservação ambiental ou ocupação econômica. A geógrafa Carla Ramôa Chaves analisou a redução do espaço vivido em sua tese de mestrado. Sua cartografia social, obtida a partir de “mapas mentais”, desenhados por pescadores em oficinas participativas, revelou que restam, hoje, de 12% a 25% do espelho d’água para a pesca. E que uma fatia de 22% a 44% encontra-se ocupada por um setor industrial específico – o do petróleo.
A Guanabara como lugar de petróleo é uma história recente, de 50 anos. Começa na Refinaria Duque de Caxias, a Reduc, ali implantada em 1961, na rodovia Washington Luiz, que leva às serras de Petrópolis e Teresópolis. Ali, na borda da baía, a Reduc produz gasolina, diesel, GLP, nafta e lubrificantes. E foi justamente dali que, no ano 2000, vazaram 1,3 milhão de litros de óleo para as águas da Guanabara, espalhando-se por 40 km² e atingindo em cheio a fauna e a flora do rio Suruí, no limite da APA de Guapimirim.
Hoje, além da Reduc, a Guanabara abriga o Terminal Aquaviário da Ilha D’Água, que movimenta petróleo e derivados, o terminal da Ilha Redonda, voltado para GLP e petroquímicos, o Terminal Flexível de GNL, de gás natural, e o Terminal da Ilha Comprida, também de petróleo e derivados. Todo este ativo fixo, para usar um termo econômico, funciona interligado entre si por uma rede de dutos, que passam por terra e por debaixo d’água.
Some-se a este ambiente o Complexo Petroquímico do Estado do Rio de Janeiro – Comperj – licenciado em 2006, nas margens da baía, em Itaboraí, e a movimentação de navios de suporte à exploração da jazida gigante da camada de Pré-Sal, a joia da república, descoberta em 2007, que revelou reservas estimadas em 50 bilhões de litros de petróleo nas águas profundas da bacia de Santos.
Quem contorna ou atravessa a Guanabara, hoje, nota algo diferente. São navios, plataformas, rebocadores, em grande quantidade, que mudaram a paisagem mais famosa do Brasil. Chegam a 80 o número de navios fundeados, ao mesmo tempo, no estacionamento da Guanabara. Destes, 80% são embarcações ligadas à indústria do petróleo, informa a Companhia Docas do Rio de Janeiro. Paulatinamente, a Guanabara vai sendo transformada em parque de logística do Pré-Sal.
Caldeirão cultural. Múltipla, misturada, despudorada, a baía de tantos interesses é também a baía de todo dia para milhares de cidadãos que dela se servem para ir e vir, ser e estar. É a baía cosmopolita, das barcas e dos catamarãs, que levam e trazem passageiros de Niterói, Paquetá e Rio de Janeiro. A baía cotidiana, do entra e sai de visitantes e viajantes, nos portos e aeroportos, do corre-corre no centro financeiro, e do vaivém diário de 150 mil carros na travessia da ponte Rio-Niterói.
Ambígua e contraditória, é também parque e recreio, esporte e lazer. Das lanchas, dos iates, das velas e das canoas havaianas, pontilhada de clubes, marinas e praias. Baía das famílias, pais, filhos e avós, que se esbaldam em suas águas de balneabilidade incerta, nos dias de verão. Baía dos ciclistas e maratonistas, nas pistas caprichosas do Aterro do Flamengo, ou na orla inspirada do Caminho Niemeyer. Dos quiosques à beira-mar, dos museus de arte, da área portuária renovada, na margem do Rio de Janeiro, que propõe um reencontro do cidadão com a cidade de origem.
E é, ainda, a baía renitente, território das universidades, mirante do conhecimento, imenso laboratório a céu aberto, que se oferece à pesquisa e ao desenvolvimento da ciência. A baía de espécies em extinção, incluídas na lista vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza, como as tartarugas que visitam Icaraí, os cavalos marinhos dos costões rochosos da Urca, e os queridos botos, uma família nativa de 34 indivíduos, que resiste e insiste em viver na Guanabara.
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Jornalista e escritora, atuou nos principais jornais do Rio de Janeiro. Há 20 anos trabalha como freelance, com criação de textos jornalísticos e institucionais e projetos sociais e solidários. É autora de dezenas de livros, entre eles "Rio de cantos mil", com fotos de Custodio Coimbra.
Nota da redação: Cristina Chacel morreu em 2020.
Aqui não vai um comentário, mas uma observação/dúvida: No trecho “Espelho meu, quem é mais bela do que eu?
Ela é berço, núcleo, raiz e matriz. Guarda meio século de história de um país continental”, não seria meio milênio? E uma memória: em 1986 ou 87, fiz uma matéria sobre a poluição na Baía de Guanabara para a revista Manchete. Aquelas matérias de 10 páginas que você fica um mês apurando. Percorri toda a Baía com uma lancha do DNOS (Departamento Nacional de Obras e Saneamento), vi a poluição pelas fábricas de sardinha em Niterói, o desmatamento no fundo da Baía pelas olarias, a Companhia Brasileira de Anibióticos, em Tanguá, município que na época era distrito de Itaboraí, descartando resíduos perigosos no mar, e por aí foi. Mas a conclusão final do engenheiro que me acompanhou era: se canalizassem o esgoto doméstico jogado nos rios Sarapuí, Iguaçu e um terceiro que não lembro, e jogassem na hora que a corrente sai da Baía, na parte profunda ali entre o Flamengo e a Fortaleza de Santa Cruz, mais de 50% do problema estaria sanado. Trinta anos se passaram e nem isso foi feito. Tratar esgoto então…
Só faltou falar mais dos lixões clandestino em São Gonçalo e Duque de caxias.