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Dias de luto e de perdas no Centro do Rio de Janeiro

Incêndio no coração da Lapa destrói casarão antigo e painel do 'Michelangelo dos botequins' para dor de enlutadas almas cariocas

ODS 11 • Publicada em 21 de outubro de 2025 - 08:50 • Atualizada em 21 de outubro de 2025 - 11:03

Tem horas (dias, semanas) quando parece que há sempre uma chuva à espreita nesta cidade de São Sebastião: almas cariocas de luto nem se importam com o céu nublado; para conviver com a dor da ausência, melhor nem ter o sol de primavera querendo abrir as janelas do peito. Este RioéRua tenta quase sempre driblar a melancolia e lançar um olhar mais otimista pela cidade.

Mas tem horas (dias, semanas) que fica mais difícil – e a culpa nem é do Rio: o colunista de luto com a interrupção de uma convivência diária de quase 15 anos corre os olhos sem animação pelas coisas da cidade, sequer para as boas notícias que sempre aparecem. Vai passar a ter roda de samba no novo Mercadinho São José a partir de novembro? Bacana: mas isso me faz lembrar que um querido, compositor de sambas e poeta, frequentador do antigo mercado quando estava nas trincheiras do jornalismo diário, não vai poder levar seu violão e entrar na roda.

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Tem horas (dias, semanas) que parece haver sempre uma chuva à espreita na cidade para molhar a alma carioca enlutada, que nem se importa com dias nublados: o céu cinza não atrapalha a caminhada pelas ruas, não provoca a inundação das vias nem a multiplicação das poças. Falta inspiração para falar de coisas boas, do movimento para a recuperação do painel Os Pássaros, do pintor Roberto Magalhães, na esquina das ruas da Quitanda e São José a ordem judicial para recuperar a casa de Machado de Assis morou na Rua dos Andradas, tombada pelo patrimônio municipal e acelerado processo de deterioração.

Prédio da primeira metade do século passado em chamas na Lapa: luto e perdas no Centro do Rio (Foto: Reprodução de vídeo - Redes Sociais)
Prédio da primeira metade do século passado em chamas na Lapa: luto e perdas no Centro do Rio (Foto: Reprodução de vídeo – Redes Sociais)

Nestas horas (dias, semanas) de luto, o olhar permanece no descaso com os pioneiros painéis – como o de Magalhães – a ocuparem muros e fachadas laterais de imóveis no Centro nos longínquos anos 1980 e também na proliferação de exemplares em ruínas do casario antigo da cidade. Ações para preservação ficam relegadas às penumbras do espírito desesperançado, num segundo plano em que parecem estar confinadas a animação e a alegria. Seriam necessários muito mais do abaixo-assinados e ordens judiciais para mudar o rumo desta prosa.

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Foi neste estado que o olhar cansado passou entre as imagens das ruínas de Gaza massacrada pelos bombardeios israelenses e as batidas da polícia paulista atrás dos fabricantes de bebidas com metanol para se fixar de um casarão antigo em chamas na Lapa, no coração da Lapa, no cruzamento das avenidas Gomes Freire e Mem de Sá, a dois quarteirões dos Arcos famosos. Não que fosse surpresa ver um imóvel, talvez centenário, maltratado pelo tempo, ser atingido por um incêndio. Quatro meses atrás, este #RioéRua passeou por imóveis abandonados ou degradados nesta área do Centro: lembrou ali que o grupo SOS Patrimônio contabilizava, agora em 2025, entre 600 e 750 imóveis em péssimas condições de conservação na região central do Rio.

O imóvel em chamas não estava abandonado: no térreo, havia em funcionamento um bar, uma farmácia, um chaveiro e uma ótica. Os dois andares superiores serviam de depósito. O fogo, pela avaliação inicial dos bombeiros e pelo relato das testemunhas, começou no andar debaixo, no restaurante, e queimou tudo também nos dois de cima.

O painel de Nilton Bravo no bar A Figueira, destruído pelo fogo: a cidade de luto pela perda da história e da memória (Foto: Oscar Valporto - 11/07/2023)
O painel de Nilton Bravo no bar A Figueira, destruído pelo fogo: a cidade de luto pela perda da história e da memória (Foto: Oscar Valporto – 11/07/2023)

A perda da memória da cidade fica mais triste porque sabemos que, no primeiro andar consumido pelo fogo, ficava mais uma exemplar da obra de Nilton Bravo, o pintor chamado de ‘Michelangelo dos botequins’, por ter espalhado seus quadros e painéis pelos bares do Rio de Janeiro. Houve um tempo, lá na segunda da metade do século passado, que era sinal de prestígio ter uma pintura de Nilton Bravo no botequim. Ao longo dos tempos, eles foram desaparecendo: tanto a obra do pintor quanto muitos dos bares que abrigavam seus quadros e painéis.

Descobri este na esquina das avenidas Gomes Freire e Mem de Sá, na Lapa, em 2023 – não conhecia nem aquele exemplar de Nilton Bravo, nem o bar ‘A Figueira’, onde ele estava, meio encoberto por garrafas de bebida. O incêndio deste outubro de 2025 decreta o fim de mais um painel do pintor e possivelmente do própria botequim – ‘A Figueira’, aliás, já estava em vias de extinção, incorporado a rede ‘Sonho Lindo’.

E, assim, a cidade fica órfã de mais um pouco de sua história e de sua memória. Como também este cronista: órfão de pai, órfão de mãe, órfão do sogro, fonte de tanta sabedoria, órfão do principal companheiro de copo e de bar por 37 anos, órfão agora do parceirinho de sofá que, por 14 anos, tantas vezes velou pelo meu sono e me ajudou a combater a insônia e os maus pensamentos.

Caminhar pela cidade nestas horas (dias, semanas) de luto é também fazer uma contabilidade de perdas: do Rio de Janeiro, de seu centro histórico, da Lapa de outrora, das memórias afetivas de todos os cariocas de nascimento e de coração. Faz parte das marchas e contramarchas da vida – é preciso seguir caminhando.

A tarefa dos vivos é viver.

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