Cidades x natureza: o desafio de tornar uma vilã ambiental em parte da solução

Modelo de urbanização, por muitos anos ignorado na discussão ambiental, gerou a situação atual: crise climática ameaça os assentamentos urbanos

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 23 de junho de 2022 - 08:01 • Atualizada em 30 de novembro de 2023 - 15:26

Engarrafamento na capital paulista: transporte é o maior responsável pela emissão de gases de efeito estufa nas cidades brasileiras (Foto: Prefeitura de São Paulo)

Engarrafamento na capital paulista: transporte é o maior responsável pela emissão de gases de efeito estufa nas cidades brasileiras (Foto: Prefeitura de São Paulo)

Modelo de urbanização, por muitos anos ignorado na discussão ambiental, gerou a situação atual: crise climática ameaça os assentamentos urbanos

Por Oscar Valporto | ODS 11 • Publicada em 23 de junho de 2022 - 08:01 • Atualizada em 30 de novembro de 2023 - 15:26

Em 1972, as cidades passaram ao largo da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, a primeira com foco em questões ambientais. A preservação dos recursos, a proteção da natureza – da fauna e da flora – e a contenção dos danos aos ecossistemas foram os temas centrais da Declaração de Estocolmo. Não houve qualquer citação sobre cidades, onde, já então, concentravam-se parte significativa dos problemas ambientais como a emissão de gases de efeito estufa e a poluição do ar e da água de rios e lagoas.

A ONU até promoveu sua primeira conferência sobre os desafios da urbanização – a Habitat-1 – quatro anos depois, no Canadá, que resultou na criação em 1977 dos órgãos precursores do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), que, entretanto, só foi oficialmente estabelecido em 2002, trinta anos depois. Neste período, as cidades cresceram exponencialmente e, nos países em desenvolvimento, descontroladamente, criando novos problemas ambientais.

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Estes problemas foram discutidos em profundidade realmente só na Habitat-2 – realizada na Turquia, em 1977 – que foi chamada de Cúpula das Cidades, ao produzir efetivamente um robusto documento, assinado por 171 países, com 100 compromissos e 600 recomendações sobre questões e desafios urbanos. “Passamos séculos enxergando a natureza como inimigo, o ser domado, controlado, dominado pela urbanização”, aponta o geógrafo Henrique Evers, gerente de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil. “Essa visão da natureza oposta ao urbano nos trouxe até essa condição de hoje quando as mudanças climáticas ameaçam os assentamentos urbanos”, acrescenta.

As cidades precisam ser eficientes no uso dos recursos para minimizarem seu impacto ambiental, para não serem parte apenas do problema mas também da solução

Henrique Evers
Gerente de Desenvolvimento Urbano da WRI

O tradicional método de urbanização dos séculos 19 e 20, visto na maioria das grandes cidades brasileiras, foi baseado nessa oposição à natureza. “A cidade cresceu avançando sobre a natureza. A canalização dos rios, a destruição da floresta, dos campos, das áreas naturais, o aterramento das áreas inundadas, dos pântanos, dos lagos, inclusive do mar: esse foi o modelo”, afirma Evers, destacando que essa urbanização criou cidades permanente expostas a enchentes e inundações, agravadas hoje pela crise climática.

Jardim de chuva na Zona Leste de São Paulo: solução baseada na natureza para minimizar inundações (Foto: Prefeitura de São Paulo)
Jardim de chuva na Zona Leste de São Paulo: solução baseada na natureza para minimizar inundações (Foto: Prefeitura de São Paulo)

Cidades (in)eficientes

Os problemas ambientais das cidades vão muito além da drenagem das águas: transporte, energia, habitação, saneamento e resíduos (lixo) fazem parte da lista. “Nas cidades brasileiras, transporte é o ponto chave: é o transporte que mais emite gases, é um problema social, econômico e ambiental. A mobilidade urbana enfrenta, em geral, um grave problema de falta de acesso ao transporte coletivo, da dependência do carro, do transporte individual”, frisa o gerente de de Desenvolvimento Urbano da WRI Brasil, instituto de pesquisa com o objetivo de transformar ideias em ações para promover proteção do meio ambiente, oportunidades econômicas e bem-estar humano.

Devemos entender os rios como parte da estrutura de drenagem da cidade, entender a floresta como parte da estrutura de contenção dos deslizamentos, entender os canteiros de chuva também como parte do sistema de drenagem da cidade

Henrique Evers
Gerente de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil

A poluição do ar, causada principalmente pela queima de combustível fóssil do transporte urbano, é um problema global, mas que já está sendo enfrentado em grandes metrópoles. Paris proibiu a entrada de veículos mais poluentes no centro da cidade, baniu carros da beira do Rio Sena e vem recuperando vias para árvores, pedestres e ciclistas. Bogotá está desenvolvendo Bogotá um sistema metroviário totalmente elétrico, que será capaz de transportar seus 8 milhões de habitantes, e adicionou mais 60 quilômetros aos 550 quilômetros de ciclovias da capital colombiana. Em Seul, robôs autônomos habilitados examinam complexos industriais para monitorar a qualidade do ar, enquanto um sistema de monitoramento por satélite oferece dados de qualidade do ar em tempo real para a população.

No Brasil, a falta de um sistema de transporte coletivo de qualidade – uma realidade distante – é agravada pela falta de adensamento das cidades. “O programa Minha Casa, Minha Vida endereçou bem a situação habitacional, com a criação de moradias com alguma estrutura, mas gerou um problema grave de mobilidade, porque levou a população para as periferias, onde havia terrenos disponíveis mas não havia estrutura de transporte”, comenta Henrique Evers.

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Para o geógrafo e urbanista, a falta de planejamento urbano torna as cidades muito ineficientes no consumo dos recursos. “As cidades consomem terra porque elas não se adensam; elas consomem combustível fóssil porque as distâncias a serem percorridas são longas; e elas acabam consumindo muita energia por conta da ineficiência das edificações”, destaca Evers, acrescentando que o consumo de energia só não é um problema ambiental nas cidades brasileiras porque o país tem uma matriz energética limpa, baseada em hidrelétricas. “As cidades precisam ser eficientes no uso dos recursos para minimizarem seu impacto ambiental, para não serem parte apenas do problema mas também da solução”, acrescenta.

Parque do Tanguá em Curitiba: equipamento de lazer e também parte do sistema de drenagem da cidade (Foto: Sandra Lima/Prefeitura de Curitiba)

Soluções baseadas na natureza

Na visão de Henrique Evers, para não ser apenas vilãs e vítimas da crise climática, as cidades precisam investir em soluções baseadas na natureza: jardins de chuva, renaturalização de rios, parques lineares e fluviais, telhados verdes e restauração de encostas. “É preciso encontrar o equilíbrio para que a natureza possa ser vista como parte do sistema estruturante da cidade, como um sistema provedor de serviços e benefícios”, argumenta. “Devemos entender os rios como parte da estrutura de drenagem da cidade, entender a floresta como parte da estrutura de contenção dos deslizamentos, entender os canteiros de chuva também como parte do sistema de drenagem da cidade”, exemplifica o especialista do WRI Brasil.

Cidades brasileiras começam a avançar no uso de soluções baseadas na natureza. Maior metrópole do país, São Paulo já instalou 200 jardins de chuva – depressões escavadas no solo, que acomodam a água da chuva proveniente do escoamento superficial que podem ser criados em calçadas, canteiros centrais e rotatórias. “Fazer jardins de chuva é uma solução supersimples: é criar um canteiro, plantar as plantas certas, com a profundidade de solo certa, e aquilo começa a funcionar como um sistema de drenagem”, atesta Henrique Evers.

Ele também cita a implantação de parques lineares de Curitiba, com a recuperação das margens do rio e a integração dos conjuntos de parques da capital paranaense. “Os parques de lagoas de Curitiba fazem parte do sistema de drenagem da cidade e também são um equipamento de lazer para a população”, afirma o gerente de Desenvolvimento Urbano do WRI Brasil. Outras soluções baseadas na natureza para áreas urbanas são a restauração da vegetação nativa nas encostas, as hortas comunitárias e outras iniciativas de agricultura urbana e a recuperação da vegetação costeira.

O especialista reforça que soluções baseadas na natureza precisam ganhar escala para ter efetivo impacto ambiental, inclusive mitigando efeitos da crise climática. “Essas soluções não são uma panaceia para resolver todos os problemas das cidades, mesmo os problemas de drenagem. Não há solução baseada na natureza para o transporte, por exemplo”, afirma lembrando, que, no caso da mobilidade, o desafio é eletrificar e universalizar o transporte coletivo. “Para enfrentar os problemas ambientais das cidades, são necessárias soluções híbridas, misturar a estrutura verde com a estrutura cinza no planejamento urbano”, afirma Henrique Evers.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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