Ativismo na construção das cidades

O Ciclo Rotas, projeto que discute a infraestrutura cicloviária no Centro do Rio, permitiu que os ativistas – usuários de bike ou não – pudessem se tornar também urbanistas

Bienal de arquitetura, em Veneza, dará destaque a projetos que contam com a participação da sociedade

Por Clarisse Linke | Mobilidade UrbanaODS 11ODS 16 • Publicada em 1 de maio de 2016 - 22:27 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 23:01

O Ciclo Rotas, projeto que discute a infraestrutura cicloviária no Centro do Rio, permitiu que os ativistas – usuários de bike ou não – pudessem se tornar também urbanistas
O Ciclo Rotas, projeto que discute a infraestrutura cicloviária no Centro do Rio, permitiu que os ativistas - usuários de bike ou não - pudessem se tornar também urbanistas
O Ciclo Rotas, projeto que discute a infraestrutura cicloviária no Centro do Rio, permitiu que os ativistas – usuários de bike ou não – pudessem se tornar também urbanistas

A 15ª Bienal de Arquitetura de Veneza, que acontecerá entre os dias 28 de maio e 27 de novembro, ganhou um nome sugestivo: “Reporting from the Front”. Por trás do vocabulário de guerra, a intenção de que a exposição vá além do papel do arquiteto na resolução dos problemas das cidades. O conceito é do premiado arquiteto chileno Alejandro Aravena, curador da mostra e vencedor do prêmio Pritzker 2016. Ele enfatiza a necessidade de um esforço inclusivo, coletivo e transversal. Em particular, a necessidade de participação de diferentes setores da sociedade, com sua energia e conhecimento dos temas que afligem a vida das metrópoles.

A maioria das pessoas se acha incompetente para projetar qualquer coisa e acredita que somente os arquitetos e planejadores poderiam fazer da maneira correta. Este entendimento foi tão longe que a maioria das pessoas se afasta, com medo da tarefa de projetar seu entorno. Têm medo de cometer erros tolos, medo de que os outros vão rir, medo de fazer algo “de mau gosto” .

A urbanização no mundo e suas consequências na qualidade de vida das pessoas têm alcançado níveis alarmantes. Não somente por termos uma população urbana crescente, mas principalmente porque as cidades vêm se espalhando mais rapidamente do que o crescimento populacional em si. Um artigo recente na Nature mencionou que, entre 1985 e 2000, a população de Accra, em Gana, aumentou em 50%, mas sua área de terra cresceu 153%. As pessoas estão tendo de viajar mais: em Nairóbi, por exemplo, as distâncias médias aumentaram de menos de 1 km, em 1970, para 25 km, em 1998. A cada ano que passa mais gente migra para as cidades buscando novas estratégias de sobrevivência. No entanto, a qualidade de vida oferecida, muitas vezes, é opressora e complexa. Esta tendência tem sido evidente no modelo de desenvolvimento urbano, principalmente nos continentes onde os desafios são ainda maiores: Ásia, África e América Latina. Neste contexto, o que Aravena propõe é uma abordagem mais generosa sobre quem efetivamente faz a cidade, ao dar aos representantes de cada país a missão de identificar onde estão sendo feitos os pequenos avanços, onde estão os focos de resistência e luta. A despeito da escassez de recursos, instituições e governança. O arquiteto chileno não quer que sejam identificados grandes heróis com projetos salvadores. Ao contrário, ele quer testemunhos de pessoas que agem de forma coerente com o que acreditam, equilibrando esperança e rigor. “A batalha para melhorar nosso ambiente construído não é nem um acesso de raiva, nem uma cruzada romântica”, descreve o curador.

O pavilhão brasileiro no evento exibirá a mostra “Juntos”, com 15 trabalhos de diferentes setores. Entre eles, a Casa do Jongo (Rua Arquitetos), o Complexo Jardim Edite (MMBB e H+F), o Circuito da Herança Africana e a Casa da Vila Matilde (Terra e Tuma Arquitetos Associados), o Parque de Madureira (Ruy Rezende) e o Ciclo Rotas Centro, desenvolvido em parceria pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP Brasil), Transporte Ativo e Studio – X Rio.

Acredito que o Ciclo Rotas tenha sido selecionado pelo curador do pavilhão brasileiro, Washington Fajardo, por sua natureza intrinsecamente ativista. E cada vez nos convencemos mais da importância do ativismo no fazer a cidade. Estamos acostumados a uma cultura na qual somente o engenheiro ou arquiteto são considerados aptos a discutir, propor e produzir soluções. Como se eles detivessem o monopólio da reflexão e das propostas.

Projeto da Escola do Vidigal, de Brenda Bello e Basil Walter, da BWArchitects, também estará na Bienal
Projeto da Escola do Vidigal, de Brenda Bello e Basil Walter, da BWArchitects, também estará na Bienal

Com o Ciclo Rotas, no entanto, nos despimos totalmente destas premissas. Não nos importamos se na equipe havia de fato arquitetos e planejadores. Naturalmente, havia, assim como pessoas dos mais diversos perfis. Mas não inventariamos estes perfis como condicionante para levarmos o projeto adiante.

Christopher Alexander, arquiteto e matemático da década de 1960, em sua obra, enfatizava de forma eloquente o processo participativo inclusive no planejamento urbano. Em sua obra “The Timeless Way of Building” (1979), Alexander analisa as razões da distância entre o usuário das edificações e dos empreendimentos urbanísticos e o arquiteto ou planejador urbano:

“A maioria das pessoas se acha incompetente para projetar qualquer coisa e acredita que somente os arquitetos e planejadores poderiam fazer da maneira correta. Este entendimento foi tão longe que a maioria das pessoas se afasta, com medo da tarefa de projetar seu entorno. Têm medo de cometer erros tolos, medo de que os outros vão rir, medo de fazer algo “de mau gosto” (Alexander, 1979:232)

Sob esta lógica, é somente aos arquitetos, engenheiros, planejadores que nós, sociedade, cidadãos, entregamos a tarefa de pensar e construir cidades. Como um briefing. Diríamos “olha, queremos circular de bicicleta no Centro”, e a eles caberia planejar uma rede cicloviária. No entanto, a conexão do usuário da cidade deve estar para além do briefing. Deve influenciar diretamente o ato de desenhar e construir. O cidadão não pode ser somente um cliente do arquiteto ou engenheiro, que passa um briefing e depois recebe um projeto pronto, no qual, no máximo, dará uns pitacos.

“Ou as pessoas constroem por si próprias, com as próprias mãos, ou falam diretamente com os artesãos que constroem para eles, mas neste caso com quase o mesmo grau de controle sobre os pequenos detalhes do que será construído. […] Cada pessoa em uma cidade sabe que seus pequenos atos ajudam a criar e manter o todo. Cada pessoa se sente portanto ligada na sociedade, orgulhosa” (Alexander, 1979:231)

O Ciclo Rotas foi a possibilidade de fazer com que os ativistas – usuários de bike ou não – pudessem se tornar também urbanistas. O cidadão quer (cada vez mais) definir junto o conceito. Quer criar. Este processo de criação compartilhada é chave na atualidade, e foi central no Ciclo Rotas. Outro aspecto interessante é que pensamos não somente nas rotas que já são feitas diariamente, mas abrimos espaço para as rotas de desejo. Ou seja, são cidadãos desenhando a circulação da cidade dos seus sonhos.

Quando embarcamos no Ciclo Rotas, jamais imaginamos que um dia este seria um projeto emblemático da cidade. Ainda aguardamos ansiosos para pedalar no Centro de bicicleta, ainda aguardamos ansiosos por esta cidade dos nossos sonhos. Mas nos reconhecemos na proposta da curadoria para o pavilhão brasileiro, quando define que “a mostra é uma composição […] do processo do encontro do ativista, do lutador, com o arquiteto e com a arquitetura, tornando-se irmanados pela elaboração do novo espaço”. Todos que clamam pela melhoria de nossa cidade são, na prática, para além de sonhadores: são lutadores urbanos.

Parque de Madureira, projetado por Ruy Rezende, outra atração do evento de Veneza
Parque de Madureira, projetado por Ruy Rezende, outra atração do evento de Veneza

Clarisse Linke

É Diretora do ITDP no Brasil e atua com políticas públicas desde 2001, com experiência no Brasil, Moçambique e Namíbia. É Mestre em Políticas Sociais pela London School of Economics. Entre 2006-2011, foi responsável pela expansão da BEN Namibia, se tornando a maior rede de bicicletas integrada a empreendimentos sociais na África sub-Saariana. Em 2010, foi premiada pela Ashoka no Desafio “Mulheres, Ferramentas e Tecnologia”. Clarisse é uma pessoa que só pensa em como transformar as cidades em lugares de felicidade.

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