Uma editora para os poetas da periferia

O professor Geovane, da Avá Editora (ao centro), entre os autores Verônica, Dina, Lenílson, Agostinho, V Patrícia Passarinho e Vitelli: livros artesanais de poesia são novidade sob o céu de Brasília (Foto: Beatriz Marques)

Trinta autores do Distrito Federal têm a chance de ver seus livros publicados

Por André Giusti | ODS 10 • Publicada em 17 de março de 2020 - 08:40 • Atualizada em 20 de março de 2020 - 10:30

O professor Geovane, da Avá Editora (ao centro), entre os autores Verônica, Dina, Lenílson, Agostinho, V Patrícia Passarinho e Vitelli: livros artesanais de poesia são novidade sob o céu de Brasília (Foto: Beatriz Marques)

O piauiense Lenílson da Costa Silva tem 32 anos e escreve poesia desde os 12. Mora em Samambaia, cidade satélite de Brasília, a 31 quilômetros da capital do país. A cidade é um ícone da distribuição de lotes de terra praticada nos anos do governo Joaquim Roriz, política apontada como uma das responsáveis pelo inchaço populacional, com falta de planejamento, do Distrito Federal.  Lenílson – que trabalha como intérprete de língua de sinais, libras – está longe do chamado eixo cultural de Brasília, o Plano Piloto. É lá que ficam, além do campus principal da UnB, a maioria dos cinemas, locais de exposição como CCBB e Caixa Cultural e os poucos teatros da cidade. 

Se está longe desse circuito local de efervescência de cultura, mais ainda está do eixo nacional, formado por Rio e São Paulo. A distância pesa para que nunca tenha publicado seus poemas, mas, na opinião dele, essa não é a única “lonjura” responsável pelo seu ineditismo como autor. “Eu sou preto, moro em favela. O imaginário social não espera que uma pessoa negra seja escritora, ainda mais em um país de semianalfabetos”, explica o poeta, sem titubear.

Mas agora Lenílson vai poder publicar seus poemas, e sem precisar se mudar para Brasília e muito menos para Rio ou São Paulo. Ele e mais 29 autores com perfil parecido: moradores da periferia do Distrito Federal e que nunca publicaram um livro; no máximo, um ou outro poema em antologias coletivas. 

A proposta da Avá dá voz materializada, impressa, aos poetas. Tem muita gente fazendo coisa há muito tempo lá na periferia. Não que a gente deixe de gritar lá, mas quando a gente se expande através da materialização do impresso, é mais legal ainda

O grupo foi selecionando pela Editora Avá, do Recanto das Emas, também na periferia e praticamente ao lado de Samambaia. Há dois anos, a Avá edita livros artesanais de autores do Distrito Federal. A pegada da editora passa longe do mercadológico e esse foi o espirito do edital que selecionou os 30 poetas. “A gente quis publicar pessoas que provavelmente não se publicariam sozinhas, seja pelo fator financeiro ou por não saberem nem mesmo como contatar uma editora”, explica Geovane César dos Santos Albuquerque, 26 anos, professor e membro do conselho editorial da Avá. “A intenção é revelar as vozes de todos os poetas da periferia de Brasília, dar visibilidade aos poetas periféricos, negros, mulheres. Por serem da periferia, a poesia deles não circula, não há espaço”, explica Cris Reis, uma das responsáveis pela editora. Além de serem de autores inéditos e que morassem em cidades satélites, o edital exigia que os poemas enviados para a seleção não ferissem direitos humanos, não fizessem apologia a entorpecentes e a drogas ilícitas e que não fossem de cunho político partidário.

Eu não sacava o tanto que isso era meu sonho. Na hora em que eu soube que havia sido selecionada, eu caí no sofá e comecei a chorar. Eu sempre pensei que um dia iria publicar, mas parecia uma coisa muito longe

Muitos dos poetas selecionados participam há anos de saraus no DF, inclusive no Plano Piloto, e há os que, além da poesia, transitam por outras atividades artísticas. É o caso de Luiz Felipe Vitelli, de 64 anos, que além de poeta, também é ator e artista plástico. “A proposta da Avá dá voz materializada, impressa, aos poetas. Tem muita gente fazendo coisa há muito tempo lá na periferia. Não que a gente deixe de gritar lá – todos os dias a gente tá gritando – mas quando a gente se expande através da materialização do impresso, é mais legal ainda”, avalia Vitelli, ativista cultural desde 1974, morador de Planaltina, a mais antiga cidade do DF, dona de um belíssimo centro histórico. 

O artista plástico Vitelli, de Planaltina, e a professora Patrícia Passarinho, de Guará: vozes multifacetadas da periferia da capital (Foto: Beatriz Marques)
O artista plástico Vitelli, de Planaltina, e a professora Patrícia Passarinho, de Guará: vozes multifacetadas da periferia da capital (Foto: Beatriz Marques)

Há gente que está nas nuvens porque vai finalmente publicar um livro. “Eu não sacava o tanto que isso era meu sonho. Na hora em que eu soube que havia sido selecionada, eu caí no sofá e comecei a chorar. Eu sempre pensei que um dia iria publicar, mas parecia uma coisa muito longe”, conta Patrícia Passarinho, nome artístico de Patrícia de Oliveira Silva. Professora do ensino fundamental da rede pública, moradora do Guará (um pouco mais perto de Brasília do que Samambaia e Recanto), divorciada e criando três filhos menores, não há brecha no orçamento para bancar uma edição por conta própria. Patrícia nem sabe para quantas editoras mandou seus poemas na esperança de emplacar no mercado editorial. “Nunca recebi uma resposta sequer, um não que fosse”, conta.

O mais interessante não é apenas a publicação: são os recursos que o projeto dá aos autores para continuarem publicando de forma independente, como as oficinas de diagramação. “É uma forma de você nunca mais depender do sistema, dos valores do sistema, porque o sistema nunca vai considerar nada que não tenha o retorno econômico

A inciativa antecipou planos do militar Agostinho Fernandez Chaves Neto, de 44 anos, natural de Angicos, no Rio Grande do Norte. Ele só queria publicar seus cordéis daqui a dez anos “para não entrar na reserva e ficar em casa sem ter nada o que fazer”, como explica. E trouxe, enfim, reconhecimento à jornalista Diná Oliveira, de 63 anos, que soube do edital ao receber um release (material de divulgação) no jornal em que trabalha, o Ceilandense, e resolveu participar. Até então, o máximo que havia conseguido era o interesse de uma publicação esotérica por um poema, e que acabou nem saindo. E para Dina, escrever significa muito. “É a única forma que eu sei de me comunicar, de me administrar, de me colocar em dia”, resume.

Autores livres

Lenílson da Costa Silva, poeta e tradutor de libras de Samambaia: "u sou preto, moro em favela. O imaginário social não espera que uma pessoa negra seja escritora" (Foto: Beatriz Marques)
Lenílson da Costa Silva, poeta e tradutor de libras de Samambaia: “u sou preto, moro em favela. O imaginário social não espera que uma pessoa negra seja escritora” (Foto: Beatriz Marques)

O projeto é muito mais do que a publicação dos 30 livros selecionados. “O mais interessante não é apenas a publicação: são os recursos que o projeto dá aos autores para continuarem publicando de forma independente, como as oficinas de diagramação”, aponta Verônica Medeiros de Araújo, de 44 anos, que ganha a vida como tradutora e mora em Taguatinga, economicamente a cidade mais forte do DF, mas, como todas  as vizinhas na periferia de Brasília, carente de inciativas culturais. “É uma forma de você nunca mais depender do sistema (editoras tradicionais), dos valores do sistema, porque o sistema nunca vai considerar nada que não tenha o retorno econômico”, afirma Verônica.

Para ganharem essa liberdade, os 30 autores passarão por oficinas em que vão meter a mão na massa da “cadeia produtiva do livro”.  Eles aprenderão a diagramar e a costurar o livro, tipos e gramatura de papel, noções de estética da capa e conhecerão material para fazer capa. “Ser capaz de publicar o seu próprio livro é você desenvolver a sua autoria duas vezes. A primeira vez é o seu texto; a segunda vez é o processo editorial exige que você olhe para a sua autoria. Você vai ter que escolher a capa, o papel, qual é a imagem que traduz melhor o seu texto. Essas escolhas reforçam essa autoria que expressa a sua identidade. A autoria é o que marca o nosso lugar no mundo”, acredita Cris Reis.  “A gente queria que os autores fossem capazes de se publicarem sozinhos. A gente tinha a ideia de não fazer apenas o livro, deles não serem reféns da gente como são das grandes editoras (que pagam 10% no máximo do preço da capa)”, explica Geovane Albuquerque.

O projeto da Avá foi o primeiro de uma série de selecionados para receber recursos do Fundo de Amparo à Cultura do Distrito Federal, que existe há 35 anos fomentando o setor na área pública na capital do país e redondezas. Serão R$ 80 mil destinados aos 30 livros (40 exemplares para cada autor), a dois volumes de uma antologia com um poema de cada poeta e ao pagamento de professores que darão as oficinas. Em troca, a independência dos autores, já que a Avá não ficará com um centavo sequer, até porque a venda dos livros não será obrigatória – Verônica, por exemplo, já avisou que vai distribuir os seus exemplares em bibliotecas. “E os direitos autorais também serão deles. Eles cederam pra gente para essa publicação, mas depois de publicados eles poderão fazer quantas tiragens quiserem. Se, depois, quiserem imprimir mil livros em outro lugar, não terão que pagar nada para a gente; isso no formato que quiserem, inclusive se quiserem aproveitar o formato da Avá com selo de outra editora”, completa Geovane.   

Vozes da periferia

Dina Oliveira, poeta e jornalista de Ceilândia, diz que sua periferia é aquela “de pessoas que acordam cedo para trabalhar, de pessoas que estão cheias de problemas mas que param para te cumprimentar” (Foto: Beatriz Marques)
Dina Oliveira, poeta e jornalista de Ceilândia, diz que sua periferia é aquela “de pessoas que acordam cedo para trabalhar, de pessoas que estão cheias de problemas mas que param para te cumprimentar” (Foto: Beatriz Marques)

O objetivo do projeto do Poema ao Livro – dar voz a poetas da periferia –  é bem delimitado pela editora, mas a responsabilidade de ser essa voz parece pesar para o grupo. “Ser a voz no singular é muito complicado. Eu, que sou uma pessoa preta, que moro na periferia, não sou heterossexual: talvez seja uma voz que converse com essas vozes que me entrelaçam”, acredita Lenilson, explicando que essas vozes são mulheres negras e mães solteiras, perfil, aliás, de algumas autoras selecionadas no edital, mas que não puderam estar presentes ao encontro promovido pela Avá. Lenilson nunca parou para pensar em ser a ‘voz da periferia’. “Mas sempre senti a necessidade de me mostrar na e para a periferia”, ressalta.

“Somos vozes da periferia todos aqueles que vão pelo processo de caridade transformadora dos irmãos da periferia, aquele que quer mudar a realidade nociva das periferias, nocividade que o sistema impõe. Nós não somos violentos, eles (os do sistema) é que nos violentam ao nos desterrarmos”, deixa claro – e de maneira enfática – Luiz Felipe Vitelli ao falar sobre o  que sempre moveu sua trajetória artística. 

Agostinho não vê no cordel que escreve, estilo fortemente identificado com o Nordeste, nada que lembre um grito dos excluídos. “Lá, se chover,  é ótimo”, garante sobre o sertão de onde veio, fazendo lembrar o refrão de O Último Pau de Arara, sucesso na voz de Luiz Gonzaga. 

“Eu não tô inserida nesse contexto literário (de poesia feminina, poesia negra, etc)”, explica Dina Oliveira. Segundo a jornalista, a periferia que aparece em seus poemas – ela mora em Ceilândia, a mais estigmatizada das satélites –  é a “de pessoas que acordam cedo para trabalhar, de pessoas que estão cheias de problemas mas que param para te cumprimentar”. “Eu tenho um poema que fala que, na Feira de Ceilândia, você vira jovem, todo mundo é jovem, porque ‘o jovem vem aqui, mocinha vem aqui’. Essa é a minha visão: o melhor de tudo, tirar de tudo o melhor”, sintetiza, deixando claro que periferia é alegria também. 

O lançamento dos livros será no segundo semestre, com sarau aberto ao público que quiser participar, bem ao modo do que se espera de um grito de liberdade. 

André Giusti

Jornalista com 30 anos de experiência. Já foi repórter, apresentador e chefe de redação no Sistema Globo de Rádio e no Grupo Bandeirantes de Comunicação. É pós-graduado em Gestão da Comunicação das Organizações pelo UniCeub. É carioca e mora em Brasília há 20 anos. Também é escritor e mantém site e blog em www.andregiusti.com.br

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Um comentário em “Uma editora para os poetas da periferia

  1. Agostinho Jales disse:

    Parabéns pela reportagem, se puder corrigir meu nome e idade, agradeço: Agostinho Fernandes Jales Neto, 41 anos.
    E quem quiser ver um “cadin” de meu trabalho, é só seguir o insta “Um_cadin_de_poesia”

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