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Veja o que já enviamosSerá que podemos voltar ao país de Arlindo, Esquenta e Avenida Brasil?
A partida do sambista nos lembra que a cultura popular ainda tem a força de unir esse país fragmentado, polarizado e sofrido
A notícia da morte de Arlindo Cruz, após oito anos de luta contra sequelas de um AVC (Acidente Vascular Cerebral), nos atinge como um soco no estômago, mas não apenas pela perda de um dos maiores nomes do nosso samba. A dor que sentimos é também a de um luto por um tempo que se foi. Aquele tempo em que o Brasil, parece, conseguia enxergar em uma só tela. E para mim, poucas coisas representam tão bem essa época quanto o ‘’Esquenta!’’ e ‘’Avenida Brasil’’.
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“Alô, Regina!” – o grito de Arlindo não era apenas uma chamada para a apresentadora. Era um chamado para o Brasil. Para a nação que, aos domingos, se via refletida em uma TV que, pela primeira vez em muito tempo, parecia de fato um espelho. Um espelho que mostrava a força, a alegria e a complexidade de um país que, naquele momento, se sentia em ascensão. O que importava era a vida que pulsava ali, orgânica e real, seja pelas histórias, risadas e na música.

No mesmo período, o começo dos anos 2010,, a novela de João Emanuel Carneiro capturou a nação com a saga de Nina e Carminha. ‘’Avenida Brasil’’ foi muito mais do que uma história de vingança; foi um retrato de um Brasil, festejando a exacerbação da classe C, D e E. A sensação de que o jogo havia virado e que, finalmente, milhões de brasileiros tinham poder de compra, de status e de voz. As famílias podiam comprar carros, viajar de avião e sonhar com um futuro melhor.
Mais de 10 anos se passaram de lá pra cá, e o cenário mudou radicalmente. O sentimento de crescimento se transformou em uma luta diária pela sobrevivência. Aquele poder de compra que parecia infinito se esvaiu entre os becos e vielas, em meio à precarização do trabalho e à uberização. A dignidade que milhões conquistaram nos anos 2000 hoje se traduz em jornadas exaustivas, corridas por aplicativos e uma busca incessante por qualquer tipo de renda.
A esperança do futuro se dissolveu em apostas online, as famosas bets, que prometem uma fortuna que raramente se concretiza. E, no meio desse caos, a igreja se tornou um dos poucos refúgios, um lugar de consolo e de promessas de salvação em um mundo cada vez mais (in)certo….ou melhor: apocalíptico.
Com a polarização política, intensificada nos últimos anos, a representação de um “Brasil único” é quase impossível. O que é “orgânico” para um grupo, é “ideológico” para outro. A busca por um consenso se tornou uma batalha diária, e a televisão, que antes era o grande pilar da nossa cultura, hoje disputa atenção com um universo infinito de plataformas de streaming, vídeos curtos e podcasts.
O resultado é um distanciamento. Distanciamento de nós mesmos, do nosso vizinho e da nossa própria história. O ufanismo que nos unia, a capacidade de nos orgulharmos de nós mesmos em uma única tela, se perdeu. A grande questão que fica é: será ainda capaz de retomarmos essa unidade?
É impossível não pensar se ele estaria triste. Arlindo, o mestre do sorriso e da ginga, talvez não se entristecesse, mas se preocuparia. Ele, que compôs hinos que falam de amor e de comunidade, olharia para esse país fragmentado, polarizado e sofrido com a mesma seriedade que olhava para o banjo. E, com a sensibilidade de um cronista, certamente comporia um samba que não falaria de tristeza, mas de um desejo profundo de cura.
Sua partida nos lembra que a cultura popular ainda tem a força de nos unir. Ela nos força a olhar para trás e a nos perguntar: o que perdemos no caminho? A resposta, talvez, seja a de uma inocência coletiva, de um tempo em que a gente se enxergava em um programa de domingo e em uma novela das 9, sem filtros, sem julgamentos e com muito samba no pé. E o mais importante: a resposta é de que ainda podemos construir um novo jeito de nos enxergar. Para que um dia, quem sabe, a gente possa se encontrar de novo, na mesma roda, no mesmo samba, na mesma festa.
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