O racismo linguístico e os falares brasileiros

Pesquisas comprovam a influência das línguas africanas no léxico nacional, mas estudiosos criticam a falta de dados empíricos para mapear o fenômeno

Por Igor Soares | ODS 10 • Publicada em 18 de dezembro de 2024 - 09:25 • Atualizada em 18 de dezembro de 2024 - 11:19

Manifestantes protestam no Dia da Consciência Negra, em São Paulo. Foto Miguel Schincariol/AFP. Novembro/2024

O Censo Demográfico Brasileiro realizado em 2022 demonstrou, em números, uma realidade que há tempos já se percebe no cotidiano do país: mais da metade (55,5%) da população brasileira se identifica como preta ou parda. Esse cenário é uma excelente oportunidade para pensar sobre o racismo estrutural, o que está longe de ser um tema inédito, mas é sempre muito importante, porque acaba sendo negligenciado.

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Vale lembrar que o filósofo, historiador e  professor de História e Ciência Política na Universidade de Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul, o  camaronês Achille Mbembe, tornou-se um dos mais proeminentes pensadores trazendo à tona a ampliação do debate sobre a construção do sistema escravista e colonial. Mbeme reflete sobre o racismo linguístico, que “está presente na estrutura das coisas”. E a língua é uma parte dessa estrutura.

Aqui no Brasil, pesquisas comprovam a influência das línguas africanas no léxico brasileiro. Mas estudiosos do tema apontam que faltam dados empíricos que poderiam auxiliar o mapeamento do fenômeno em outros níveis da gramática.

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No livro “Como falam os brasileiros”, a autora Yonne de Freitas Leite (falecida em 2014), respeitada como pensadora fundamental sobre o campo de línguas indígenas do Brasil, explica as variedades da língua portuguesa. Ela pontua como esses processos ocorrem, do ponto de vista sociolinguístico:

“O uso de uma língua envolve aspectos ideológicos e o preconceito que existe em relação a determinadas variedades é equivalente a outros, como social, religioso e o racial. O domínio de um português padrão é privilégio reservado a poucos membros de uma elite econômico-social que, assim, assegura seu poder e sua primazia político-cultural”, defende a autora.

É exatamente esse “domínio do português padrão” que exclui a diversidade da língua, já que socialmente o “falar errado” passa a receber um julgamento, também padrão. A autora diz, no entanto, que é preciso considerar os “falares brasileiros”. “É de se esperar (…) que na extensão do território brasileiro haja uma unidade linguística, a língua portuguesa, mas também diversidade, os falares brasileiros.”

A professora de Língua Portuguesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Danielle Kely Gomes, lembra que é importante fazer um resgate histórico da construção da língua portuguesa, e de como a raça atravessa o idioma, a partir do processo de escravização e o contato de línguas com o colonizador, que podem ter colaborado para marcações fonológicas do português do Brasil.

Danielle Gomes afrma, ainda, que é preciso “localizar essa discussão sobre racismo linguístico”:

“Essa discussão também é sobre a maneira como os contatos linguísticos intensos que ocorreram no período colonial-imperial acabam por influenciar, por moldar a gramática daquilo que a gente chama de português brasileiro.”

Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e História (IBGE) disponíveis no site da instituição, mostram que, no continente americano, o Brasil foi o país que importou mais escravos africanos. Entre os séculos XVI e meados do XIX, vieram cerca de quatro milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo comércio negreiro. Não é difícil de supor que, nesse processo, aconteceu o contato dos escravizados com a língua portuguesa.

“É impossível que não tenha havido alguma influência dessas línguas africanas faladas por esses escravizados que chegaram aqui ao país desde o final do século XVI até a segunda metade do século XIX. Mas temos uma grande dificuldade para  afirmar e provar que esse atravessamento existiu:  a ausência de fontes”, disse a professora Danielle Gomes.

A ausência de fontes para auxiliar a pesquisa é uma das principais críticas que os estudiosos fazem com relação ao assunto.

“Sabemos muito bem que essas populações de pessoas escravizadas eram falantes das mais variadas línguas, assim como eram subjugadas às mais terríveis situações de sobrevivência. Eram pessoas que tinham de sobreviver, sobretudo. Por isso não se consegue resgatar registros escritos das manifestações linguísticas desse sujeitos. Existe o racismo linguístico, sim, é notório, mas precisamos de dados empíricos para atestar”, pontua a professora.

Teoria do Povo Banto

A palavra “banto”, também grafada como “bantu”, significa seres humanos, pessoas, homens, povo. Trata-se do grupo etnolinguístico de povos que habitam a África subsaariana e compartilham uma língua materna da família banta. Os bantos são, possivelmente, originários dos Camarões e do sudeste da Nigéria. E têm, em sua história, um triste recorde: foram os povos mais escravizados e traficados para o continente americano.

Há uma teoria popular, bastante preconceituosa, emblema de racismo estrutural, e  que não é considerada verdadeira pelos especialistas, que atribui à estrutura fonética de línguas africanas, como a do povo Banto, onde não há o ‘L’ , a troca que algumas pessoas fazem pelo “R” (pobrema em vez de problema, por exemplo). Segundo essa teoria, as pessoas pretas e pobres fazem essa confusão linguística por causa de uma herança das línguas africanas durante o processo de escravização. A professora Danielle discorda da teoria e salienta que as trocas não são exclusivas,  nem mesmo originadas por pessoas pretas.

“Encontramos essa alternância em outros momentos do passado, no português, principalmente na passagem do latim. A gente tem uma influência de contato entre línguas.” As pessoas que pronunciam as palavras fazendo essas trocas são mais alvo de preconceito por pertencerem a grupos econômicos mais basilares da pirâmide e com baixa escolarização e, em sua maioria, pretas; já para as trocas do ‘I’ pelo LH – também presente na fala de pessoas pobres, com baixa escolarização e, majoritariamente, negras –, por exemplo, chama-se fenômeno palatal, como em ‘trabaio’, no lugar de ‘trabalho.

O que houve, na realidade, lembra a professora, foi um grande prejuízo para as pessoas que falavam a língua africana nos tempos de escravidão, porque elas foram sendo silenciadas num ambiente de muita violência, tanto física quanto simbólica.

“Essas populações, progressivamente, foram sendo silenciadas nas suas línguas de origem para que o português fosse ganhando cada vez mais espaço. Quando eles eram traficados e transportados da Europa para cá, havia uma política linguística de mistura de falantes de línguas diferentes dentro do mesmo espaço, para que eles não pudessem se entender. Nesse processo de colocar falantes de línguas às vezes totalmente distintas confinados dentro de um mesmo espaço, a única língua em comum que eles poderiam encontrar para se comunicar era o português”, observa.

Essa violência resultou no fato de que, no Brasil, 90% da população falam a língua portuguesa:

“Não é uma língua única, temos outras línguas faladas pelo Brasil. Mas é a língua majoritária. Essa proporção não veio por acaso; é fruto de um processo de violência física e simbólica com relação a essas populações escravizadas e às populações nativas que aqui se encontravam”, reflete a professora e sociolinguista.

Nesse sentido, os erros de concordância, que também entram na categoria dos estigmas, são um fenômeno linguístico, lembra Danielle Gomes.

“É possível mapear o fenômeno variável da concordância, seja verbal ou nominal – ‘eles come’,  ‘os menino’.  O professor Dante Lucchesi coordena um projeto na Universidade Federal da Bahia, mostrando que a variação nessa marcação da concordância, seja verbal ou nominal, é um traço típico do português brasileiro. O trabalho dele é mostrar que essa variação na marcação de concordância verbal é estigmatizada no Brasil porque foi um fenômeno linguístico que surgiu no processo de aquisição incompleta por esses indivíduos que falavam línguas africanas. E esse processo foi sendo transmitido às gerações seguintes ao contato inicial”, disse Danielle.

Trata-se, ao fim e ao cabo, de uma faceta do racismo linguístico que atravessa a sociedade brasileira. Danielle lembra que é preciso ter um olhar voltado para esses indivíduos que sofrem estigmatização, não só na forma de falar.

“São essas pessoas que são herdeiras desse processo de estigmatização, de exploração, de subjugamento. A estigmatização é um subproduto de um processo de estratificação na base da nossa pirâmide socioeconômica.”

Como se sabe, a estigmatização normalmente tem como alvo as pessoas do pé da pirâmide social, que têm um acesso variável à escolarização.

“É claro que, principalmente nesses primeiros vinte anos do século XXI, não se pode deixar de reconhecer que houve uma ampliação do acesso, por exemplo, ao ensino superior. Seja por meio do aumento de vagas nas instituições públicas ou nas instituições privadas. Mas estamos garantindo o acesso a todos os extratos da sociedade brasileira a esse mundo de letramento? A estigmatização é muito mais severa na população afro-brasileira, porque é o grupo que já é alvo de outros preconceitos”, concluiu Danielle.

Sobre normas e padrões

A desigualdade social também se manifesta na construção de normas linguísticas. Diz-se que normal culta foi baseada em um grupo de indivíduos com marcadores sociais e raciais. Já a norma padrão, segundo a professora associada do Departamento de Linguística e Filologia da UFRJ, Adriana Leitão Martins, “é uma abstração”.

“Entendemos por norma culta os usos linguísticos da população letrada e urbana. E, por ser letrada e urbana, é um grupo socioeconômico, que historicamente esteve no controle das coisas. As variedades linguísticas desse grupo, que é urbano,  letrado e é branco, é o que se considera norma culta”, indica a professora Danielle Gomes.

Já a norma padrão, segundo a professora associada do Departamento de Linguística e Filologia da UFRJ, Adriana Leitão Martins, “é uma abstração”. Para a professora Martins, a norma padrão é o que está registrada nas gramáticas, e a norma culta não é homogênea e pode ser diferente em diversos cantos do país. Na contramão das imposições elitistas sobre a língua, há a norma coloquial, como é conhecida, ou apenas normal, em referência ao ‘comportamento linguístico’, disse ela.

Quanto à diferença entre o português europeu e o português brasileiro, as especialistas são unânimes em afirmar que sã cada língua tem suas respectivas variações:

“É natural que as línguas tenham fenômeno de variação,  e todas as línguas passam por mudanças. Há uma ideia de que o português do Brasil mudou e,  por isso, é diferente, mas não é por aí. A língua que chegou aqui no século XVI, trazida pelos portugueses é reflexo do que havia lá. Ou seja, há diversas estruturas que se mantiveram no Brasil, enquanto as que ficaram em Portugal seguiram em outra direção, no curso natural tanto aqui quanto lá”, disse a professora Martins.

Fato é que o contato entre as línguas do colonizador e dos povos escravizados e até mesmo indígenas produziu uma diversidade linguística.

 “É impossível imaginar, por exemplo, que a língua portuguesa no Brasil não vai ter marcas das línguas indígenas que conviviam com os colonizadores no momento em que ela foi trazida para cá. As mudanças são resultantes tanto de pressões internas quanto de pressões externas. É assim que a linguística entende. E existem fatores intralinguísticos e fatores extralinguísticos que atuam em conjunto para determinadas mudanças”, disse ela.

Para que uma língua exista, acredita a professora Martins, devem coexistir siglas e signos. As siglas são relações entre significado e significante, ou seja, tem uma forma que está associada a um significado. Já os signos são itens que facilitam a comunicação e que precisam, de alguma maneira, de uma combinação prévia.

“A construção de uma língua natural é espontaneamente adquirida pela criança, sem qualquer esforço, sem instrução”, finalizou a professora.

Igor Soares

Igor Soares é jornalista formado pela UFRJ. Atua como repórter do Fala Roça e como freelancer do #Colabora e do Rio On Watch. Tem experiência em cobertura de cidades, direitos humanos, segurança pública, economia e política, com passagem pelas redações do Estadão, do Portal iG, além de já ter produzido reportagens para a Folha de S. Paulo.

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