O Cristo da Mangueira e a Necropolítica

A alegoria “O Calvário”, da Mangueira, com um Cristo jovem, crucificado e crivado de balas (Foto: Gilson Borba/NurPhoto)

Por Alexandre dos Santos | ODS 10 • Publicada em 28 de fevereiro de 2020 - 18:29 • Atualizada em 11 de fevereiro de 2021 - 22:36

A alegoria “O Calvário”, da Mangueira, com um Cristo jovem, crucificado e crivado de balas (Foto: Gilson Borba/NurPhoto)

Não faltaram momentos marcantes nas doze escolas de samba, com críticas que foram da monetização da religião aos falsos pregadores, das fake News aos políticos populistas exploradores da fé alheia, porém outras três imagens também se toraram icônicas no desfile da Mangueira. A do Cristo branco (mais próximo da imagem eurocêntrica que temos de Jesus) que, enquanto evolui na comissão de frente da escola, toma uma dura – e uma surra – da polícia; a do “Cristo mulher negra”, interpretado pela rainha de bateria Evelyn Bastos, coberta por chagas e marcas da crucificação; e a do Cristo mendigo, vivido pelo pastor evangélico Henrique Vieira, uma referência direta à alegoria proibida no desfile da Beija-Flor, de 1989, “Ratos e Urubus, Larguem minha fantasia!”

Mas “O Calvário” foi, sem dúvida, o ápice de um enredo que, além de corajoso, foi o mais carinhosamente iconoclasta deste ano. Coragem ainda maior foi a de jogar na cara do público presente – ou que assistiu ao desfile pela televisão – uma realidade que muitos preferem fingir que não existe, mas que está diariamente nos noticiários.

Alguns números foram divulgados há pelo menos oito meses pelo Ipea, no Atlas da Violência. Cerca de 75% das vítimas de homicídio no país são de pessoas negras, metade delas jovens entre 15 e 19 anos. Desses jovens, 94,4% eram do sexo masculino. De acordo com o IBGE, no relatório “Desigualdades Sociais por Cor ou Traça no Brasil”, divulgado em novembro de 2019, uma pessoa negra tem quase três vezes chances de morrer do que uma pessoa branca ou considerada branca.

É aí que a representação do Cristo crucificado jovem, negro e crivado de balas se encontra com a teoria da necropolítica do cientista político, filósofo e historiador camaronês Achille Mbembe. A necropolítica, em sua essência, é a capacidade que o Estado ou a autoridade política possui para decidir quem dos seus cidadãos vive e quem morre dentro das suas próprias fronteiras. É a prerrogativa que o Estado tem de criar (ou deixar criar com a sua omissão) “máquinas de guerra”, cujo objetivo é reprimir, exercer a força, explorar, humilhar e até mesmo matar quem, de certa forma, não representa o “ideal social”.

A “máquina de guerra” é uma invenção posta em prática no continente africano de meados da década de 1970. Surge às margens da fragilidade e da inoperância de alguns Estados, incapazes de controlar todo o seu território e todos os seus diversos povos, ou seja, incapaz de exercer a sua “biopolítica”, termo cunhado pelo cientista social e filósofo francês Michel Foucault, cujo “antônimo” seria justamente o conceito de necropolítica. Nos casos africanos, a ausência do Estado, do exercício da soberania e, por consequência, da biopolítica, abriu portas para o surgimento de milícias armadas, que ocuparam o vácuo deixado pela falta ou a fraqueza da representação oficial e exploraram as riquezas minerais bem como a população local, aliciando os jovens, cobrando impostos no lugar do Estado e exercendo os papeis de juiz e executor locais. A ameaça econômica, política e social representada por essas milícias foi a catalisadora para a formação das “máquinas de guerra” do Estado, cuja responsabilidade era justamente combater esses grupos armados que ocuparam o lugar da autoridade oficial.

Ala da Mangueira homenageia a vereadora Marielle Franca, assassinada no Rio em março de 2018. (Foto :Thiago Ribeiro/AGIF)
Ala da Mangueira homenageia a vereadora Marielle Franca, assassinada no Rio em março de 2018. (Foto :Thiago Ribeiro/AGIF)

Pois, no Brasil de 2020, o Cristo negro baleado e crucificado, o Cristo branco vítima da violência policial e o Cristo mulher negra, alvo prioritário dos assédios morais e sexuais são todos duplamente vítimas da ausência e da presença do Estado.

A ausência do Estado é o fruto direto de uma política pública de higienização, que empurrou para as periferias e favelas a população negra e pobre que migrou para as cidades a partir da Abolição, em maio de 1888. O fim da escravidão não foi o início da integração social, mas o início do processo de isolamento e exclusão dos ex-escravizados. Como lembra Grada Kilomba, essa população sempre foi vista como sub-humanos e sem chances plenas de se tornarem civilizados, já que há séculos as Ciências se associaram ao objetivo colonialista e escravista, dando ao patriarcado branco as argumentações científicas e até filosóficas (Kant e Hegel) para justificar a inferioridade e a desumanização dos corpos negros. É na ausência do Estado, sem aparelhos adequados de Saúde, Educação, Transporte, Trabalho e Cultura, por exemplo, que surgem as fações criminosas ligadas ao tráfico e as milícias modernas. Cada uma, da sua forma, explora as riquezas e as populações onde se estabelecem.

A presença do Estado, através da violência, é o reflexo da percepção das periferias e das favelas com a “exceção à ordem e foco da desordem e da ameaça sociais”, como defende Mbembe. São os ecos da “certeza” de que os corpos negros e pobres são “de outra natureza”, que alimentam o racismo estrutural que não reconhecemos e que sublinham as ações da “máquina de guerra” do Estado. O resultado são os números divulgados pelo Ipea e pelo IBGE. O resultado está diariamente retratado nas manchetes dos jornais e telejornais.

É essa “máquina de guerra” que, na necropolítica de Achille Mbembe, opera com uma lógica própria à base de capturas, depredações, espancamentos, invasões domiciliares, desrespeito a idosos, humilhações públicas em frente à família, assédio moral e todas as formas de desrespeito à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Tem salvo-conduto para agir de tal forma porque representa o braço oficial da violência estatal sobre aqueles que “vivem na dor”, desde 1539 (ano em que chegaram os primeiros escravizados ao Brasil), vivem sob o signo da violência. Primeiro com a desumanização e a coisificação de seus corpos, depois com a imposição dos toques de recolher – que aprisionam as pessoas em suas próprias casas – com a violência exercida sem critério, com as pessoas baleadas à esmo e com políticas que visam o combate e o conflito ao invés da proteção. No fundo tudo se resume à negação da cidadania.

A crucificação do jovem Cristo negro e crivado de balas da Mangueira não tem o mesmo caráter expiatório das crucificações romanas. Observado, hoje, pela perspectiva dos ecos da escravidão e do colonialismo, essa morte é o sacrifício máximo de quem tem a violência contra seu corpo banalizada pelo exercício da necropolítica e do necropoder; de quem grita por respeito, igualdade e liberdade; de quem se sacrifica contra o racismo para provar que possui o que sempre foi seu de direito: a humanidade.

Alexandre dos Santos

Jornalista formado pela Uerj em 1996 e mestre em Relações Internacionais pela PUC-Rio. Trabalhou como repórter em jornal impresso e em TV. É professor de História da África no curso de Relações Internacionais da PUC-Rio. Carioca de muitas ascendências: camaronesa, angolana, portuguesa e espanhola. E-mail: alexandredossantos@me.com. Instagram: @alsantos72

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