‘O Carnaval só acontece com suor, sacrifício e superação’, diz Marcelo Adnet

Marcelo Adnet cantando na São Clemente: “Se tacar ovo, mato no peito e continuo desfilando. O fato de haver indignação com o samba é maravilhoso” (Foto de Rafael Arantes /Divulgação)

Um dos compositores do samba da São Clemente, humorista fala dos problemas da festa, da sabotagem da Prefeitura do Rio e reivindica profissionalismo das escolas

Por Aydano André Motta | ODS 10ODS 17 • Publicada em 18 de fevereiro de 2020 - 18:16 • Atualizada em 29 de junho de 2021 - 16:02

Marcelo Adnet cantando na São Clemente: “Se tacar ovo, mato no peito e continuo desfilando. O fato de haver indignação com o samba é maravilhoso” (Foto de Rafael Arantes /Divulgação)

Um dos mais celebrados humoristas brasileiros, Marcelo Adnet virou mais um na tribo do Carnaval. Assina o samba da São Clemente, do enredo “O conto do vigário”, com sete amigos, “onde todo mundo meteu a mão na massa”. Ele venceu a disputa na escola de Botafogo – “a minha comunidade, sou do Humaitá -, a única da Zona Sul do Rio no Grupo Especial, num esquema artesanal, longe da indústria que dominou o processo de escolha na elite da folia. E mergulhou de cabeça no processo de construção do desfile, indo aos ensaios e frequentando o barracão na Cidade do Samba. Adnet falou ao #Colabora sobre os problemas do Carnaval, a era dos enredos críticos e políticos, as ameaças que sofreu por causa do seu samba e a sabotagem da prefeitura do bispo Crivella. E não evitou responder sobre eventuais contradições com as críticas que fez à estrutura de poder da festa no “Tá no ar”.LEIA MAIS: A tradição das viradas de mesa

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#Colabora – Por que você decidiu compor um samba-enredo?

Tenho paixão de infância por samba-enredo. Fui uma criança atenta, ficava vendo desfile em casa até de manhã. E lembro em 1990 da entrevista de Helinho 107, um dos compositores de “E o samba sambou”. Aquilo me marcou muito, uma experiência quase religiosa, ainda criança, vi o que era um compositor. Minha família é toda de músicos, vivíamos num apartamento apertadinho no Humaitá, dormia numa beliche com a minha irmã. Minha mãe, Regina, sempre gostou de ver. Eu imitava os puxadores, fazia aquela voz grossa. Quando entrei na faculdade de jornalismo, fiz com o André Carvalho um samba para o trote. A galera cantou, foi maravilhoso, pensamos em compor, mas nunca levamos adiante. Finalmente, quando surgiu o enredo de 2020, “O conto do vigário”, decidimos participar.

#Colabora – Vocês usaram o esquema tradicional das disputas de samba, com torcida paga etc?

Não contratamos torcida. É deselegante, quase um estelionato. Dinheiro que a gente gastou foi com bola, bandeira. Aliás, teve uma luta minha: não tivemos papel picado, nem fogos de artifício. Não faz sentido nos dias de hoje. Aí, minha mãe fez adereços em casa. Foi um esforço conjunto, que amamos fazer artesanalmente. Criou uma ligação afetiva com o samba.

#Colabora – Ser famoso ajudou?

Isso teria entrado em campo se não fosse um bom samba. Mas era o melhor mesmo, vai ajudar quesitos como enredo e harmonia. Depois que vencemos, ser famoso fez diferença na divulgação, mas vai ser tudo resolvido na caneta dos jurados. Estou muito feliz e apostando no carinho com a escola. Fui às quadras de Estácio, Portela, Salgueiro, estive em 80% dos ensaios, dei todas as entrevistas, estou ajudando a distribuir fantasia, me dedicando. Isso que é legal.

#Colabora – Você, então, é um componente normal?

O Carnaval só acontece quando a gente se entrega. Se não tivesse suor, sacrifício, obstáculos, superação não aconteceria. Vou fazer tudo pela escola. Encarei como missão e me joguei na parada de cabeça. Está me fazendo bem. Estou louco pra compor de novo! Vou concorrer em 2021.

Hoje, com a falta de recursos, é natural substituir luxo por criatividade e força no que se canta. Quando o samba não me diz nada, me sinto menos motivado a cantar

#Colabora – Quais são seus sambas-enredo favoritos?

Os dois que mais me marcaram: “E o samba sambou” e “Sonhar não custa nada” (Mocidade, 1992). O samba-enredo é um gênero épico. E gosto de obras marginais, da série A, da Intendente. Lembro da Villa Rica falando sobre o jeans, da escola que desfilou sem bateria (Canários das Laranjeiras, 1995). São histórias sensacionais.

Várias escolas têm escolhido temas com motivações políticas, críticas sociais etc. Você acha que o papel do Carnaval é esse?

Tem espaço para tudo e a diversidade é o grande barato. A São Clemente se descolou das outras com desfiles engraçados, fáceis de entender. Quanto mais temas diferentes, melhor. Hoje, com a falta de recursos, é natural substituir luxo por criatividade e força no que se canta. Quando o samba não me diz nada, me sinto menos motivado a cantar. Este ano, os sambas da Mangueira, da Grande Rio, da Tijuca com a sacada da favela, são muito mais interessante do que um sobre pedra (Estácio), que dá um enredo duro, inanimado (risos). Não precisa ser obrigatoriamente crítica, mas tem de falar com a nossa realidade. Lembra da Ilha com o “Hoje vou de bar em bar” (1991)? Fala da nossa realidade sem tocar política.

Você sofreu ameaças por causa do samba e do enredo?

Ataque virtual sempre tem, dou bom dia e aparecem 40 pessoas me xingando. O Marco Feliciano fez um tuíte para me acusar de fazer um samba contra o Bolsonaro, mas o fato de ele ter se doído pelo samba da São Clemente é maravilhoso. A letra é para as carapuças servirem, e ele vestiu certinho. Falou em jogar ovo no desfile da São Clemente. Tenho experiência em tomar porrada e ser perseguido. Se tacar ovo, mato no peito e continuo desfilando. A indústria do terror virtual é algo do nosso tempo. Estou super acostumado. O fato de haver indignação com o samba é maravilhoso.

Marco Feliciano fez um tuíte para me acusar de fazer um samba contra o Bolsonaro, Mas o fato de ele ter se doído pelo samba da São Clemente é maravilhoso

#Colabora – O prefeito do Rio mantém atitude de hostilidade e desprezo pelo carnaval. Atrapalha?

O prefeito prejudica o planejamento, porque promete e não vem. Uma sabotagem, algo gravíssimo. É muito simbólico estar fazendo a festa odiada pelo líder maior da cidade. As pequenas coisas vão minando o espetáculo e eu fico um pouco receoso. O Carnaval está largado, não tem alvará nem verba. As prefeitura lava as mãos porque se acontecer algum acidente, será ótimo para os planos do prefeito. Ele devia respeitar a festa.

#Colabora – No “Tá no ar”, você compôs um samba (acima) com pesadas críticas ao universo das escolas. Não é uma contradição agora participar tão intensamente da festa?

As parcerias concorrentes usaram esse vídeo nas redes sociais para tentar derrubar nosso samba. A crítica foi à forma de organização do evento. O Carnaval é extremamente plural, a festa de todo mundo, do humilde ao poderoso. A estrela é a criancinha, o ritmista, o puxador. O príncipe Charles entra e não é ninguém. O samba tem poder popular incrível, põe o povo como protagonista, com temas de matriz africana lembrando nossas origens. Mas quando chega na organização, mais para cima, a caneta é mais pesada com escolas como a São Clemente e a organização deficiente atrapalha o Carnaval. Mais transparência e profissionalismo ajudariam demais. As coisas são no silêncio, nas coxas, com pessoas que mandam nos bastidores, tudo isso é questionável. A crítica ali foi válida e exagerada, por ser humor. Já que a gente espera que o poder público apoie a festa, que é importantíssima para a cidade economicamente, se a gente cobra das autoridades algo mais profissional, o Carnaval tem que ser ser mais profissional na sua estrutura, para ter condições de reclamar. Falta isso mesmo. O patrono e a verba escondida fazem parte da história. Mas ajudaria se mudasse. Acredito que é um processo natural, vai mudar.

#Colabora – Mas estar no Carnaval agora é uma contradição sua?

A crítica é para ajudar. Não temos que baixar a cabeça para os problemas. Ninguém fala sobre organização? Sou um cara crítico, fiz um samba crítico, minha vocação é essa, foi uma obra bem poderosa. Como será poderoso ver Elza Soares passar na Mocidade, o Jesus da Mangueira, a Portela, a Grande Rio.

Aydano André Motta

Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!

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