O Brasil que deseja o ‘desenvolvimento’ é o mesmo que nos incendeia

Entardecer na Aldeia Craveiro, território Pataxó na Bahia: ameaças constantes. Foto de Tamikuã Pataxó

Querem tornar cinzas tudo o que nos fortalece, numa violência contra os nossos povos que só faz aumentar; vivemos um momento de resistência pela vida

Por Alice Pataxó | ODS 10ODS 15 • Publicada em 24 de novembro de 2020 - 08:20 • Atualizada em 27 de novembro de 2020 - 21:58

Entardecer na Aldeia Craveiro, território Pataxó na Bahia: ameaças constantes. Foto de Tamikuã Pataxó

Lutamos para existir, para tornar realidade o que nos é garantido por direito. A violência contra os nossos povos, no entanto, só aumenta. O ódio é disseminado, vira discurso na ONU, as queimadas dos biomas e a morte dos donos da floresta são motivo de piada. A morte dos guardiões é ocultada, esquecida. O nosso grito, silenciado.

Vivemos no Brasil tempos de ódio, de destruição, de arminhas na mão. A incitação clara à violência contra diversos grupos sociais só aumenta os ataques e a perda do medo da Justiça. É um país que, ignorando as normas de segurança pública de saúde, ultrapassou 160 mil mortos por Covid-19. Para os povos indígenas, as perdas coletivas já eram um projeto antes da pandemia, que atingiu até agora 158 povos e matou 862 parentes, segundo dados da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

Não vivemos só um momento único na existência humana, mas também um momento de resistência pela vida. Resistência essa que pode ser novidade para muitos, mas nosso povo a conhece muito antes das ameaça mais recentes. A própria invasão desse país usou de outras doenças para assassinar as nações originárias. O projeto de genocídio é antigo e o alvo são os nossos povos. Queimaram os nossos corpos e as nossas línguas, e agora ainda tentam incendiar nossa força, nossa cultura e nosso sustento: a nossa floresta,  mãe da existência.

Ao mesmo tempo em que os governantes assinam compromissos ambientais internacionais, eles derrubam as leis da sustentabilidade. As árvores tombam junto com a legislação de proteção ambiental. Vivemos em um Brasil que não se preocupa com o futuro, se não for para trazer dólares pelos milhões de hectares de plantação de soja e de eucalipto. Todas criadas a partir de puro veneno.

Horta na aldeia: respeito à natureza. Foto de Tamikuã Pataxó
Horta na aldeia: respeito à natureza. Foto de Tamikuã Pataxó

Tornam cinzas tudo o que nos fortalece. Em 2018, o incêndio do Museu Nacional no Rio de Janeiro destruiu parte valiosa da história nacional e da história natural da América Latina, quando o fogo destruiu acervo com mais de 20 milhões de itens. No ano seguinte, houve o incêndio criminoso no Parque Nacional do Monte Pascoal, instituído pela comunidade Pataxó que mora na região, os ataques às aldeias e o incêndio do Centro Cultural da Aldeia Barra Velha (Aldeia mãe pataxó na Bahia). Nos últimos meses, o projeto de extermínio de um dos maiores patrimônios naturais brasileiros, o Pantanal, consumiu com chamas 27% do bioma, uma área de 4,1 milhões de hectares. Os animais sobreviventes são resgatados com fraturas expostas e queimaduras na pele.

O Brasil em que vivemos ignora o choro da nossa biodiversidade. São inúmeras as investidas de devastação da Amazônia brasileira, e de nossas tentativas de evitar tais conflitos e danos ambientais. O Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, publicado pelo Cimi (Conselho Indigenista Missionário) deste mesmo ano, registra aumento da violência contra povos indígenas, ataques às comunidades, incitação à violência, assassinatos e ameaças. Foram 277 casos de violência contra pessoas indígenas em 2019. Bem mais do que o dobro dos 110 aferidos em 2018.

Há uma música da resistência indígena que diz: “Seu progresso imperialista muitas nações dizimaram/ Garimpeiro e fazendeiros correndo atrás do dinheiro querem matar o que ainda resta”. Lutamos contra os que correm pelo dinheiro, estamos aqui para garantir direitos, somos nós a resistência, a herança dos ancestrais. Nossos territórios são cercados pela tirania, invadidos pela ganância de homens que brigam na Justiça para matar os rios que nos alimentam, os rios que correram com as gerações.

Aqui a vida não vale muito, e se desvaloriza como o real. É irônico como a nossa fauna é homenageada em células de papel, mas os pedidos por socorro reais são ignorados. Enquanto imprimem notas de onças-pintadas, as verdadeiras estão fugindo de incêndios em seu lar, o lobo-guará se esconde, o mico-leão se torna propaganda mentirosa ao desaparecer do seu habitat. Estão consumindo a força da natureza e, para isso, destruindo quem a mantém. Em breve, nossa vida não vai valer nada.

O Brasil é incendiário, é genocida. Querem destruir nossa história e nos apagar no presente, declaram guerras contra nossos povos desde a invasão de 1500, e agora tentam instituir um genocídio legalizado. Matam-nos quando nos tiram dos nossos territórios e quando nos afastam do motivo de nossa existência: proteger a floresta. As chamas consomem a nossa existência, o nosso futuro, o nosso passado.

Lago na aldeia Pataxó: proximidade com o ponto onde os portugueses iniciaram a invasão do Brasil. Foto de Tamikuã Pataxó
Lago na aldeia Pataxó. Foto de Tamikuã Pataxó

Alice Pataxó

Comunicadora e ativista indígena, da etnia Pataxó, fundadora do canal Nuhé, estudante de Bacharelato Interdisciplinar em Humanidades pela Universidade Federal do Sul da Bahia.

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