Lei Brasileira de Inclusão completa 10 anos entre avanços, desafios e ameaças

Norma é referência para proteção aos direitos das pessoas com deficiência, porém, falta de fiscalização cria barreira para sua efetividade

Por Micael Olegário | ODS 10
Publicada em 16 de julho de 2025 - 08:45  -  Atualizada em 16 de julho de 2025 - 08:48
Tempo de leitura: 7 min

Foto final de um dos encontros da 5ª Conferência Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Foto: Felipe Beltrame/Flacso – 17/07/2024) Descrição alternativa: Foto colorida com diversas pessoas com deficiência reunidas na frente do palco do evento, em Brasília (DF)

A Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também chamada de Estatuto da Pessoa com Deficiência, é uma referência na defesa dos direitos humanos dessa parcela da população historicamente marginalizada. Em julho de 2025, essa legislação completa 10 anos de vigência, mas segue distante de ser efetiva na sociedade brasileira. Avanços foram conquistados pelo movimento de pessoas com deficiência e por diversas entidades, porém muitas outras barreiras permanecem: nas cidades, na internet, no mercado de trabalho, nos serviços de saúde e no cotidiano.

Leia mais: 10 anos de LBI e a luta das pessoas com deficiência por respeito e acessibilidade 

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), existem 14,4 milhões de pessoas com deficiência, com 2 anos de idade ou mais no Brasil. Baseada na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e em um amplo diálogo entre a sociedade, a Lei 13.146/2015 aborda diferentes eixos, como saúde, educação, trabalho, comunicação, entre outras. Além disso, a norma está baseada em quatro conceitos principais: acessibilidade, desenho universal, tecnologia assistiva e barreiras. “A LBI é uma lei completa e um exemplo no mundo. Não existe nenhuma igual e ela foi melhorando esses anos todos, mas o que falta para efetivar é a fiscalização”, pontua o jornalista Rafael Ferraz Carpi, tetraplégico desde 2011.

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De um modo geral, as pessoas ouvidas pela reportagem apontam a mesma coisa: no papel, a LBI é ótima, mas pouco efetiva na prática. “Tanto empresas, quanto instituições, costumam não cumprir o que tem na lei e quando alguém entra na justiça requerendo um direito, leva muito tempo para que a justiça repare esse direito”, aponta Marco Bonito, professor da Universidade Federal do Pampa (Unipampa) e pesquisador da área de acessibilidade na comunicação.

São muitos os direitos que nós temos hoje edificados na Lei Brasileira de Inclusão e nas outras leis, para se colocar em dúvida, em cheque, e novamente partir para uma rediscussão

Maria Aparecida Gugel
Vice-procuradora do Trabalho e membra da Ampid

Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos apontam que pessoas com deficiência sofreram 359.655 violações de direitos humanos até o início de julho deste ano. Porém, apenas 59.934 denúncias foram registradas nesse mesmo período. Em todo o ano de 2024, foram 570.489 violações e 95.389 denúncias. Os dados incluem desde maus tratos, agressões e privação de liberdade até violência institucional.

Para além da fiscalização, a efetividade da LBI depende de ações concretas de gestores e formuladores de políticas públicas. “Fazer com que os direitos que estão na lei é de responsabilidade dos governos federal, estadual e municipal. Por exemplo, se você não tem políticas públicas eficientes para tratar da saúde, educação, transporte e trabalho, não vai colocar em prática aquele direito que está na lei”, destaca Maria Aparecida Gugel, vice-procuradora-geral do Trabalho e integrante da Ampid (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas Idosas e Pessoas com Deficiência).

Avanços e marcos

A Lei Brasileira de Inclusão, apesar das barreiras para sua efetivação, permitiu diferentes avanços, principalmente como instrumento jurídico para pessoas com deficiência se basearem na busca por seus direitos. “Por ter dez anos de lei, foi uma crescente até as pessoas conhecerem essa lei na sociedade, o judiciário entender que existia essa lei e que ela precisava ser aplicada na prática”, descreve Gabriel Henrique, advogado cego que atua diretamente com casos que envolvem os direitos das pessoas com deficiência.

Leia mais: 10 anos da LBI: as desigualdades e as deficiências ocultas

Gabriel também enfatiza outros marcos importantes da LBI, como a própria definição de pessoa com deficiência, no lugar de termos, como deficientes ou portadores de deficiência, o que considera sempre que antes de uma condição, trata-se de uma pessoa. “Traz também o conceito de acessibilidade que é uma forma de alcance com igualdade. Outro trecho da lei que gosto muito é o que considera a discriminação, como a ação e a omissão. O fazer é um ato discriminatório e o deixar de cumprir também é”, explica o advogado.

Sobre os desafios para aplicação da LBI, Rafael Carpi descreve a dificuldade para acessar o direito à reabilitação na cidade onde mora, em Itu, interior de São Paulo. “O próprio serviço social não sabia que eu tinha direito a uma reabilitação e que pelo SUS, eu tinha direito de retirar uma cadeira de rodas motorizada sem custo nenhum. Qualquer pessoa com deficiência que não consegue tocar uma cadeira manual, tem direito a uma cadeira motorizada. Mas quem disse que as pessoas conseguem? Eu tive que ir atrás da lei e contratar um advogado”, relata o jornalista. O processo para conseguir a cadeira demorou cinco anos.

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A norma também amplia a noção de deficiência para além de uma abordagem exclusivamente médica, em uma definição biopsicossocial, o que inclui aspectos culturais, familiares e do contexto socioeconômico. Ao longo dos anos, a Lei Brasileira de Inclusão também serviu para fundamentar outras legislações para grupos específicos, como a Lei 14.624/2023 que institui o uso do cordão de girassol para identificar pessoas com deficiências ocultas.

Foto colorida de audiência pública para discutir possível criação de código de consolidação das leis brasileiras de inclusão. Na imagem, aparece uma bancada com a presença do deputado Duarte Jr no centro e com o microfone
Audiência pública foi realizada para discutir possível criação de código de consolidação das leis brasileiras de inclusão; entidades que atuam com direitos da pessoas com deficiência veem risco de retrocessos (Foto: Reprodução)

Proposta de consolidação de leis de inclusão

Recentemente, o Congresso Nacional discutiu em audiência pública o projeto de lei 1584/2025, de autoria do deputado Duarte Júnior (PSB/MA), para estabelecer uma consolidação ou código das leis brasileiras de inclusão. Em tese, a nova lei serviria para reunir a LBI e outras 212 legislações, de forma a facilitar o acesso das pessoas com deficiência aos seus direitos.

A proposta foi retirada de pauta após diversas manifestações contrárias, inclusive da Ampid. Maria Aparecida Gugel explica que o posicionamento da associação leva em consideração riscos de retrocessos, devido ao trâmite necessário em diversas comissões e no próprio plenário do Congresso Nacional. “São muitos os direitos que nós temos hoje edificados na Lei Brasileira de Inclusão e nas outras leis, para se colocar em dúvida, em cheque, e novamente partir para uma rediscussão”, pontua a vice-procuradora.

Maria Aparecida destaca que, se a proposta fosse apenas reunir as leis em um único documento, bastaria compilar essas normas em uma publicação, um livro ou uma apostila, sem necessidade de criar uma nova lei. “Qual é a nossa sugestão? Vamos trabalhar para projetos de leis bons que tragam novos direitos. O direito já conquistado deixa como está. O que queremos são novos direitos para aquelas lacunas que ainda não foram enfrentadas”, complementa. Exemplos de grupos que ainda dependem de maior amparo legal são indígenas, quilombolas e mulheres com deficiência, por exemplo.

A “Carta de Brasília”, elaborada em 2024 como resultado na 5ª Conferência Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, defende o protagonismo das pessoas com deficiência na elaboração de políticas públicas e a criação de um nacional e interfederativo de promoção dos direitos da pessoa com deficiência, além de outras ações para promover a inclusão e a acessibilidade. 

O documento também menciona a LBI como uma de suas bases e menciona outras metas e o combate ao capacitismo. “Estabelecer programas continuados de formação social e profissional de todas as áreas para o atendimento qualificado das pessoas com deficiência, considerando todo o ciclo de vida e a interseccionalidade de outros marcadores sociais para a efetividade das políticas públicas”, afirma o texto.

 

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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