Um tema sério, delicado e prioritário entrou na campanha eleitoral. O Brasil tem cerca de 51 milhões de crianças e adolescentes, de zero a 18 anos, que enfrentam problemas dos mais variados, nas áreas de saúde, educação, segurança…Daria tranquilamente para passar todo o segundo turno falando sobre eles. No entanto, o assunto chegou ao debate da pior maneira possível. Em mais um dos muitos discursos moralistas, o presidente Jair Bolsonaro voltou a falar sobre o encontro que teve com um grupo de jovens venezuelanas: “Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e vi umas menininhas, três, quatro, bonitas, de 14, 15 anos, arrumadinhas no sábado. Vi que elas eram meio parecidas. Pintou um clima, eu voltei”, contou o presidente. Na cabeça de Bolsonaro, “meninas bonitinhas se arrumando no sábado, para quê? Ganhar a vida”, ele mesmo respondeu. Sem explicar, é claro, como chegou a essa conclusão e o que fez para resolver o problema.
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Dias antes, Damares Alves, ex-ministra da Mulher e da Família e recém-eleita senadora, fez um relato escabroso, também sem apresentar prova alguma, sobre garotas que estariam sendo submetidas a tráfico humano na ilha de Marajó. Os dois discursos escondem o que realmente interessa: nos últimos anos o governo vem fechando programas e ações de apoio às crianças e aos adolescentes e reduzindo drasticamente o orçamento dessas áreas. Um estudo detalhado feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em parceria com o Unicef, mostrou que, entre 2016 e 2019, apenas 3% do Orçamento Geral da União (OGU) foram aplicados neste segmento da população. Em 2022, a situação foi ainda pior. O índice caiu para 2,4%, cerca de 72 bilhões. Quando dividimos este montante pelos 51 milhões de jovens e crianças do Brasil chegamos ao inacreditável valor de R$ 3,86 por dia, menos do que uma passagem de ônibus.
Vale lembrar que o artigo 227 da Constituição diz que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Três comentários sobre este artigo da Constituição: a) ele nunca foi cumprido de verdade; b) absoluta prioridade é absoluta prioridade. Nenhum outro segmento da população deveria estar na frente das crianças e dos adolescentes; c) é proibida a exploração de menores, em qualquer sentido, inclusive politicamente.
De acordo com dados oficiais, analisados pelo Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos), a verba investida, efetivamente, em 2021, em ações de assistência para crianças e adolescentes foi 33% menor do que havia sido gasto em 2012. Cenário que tende a ser mantido em 2022. Em 2012, havia 30 ações de diversos setores do governo focadas em crianças e adolescentes. Desde iniciativas de enfrentamento ao abuso e exploração sexual até o incentivo à prática de esportes, passando por conselhos tutelares e apoio à pesquisa. Hoje, além de ser muito menor, a verba está concentrada em praticamente um único programa, o “Criança Feliz”, criado em 2016 para dar assistência médica e psicológica a crianças carentes de zero a três anos. Ele consome 95% dos recursos.
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Veja o que já enviamosEm entrevista ao jornal Valor Econômico, a assessora especial do Inesc, Thallita de Oliveira, dá outros exemplos de cortes feitos nos programas de apoio à criança e ao adolescente: “Os recursos destinados para combater o trabalho infantil, por exemplo, caíram 20 vezes: foram executados R$ 6,7 milhões em 2019 e apenas R$ 332 mil em 2021. O que equivale a 19 centavos por criança neste ano”. E continua: “Não há qualquer reajuste desde 2017. Temos R$ 1,07 por criança em creches, R$ 0,53 na pré-escola e R$ 0,36 no ensino fundamental. Além da redução no acesso a creches, isso contribui para o aumento da fome, que impacta mais as famílias com crianças e adolescentes”, conclui.
Essa discussão fica ainda mais perversa quando consideramos não apenas o que Brasil deixa de investir nas suas crianças, mas o que deixa de ganhar por não fazer o que devia ser feito. Há alguns anos, os economistas Daniel Santos e Jaqueline Natal, da USP, vêm pesquisando qual seria o custo de não se fazer nada. A pergunta é: o que o Brasil perde por não investir na primeira infância? O resultado é absolutamente espantoso. Por não investir como deveria nas suas crianças, o país deixa de ter um crescimento adicional de 2 a 5 pontos percentuais do PIB. Algo entre R$ 40 bilhões e R$ 100 bilhões por ano. Mais do que os R$ 36 bilhões do famoso Orçamento Secreto, outro tema recorrente nesta campanha eleitoral. Como dizia Nelson Mandela, “não há revelação mais clara da alma de uma sociedade do que a forma como ela trata as suas crianças”. Essa é a nossa alma.