Futsal down: esporte potencializa cidadania de pessoas com trissomia 21

Dia Internacional da Síndrome de Down: projetos ajudam a constituir a base da seleção brasileira de Futsal Down tricampeã mundial

Por Micael Olegário | ODS 10 • Publicada em 21 de março de 2025 - 08:44 • Atualizada em 21 de março de 2025 - 09:51

Brasil assume protagonismo no futsal down e iniciativas se espalham pelo país (Foto: Marcos Ribolli – @mribolli)

Para diversas pessoas com trissomia 21, o futsal down é uma atividade que permite transpor as barreiras do capacitismo e acessar sua cidadania. Bailarina desde pequena, Aryane Masson, 32 anos, incluiu a modalidade na sua rotina há cerca de quatro anos, quando começou a fazer parte do projeto da Ponte Preta S21. Atualmente, ela divide seu tempo entre a academia, os treinos, a dança e os jogos de futsal. “Meu sonho é ser a primeira campeã da seleção brasileira e da Ponte também”, afirma a jovem com síndrome de down – condição genética reconhecida como trissomia 21 – que faz parte da primeira seleção feminina de futsal down do Brasil.

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A modalidade começou a crescer no país a partir de 2000, quando foi fundada a Associação Paradesportiva JR em São Paulo. O projeto desenvolve atividades em diferentes áreas, como dança, ginástica artística e esportes para pessoas com deficiência intelectual, como o atletismo, a natação e o futsal down. 

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Em 2024, o Brasil deu um passo na direção do protagonismo no esporte ao criar a primeira seleção feminina de futsal down e conquistar o tricampeonato mundial com a equipe masculina, em competição disputada na Turquia. A única diferença da modalidade adaptada em relação ao futsal tradicional é a ausência de um tempo definido para reposição da bola.

A edição de 2024 do Campeonato Brasileiro de Futsal Down está marcada para ocorrer de 17 a 21 de abril, na cidade de Lorena (SP). Após ter sido adiada no ano passado, as partidas devem contar com a participação de 10 equipes de diferentes cidades, entre elas a Ponte Preta S21 e a Associação JR.

No Brasil, existem cerca de 40 projetos que trabalham com o futsal down vinculados à Confederação Brasileira de Desportos para Deficientes Intelectuais (CBDI), entidade responsável por coordenar a modalidade. Porém, o número de ações voltadas ao esporte é ainda superior, considerando iniciativas que não estão formalizadas ou cadastradas na CBDI.

Não é só futsal, trabalhamos, principalmente respeito e a construção do cidadão

Maurício Carvalho
Coordenador na Ponte Preta S21

“A pessoa com síndrome de down tem alguns desafios de mobilidade e condicionamento físico que o futsal compensa. Elas se adaptam muito bem à quadra e ao esporte coletivo. Então, é uma modalidade que tem muito potencial, não só de lazer e de autorealização, mas também de profissionalizar”, destaca Heloísa Vilicic, vice-presidente da CBDI.

Além do capacitismo (preconceito direcionado à pessoas com deficiência que as desvaloriza como sujeitos/as), o futsal down sofre com a falta de financiamento. “Não temos repasse de verba para o futsal, por não ser uma modalidade paralímpica. Basicamente, partimos do zero”, explica Heloísa. Em geral, os recursos que permitem a participação, por exemplo, em mundiais, são de empresas patrocinadoras.

Para realizar o Campeonato Brasileiro, assim como outras competições, a exemplo da Copa do Brasil e do Campeonato Paulista de Futsal Down, a CBDI estabelece parcerias com municípios onde existem iniciativas de incentivo ao esporte. Outra alternativa recente tem sido elaborar projetos para a Lei de Incentivo ao Esporte. 

“Nós estamos levando também as nossas atividades para o setor de pesquisa em parceria com a Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), e com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), abrindo novas possibilidades e fazendo um protocolo para que a gente possa ajudar todas as equipes do Brasil”, acrescenta Antônio Carlos da Silva, professor de educação física e coordenador de futsal down da CBDI. A intenção é ampliar os estudos sobre os benefícios da prática esportiva para as pessoas com síndrome de down.

Foto colorida de atletas da Associação JR sentados diante da bandeira do projeto e do Brasil. Eles usam camisetas azuis e estão sorrindo. Na frente deles está uma taça de campeão
Érico (sentado na terceira posição da esquerda para a direita) e outros atletas da JR que participaram de conquista do mundial com a seleção (Foto: Divulgação/Associação Desportiva JR)

Campeão mundial e assistente técnico

Érico Eda, 32 anos, participou da conquista dos três mundiais da seleção brasileira de futsal down – em 2019 no município de Ribeirão Preto (SP), em 2022 no Peru e ano passado na Turquia. Nas três edições, o título veio de forma invicta. “Sempre fui assistir jogos e amo jogar bola também”, conta Érico. Segundo ele, o gosto pelo esporte surgiu na infância por influência do pai Martin Eda, apaixonado por futebol. 

O atleta combina os treinos na Associação JR com o trabalho em uma farmácia e a prática da natação. Recentemente, Érico passou a atuar como assistente da comissão técnica da seleção brasileira, com foco na preparação de outros jogadores. “Ajudo os meninos para se preparar para as viagens e, no treino, mostrar o que eles precisam melhorar”, relata Érico.

Além dos títulos mundiais, o Brasil é reconhecido como uma potência no futsal down devido a qualidade dos atletas. Um dos exemplos é Renato Gregório, jogador que também atua na Associação JR e foi eleito por três vezes o melhor do mundo.

Duas fotos coloridas de Aryane em treinos da Ponte Preta. Na imagem da esquerda, ela sorri e olha para o lado. Na da direita, está conduzindo a bola na quadra
Aryane treinava com os meninos até surgir a equipe feminina; modalidade também é praticada por mulheres (Foto: Marcos Ribolli – @mribolli)

Mulheres cavam seu espaço

Antes mesmo da Ponte Preta S21 criar a equipe feminina, Aryane já treinava junto com os meninos. Para ela, a prática do futsal down ajuda no equilíbrio necessário na dança e como uma atividade física em si. “Eu me sinto muito feliz e realizada”, descreve a atleta. Quando questionada sobre o que mais gosta, ela não exita: “fazer gol”.

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“Eu e meu marido somos voluntários. Então, vemos os que chegam com dificuldade e depois de um tempo o desenvolvimento deles. Tem uns que não entravam nem na quadra, outros chegam e já estão correndo. Vemos o benefício dessa atividade para eles. É bem gratificante”, relata Cristina Masson, mãe de Aryane.

Na Associação Paradesportiva JR, Renata Maria Certain, 49 anos, foi uma das principais responsáveis por insistir na prática do futsal down por mulheres. Após anos na natação, inclusive com participação em mundiais, Renata passou a fazer parte da equipe feminina da Associação JR, atualmente, com 10 integrantes.

Ao contar sobre o interesse na modalidade, Renata menciona o desejo desde a infância de ser goleira. “Esse trabalho é muito bom para mim e eu estou aproveitando e também treinando muito”, afirma a atleta, sobre a rotina de treinos e atividades no projeto. 

Treinadora de Renata e das outras jovens com síndrome de down que fazem parte da equipe da Associação JR, Glauciane Veras, 28 anos – mais conhecida como Glau – conheceu a iniciativa através de um estágio do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB). Depois, ela foi convidada para trabalhar diretamente com a equipe feminina.

“A ideia do nosso projeto é justamente quebrar esse tabu e proporcionar as atividades para as meninas”, aponta Glau. Segundo a treinadora, a iniciação esportiva na natação e em outras modalidades ajuda bastante no trabalho de ensinar os fundamentos do futsal. 

A socialização e os estímulos que a prática futsal down também colaboram para que as pessoas com trissomia 21 quebrem outros tabus, buscando espaço no mercado de trabalho e em universidades. “Vai muito além de só uma medalha no peito ou levantar um troféu. Eles podem muito mais além do que a gente exige deles”, enfatiza Glau. Não se trata de superação, mas de reconhecer a cidadania e potencial dessas pessoas.

Projeto nasceu após mundial no Brasil

Rafael Gava, 28 anos, passou a praticar futsal down em 2019, mas desde a infância costuma jogar bola com seus irmãos. O protagonismo na equipe da Ponte Preta S21 o levou a ser convocado para a seleção brasileira e a compor o grupo que conquistou o tricampeonato mundial na Turquia. “Agora, espero ser melhor e jogar de novo”, comenta Rafael.

Um dos responsáveis por criar o projeto da Ponte Preta S21, Maurício Carvalho, 61 anos, define o esporte como uma ponte para o desenvolvimento humano das pessoas com síndrome de down. Organizado pelas próprias famílias, o projeto atende cerca de 100 atletas, com ênfase nas categorias de base, com crianças a partir dos 4 anos de idade.

“Quanto antes iniciar a atividade física para as crianças é melhor, não só para as que têm síndrome de down, mas para outros tipos de deficiência, para qualquer uma delas”, explica Maurício, pai da Marina e do Rafael Carvalho – ator, palestrante e também atleta da Ponte Preta S21.

A descoberta da modalidade foi em 2019, quando Maurício assistiu o mundial em Ribeirão Preto. A criação do projeto foi feita ao lado dos amigos, o fotojornalista Márcio Ribolli e o professor de educação física e fisioterapeuta, José Antônio de Oliveira, conhecido como José Peixotão. 

Dois meses após os primeiros treinos, Maurício foi procurado por um diretor da Ponte Preta, equipe de futebol de Campinas, interessada em apoiar o projeto. Com a parceria estabelecida, os treinos passaram a ser realizados no ginásio do clube e o nome da Ponte Preta foi adotado como uma forma de dar visibilidade à iniciativa.

Foto colorida de atletas de futsal down da Ponte Preta S21 posando para a imagem. Eles usam uniforme e estão no centro da quadra.
Futsal down colabora com inclusão e cidadania; projeto atende cerca de 100 pessoas (Foto: Marcos Ribolli – @mribolli)

Respeito e cidadania

Maurício pontua que além do protagonismo, o projeto busca o respeito às pessoas com síndrome de down. “Não é só futsal, trabalhamos, principalmente respeito e a construção do cidadão”. Essa postura também é importante, aponta ele, para evitar a infatilização dessas pessoas. “Se você convidar, nós vamos jogar e no tempo normal de uma partida de futsal, não tem faz de conta. Porque muita gente acha que a pessoa com síndrome de down é infantilizada, mas cabe a nós pais fazer essa desmistificação”, complementa.

Queremos o alto rendimento do atleta, aquilo que ele pode alcançar de melhor. Mesmo aquele atleta que não tem tanta habilidade, mas desde que esteja se desenvolvendo em qualquer um dos aspectos, físico, motor ou social

Cristina Heitzmann
Coordenador na Associação Desportiva JR

Um dos objetivos de atuação do projeto, totalmente voluntário, está em ajudar na formação de outras iniciativas de futsal down pelo Brasil. “Todos os esportes são importantes, mas o futsal por ser o esporte nacional, culturalmente está enraizado e a participação é muito grande. Você consegue trabalhar com um número muito maior do que qualquer outra atividade”, destaca Maurício.

Recentemente, a Ponte Preta S21 também tem estabelecido contato com pesquisadores da Unicamp para documentar e ampliar os estudos sobre o papel do futsal na vida das pessoas com trissomia 21. “Nós temos relatos assim: tem uma atleta que entrou com 14 anos e hoje ela está com 16. Quando ela tinha um ano e meio de projeto – isso foi na metade do ano passado – acabou o treino e a mãe dela veio chorando para agradecer, porque a filha tinha corrido pela primeira vez na vida”, exemplifica Maurício.

Foto colorida de treino de futsal down. Em primeiro plano, o goleiro aparece de costas e braços abertos. Ao fundo, outro atleta domina a bola
Esporte ajuda no desenvolvimento motor e socialização de pessoas com trissomia 21 (Foto: Divulgação/Associação Paradesportiva JR)

Alto rendimento e desafios

Pioneira no Brasil, a Associação JR atende pessoas com deficiência intelectual dos 6 aos 49 anos. “A gente passa desde a iniciação esportiva até o alto rendimento que, considerando o esporte paralímpico, seria a participação numa Paralimpíada”, explica Cristina Heitzmann, coordenadora das modalidades e uma das fundadoras da entidade.

Segundo o presidente Roberto de Conti, a organização surgiu da demanda das pessoas – primeiro com a natação, depois com a ginástica artística e, em seguida, com o atletismo e o futsal. Hoje, a principal dificuldade para o crescimento é justamente o apoio. “A piscina é emprestada, as quadras e salas são emprestadas, as salas são emprestadas. Temos que ir de acordo com o que conseguimos de espaços e verba”, acrescenta.

Entre as diferentes modalidades, a Associação JR atende mais de 160 pessoas com deficiência intelectual e conta com dois monitores, nove professores e uma psicóloga. “Nosso objetivo é estruturar um pouco melhor a parte administrativa, que já está ficando muito pesada, por precisar cuidar de 160 atletas com cadastros, registros e inscrição em campeonatos”, menciona Cristina. 

A coordenadora enfatiza que o foco do trabalho não está no desempenho em si dos atletas, mas na sua qualidade de vida e saúde. “Queremos o alto rendimento do atleta, aquilo que ele pode alcançar de melhor. Mesmo aquele atleta que não tem tanta habilidade, mas desde que esteja se desenvolvendo em qualquer um dos aspectos, físico, motor ou social, ele permanece na associação”, pontua Cristina. 

Os resultados em competições mostram também o sucesso do projeto do ponto de vista profissional. No mundial de futsal down na Turquia, dez dos doze atletas da seleção eram da Associação JR. A equipe também foi indicada para representar o Brasil na Copa Libertadores da modalidade, prevista para ser realizada em novembro, no Chile. 

Micael Olegário

Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.

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