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Direitos LGBTQIAP+ sob ataque no Congresso Nacional
Legislativo apresentou 51 projetos de lei sobre identidade de gênero ou orientação sexual em 2023; pelo menos, 34 (66%) são nocivas a essas comunidades
(Lu Belin*) – As bancadas antidireitos da comunidade LGBTQIAP+ no Congresso Nacional não deram trégua em 2023. Pessoas transexuais e travestis foram o principal objeto de ataques. Levantamento do projeto Elas no Congresso, do Instituto AzMina, mostra que a ofensiva contra esses direitos foi constante. Com a composição mais conservadora da história da democracia brasileira, o Legislativo federal apresentou 51 Projetos de Lei sobre identidade de gênero ou orientação sexual no primeiro ano da legislatura 2023-2026. Mais de 66% (34 PLs) são nocivos a esses grupos.
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Em vários casos, a atuação contra os direitos das pessoas LGBTQIAP+ é coletiva, mostrando uma frente unificada nas pautas conservadoras. O PL 337/2023, por exemplo, ataca direitos das pessoas trans, travestis e não binárias ao restringir a circulação em espaços conforme o sexo biológico. Ele tem co-autoria de 47 deputados(as). Já o PL 269/2023, para proibir hormonioterapia para menores de 18 anos, e a cirurgia de redesignação sexual para menores de 21, tem 27 assinaturas.
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Veja o que já enviamosPL, Republicanos e União são os partidos que mais atuam contra os direitos das pessoas LGBTQIAP+. O trio soma 96 participações de autores ou co-autores em 31 dos 34 PLs avaliados como desfavoráveis. A maioria fala de pessoas trans, travestis ou não binárias.
O deputado federal Messias Donato (Republicanos-ES) é o mais ativo: apresentou seis proposições sozinho ou com colegas. Há propostas como restringir o acesso a banheiros e dormitórios com base no sexo biológico ou “criminalizar condutas de pessoas que instigam, incentivam, influenciam ou permitem criança ou adolescente a mudar seu gênero biológico, bem como a de prestar auxílio a quem a pratique”.
Entre os outros projetos nocivos à comunidade trans, destacam-se também os PLs 333, 335, 336 e 337, para revogar resoluções do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Elas garantem o uso de nome social às pessoas trans, travestis, não binárias, ou que não tenham sua identidade de gênero reconhecida, nos boletins de ocorrência e espaços sociais.
Chopelly Santos, vice-presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), entende esses esforços como reativos aos avanços dos últimos anos. “A emancipação das pessoas trans leva a um descontentamento de uma sociedade que nos queria na prostituição, que nos queria à margem”. Isso não impede que a comunidade seja diretamente afetada por essas medidas. São os grandes contribuidores para que o Brasil esteja no topo do ranking de país que mais assassina pessoas travestis e transexuais. “Quando os PLs vêm para atacar as trans, é como se estivessem incentivando os assassinos a cometer os crimes voltados contra a população de travestis e transexuais no Brasil”, diz Chopelly.
Barreiras na luta contra a desigualdade
Várias proposições tentaram frear avanços recentes, principalmente Executivo e Judiciário, ou impor novos retrocessos, demonstrando a força da bancada conservadora. Nem as conquistas já consolidadas da população LGBTQIAP+ foram poupadas. É o caso do PDL 181/2023, para sustar artigos da Resolução n.º 1/99 do Conselho Federal de Psicologia 25 anos após sua publicação. A norma impede profissionais de psicologia de patologizar ou propor curas e tratamentos das homossexualidades, e de associarem publicamente preconceitos que associem homossexualidade a qualquer “desordem psíquica”.
Para o senador Fabiano Contarato (PT-ES), ao invés de avançar em pautas essenciais, como geração de emprego e renda, saúde e educação, os congressistas usam o tempo para enfrentar discussões que não priorizam os direitos humanos e a justiça social. “Esses projetos de lei alimentam a discriminação e ignoram a importância de garantir direitos constitucionais”. O parlamentar se preocupa com a polarização acerca de pautas que deveriam ser consenso entre os partidos. “A falta de um debate sério e responsável sobre esses temas só agrava a vulnerabilidade de grupos minoritários no Brasil”.
Caio Klein, diretor da ONG Somos – Comunicação, Saúde e Sexualidade, comenta que o investimento em propostas antidireitos é uma tendência no Legislativo, inclusive com textos inconstitucionais. Uma reportagem d’AzMina em 2023 mostrou como a bancada evangélica monitora proposições progressistas, considerada pelo grupo como “conteúdo nocivo”.
O cenário fragiliza a população LGBTQIAP+, pois alguns de seus direitos “não são garantidos por lei, e sim por normas infralegais, como as resoluções”, explica Klein. A deputada Daiana Santos (PCdoB-RS) concorda. “O país teve um avanço do conservadorismo, do extremismo, de uma direita rasa, limitada e violenta, que faz a gente não conseguir avançar com pautas fundamentais para o desenvolvimento de toda a sociedade”.
Pânico moral como ferramenta política
A atuação da extrema-direita no Senado e na Câmara em 2023 deu continuidade às estratégias das campanhas eleitorais de 2018 e 2022, como combate à “ideologia de gênero”, cerceamento de direitos de pessoas trans, travestis e não binárias. A preocupação com acesso de mulheres trans a banheiros e vestiários femininos é um exemplo. O tema pautou pelo menos cinco PLs em 2023, justificados pelo risco a mulheres e crianças provocado por homens mal-intencionados que apenas se dizem transexuais.
De acordo com Pedro Barbabela, que pesquisa carreiras políticas LGBTQIAP+ na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), a bancada conservadora do Congresso manteve suas estratégias após as eleições. Entre os exemplos estão o uso de listas de transmissão de mensagens, muitas vezes desinformativas, e a difusão de pânico moral, sob o argumento de que os direitos das pessoas LGBTQIAP+ ameaçam os padrões sociais.
Além de sobrecarregar burocraticamente o Congresso com tramitações antiquadas, perigosas e até inconstitucionais, os ataques dos parlamentares da extrema-direita também incitam embates nas tribunas, tornando o clima das sessões hostil para representantes desses grupos. “É absurda a hostilidade no dia a dia, e como pautas tão importantes para a emancipação, para a evolução da sociedade brasileira, têm sido tratadas como moeda de troca nessa politicagem baixa que se alimenta de ódio e mentiras”, critica a deputada Daiana Santos. Ela lembra ainda que, com mais parlamentares, a bancada conservadora acaba fazendo mais “barulho” do que a progressista.
Sub-representação prejudica avanços
Como aponta a deputada, a baixa representação de parlamentares autodeclarados LGBTQIAP+ dificulta a resistência à ofensiva conservadora no Congresso. Enquanto a Câmara tem cinco parlamentares declaradamente gays, lésbicas e trans, o Senado tem apenas um. Além disso, com exceção do senador Fabiano Contarato, eleito em 2018, todas as deputadas e deputados estavam no primeiro ano de mandato em 2023.
Mesmo com baixa representatividade, a atuação de parlamentares LGBTQIAP+ vem sendo intensa e ativa. As duas primeiras parlamentares trans na Câmara federal, Erika Hilton (PSOL-SP) e Duda Salabert (PDT-MG), são autoras ou co-autoras de 39 projetos de lei cada uma. Os impactos das atuações da dupla são vistos como positivos por organizações da sociedade civil e movimentos sociais. Para Caio Klein, do SOMOS, embora seja cedo para avaliar o desempenho das parlamentares, as plataformas de ambas ultrapassam as questões de gênero, considerando também agendas como educação, saúde e meio ambiente.
Na avaliação do pesquisador Pedro Barbabela, há também o ganho simbólico da eleição das duas. “Temos duas mulheres com trajetórias de vida muito singulares que conseguiram romper com as expectativas sociais que são impelidas para os corpos trans”. Para ele, a presença das deputadas em Brasília representa transgressão às normas cisgêneras e heterossexuais que marginalizam os corpos trans nos espaços públicos, inclusive na política, abrindo caminho para outras pessoas “construirem uma vida fora das margens”.
Chopelly Santos, vice-presidenta da Antra, ressalta que a presença das duas reflete mais de 30 anos de trabalho do movimento organizado, e inspira a busca por espaço na política institucional e em carreiras de alto desempenho. “É por conta delas que hoje a gente tem 122 candidaturas de pessoas trans a prefeituras no Brasil afora. (…) Não temos só deputadas, mas médicas, advogadas”, diz, complementando: “É a primeira geração de travestis e transexuais que está chegando ao lugar da dignidade social”.
Para conhecer mais sobre os projetos de lei, a composição do Congresso, as posições de cada parlamentar no ranking e conferir reportagens sobre outros temas analisados na atuação de deputados e senadores, acesse o site do Elas no Congresso.
*Lu Belin é jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Paraná e pesquisadora associada com bolsa de pós-doutorado pelo NetLab/ECO, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisa gênero, misoginia e direitos sexuais e reprodutivos em redes digitais
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Revista AzMina: Tecnologia e informação contra o machismo e pela igualdade de gênero, com recortes de raça e classe. Jornalismo independente para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres cis e trans, homens trans e pessoas não-binárias