ODS 1
Autistas pretos rompem tabus nas redes sociais
Akin Sá e Fábio Souza, conhecido como Tio Faso, fazem relatos sobre o diagnóstico tardio e a relação entre autismo, raça e gênero
“Para mim autismo só era justamente como o Rain Man”, conta Fábio Souza, 41 anos. Criador do canal “Se eu falar não sai direito” e conhecido como “Tio Faso”, Fábio é um dos autistas pretos que utilizam as redes sociais para desconstruir tabus e preconceitos. “Como é que uma pessoa casada, que tem um filho, trabalha e fez faculdade podia ser autista?”, relembra ele sobre o questionamento que teve com o diagnóstico de neurodiversidade aos 36 anos.
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Assim como Fábio, Akin Sá, 23 anos, também não se identifica com o ‘padrão’ de representação de Rain Man, filme lançado em 1989 nos Estados Unidos e que conta a história de dois irmãos, um deles Raymond, um homem autista branco, vivido por Dustin Hoffman (o astro Tom Cruise interpreta o irmão). “As pessoas tendem a ter uma visão mais generalista e que nem sempre condiz com a realidade”, pontua Akin Sá, um autista preto e trans.
Morador de Curitiba, Akin estuda farmácia na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e se compreendeu como autista aos 16 anos, após um processo de acompanhamento de um quadro de depressão. “Eu não deixei de ser quem eu era. Eu não me tornei uma coisa diferente, mas saber quem ou tirou um peso das minhas costas”, destaca.
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Veja o que já enviamosA partir da atuação em movimentos sociais, Akin decidiu começar a produzir conteúdos para ajudar outras pessoas, foi como nasceu a página Hey Autista. “Surgiu da minha vontade de compartilhar as coisas que, na minha caminhada de me descobrir enquanto uma pessoa autista, fizeram sentido e acredito que podem fazer sentido para muita gente”, descreve.
Segundo o ativista e universitário, pesquisar e entender mais sobre o universo do autismo permitiu desenvolver um olhar diferente para comportamentos sobre os quais antes pesavam diferentes culpas: como o incômodo com barulhos e a dificuldade de conversar “olho no olho” com outra pessoa.
Uma descrição semelhante em relação à culpa perpassa as experiências de Fábio desde a infância. Ilustrador em São Bernardo do Campo, ele sofreu bullying devido ao seu jeito de falar. “Eu demorei para andar e falar. Minha mãe ia no médico e ele só falava que eu era preguiçoso”, relata. O nome dado ao projeto “Se eu falar não sai direito” tem a ver com essa trajetória.
Autismo no Brasil
Quando Fábio e Akin nasceram, o Brasil ainda não possuía a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, criada em 2012. Foi a partir de então que começaram a se desenvolver redes de apoio e diagnóstico através do Sistema Único de Saúde (SUS). Porém, o assunto ainda é cercado por tabus, a começar pela prevalência do autismo na população.
Estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), indicam que cerca de 2 milhões de pessoas são autistas no Brasil. No Censo 2022, pela primeira vez o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mapeou dados sobre o tema e a expectativa é de que os resultados sejam divulgados até o final de 2024.
Contudo, com base em uma pesquisa Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC), dos Estados Unidos, o número de casos no país pode ser até três vezes maior, isso porque o estudo indica uma prevalência de 1 caso a cada 36 crianças, se essa taxa foi considerada em relação ao total população brasileira, os brasileiros com autismo chegariam a quase 6 milhões.
Cabe pontuar que, o autismo é uma condição de neurodiversidade e não uma doença, sendo assim pode afetar pessoas brancas, pretas, indígenas, entre outras. Existem três níveis de autismo, sendo o nível 1 considerado leve, quando a pessoa precisa de pouco suporte; nível 2 – moderado e exige um suporte razoável; e nível 3 – severo, quando o suporte necessário em determinadas situações é maior e características, assim como a dificuldade de comunicação.
Algumas pesquisas indicam uma prevalência de 3,8 homens para cada mulher autista, o que não significa que elas não existam. Um dos desafios em compreender melhor a prevalência está no fato de que muitos adultos nunca foram diagnosticados, seja por questões de acesso ao conhecimento e serviços de saúde ou por questões sociais, como o racismo e o preconceito.
Racismo estrutural
“Olá, gente bonita. Aqui quem fala é o Tio Faso e, ora bolas, eu sou autista”. Assim iniciam a maioria dos vídeos feitos por Fábio, geralmente gravados em seu quarto, com diversos bonecos compondo o pano de fundo. Em um deles, Tio Faso desmonta a ideia de que exista uma prevalência de autismo em pessoas brancas, o que pode ser confirmado pelos dados da pesquisa do CDC.
Na entrevista ao #Colabora, no mesmo local de gravação dos vídeos do canal, Fábio comenta como o racismo estrutural dificulta o acesso a diferentes serviços de saúde e cria uma divisão de tratamento em relação ao autismo. “Enquanto uma pessoa branca, se tiver uma crise na rua vai receber acolhimento e vão chamar a SAMU, se um negro tiver a mesma crise, vão chamar a polícia”, exemplifica.
Para além das representações no cinema, a experiência do Tio Faso mostra como mesmo profissionais de saúde tendem a reproduzir um “padrão” étnico para uma condição cerebral e de neurodiversidade. “O negro autista no Brasil não tem o direito de ser diferente”, afirma Fábio Souza.
Pouco tempo depois de se compreender como autista, Fábio também recebeu o diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e de superdotação. Sobre o primeiro, ele conta que o ajudou a compreender melhor o fato de ter dificuldade em terminar certos projetos e muitos pensamentos ao mesmo tempo. Já ao falar da superdotação, Fábio menciona que foi uma certa surpresa, afinal ele nunca tinha se dado tão bem na escola. “Nunca fui bom em matemática, ficava de recuperação na escola e tudo mais. Mas com o diagnóstico você começa a entender que o seu cérebro funciona diferente”, explica Tio Faso.
Autismo e gênero
Em publicação fixada no perfil Hey Autista, Akin Sá descreve o dia em que renasceu – 6 de julho de 2023, quando recebeu sua certidão de nascimento retificada. Após um momento de evidente nervosismo ao abrir o envelope, Akin liberta o choro de felicidade por ter assegurado o direito de ser reconhecido como homem.
“Existem autistas pretos, autistas trans, mulheres e não se fala muito sobre”, ressalta Akin, ao explicar que as mesmas diversidades existentes em outros grupos da sociedade, também estão presentes na vida de pessoas neurodivergentes. “O autismo tem muitas caras, muitos rostos, muitos jeitos, e ainda assim é autismo”, acrescenta o estudante da UFPR.
De acordo com Akin, quebrar essas barreiras de invisibilidade dos recortes que sempre existiram no autismo é um dos objetivos do seu trabalho como ativista. Com o tempo, porém, ele percebeu a necessidade de, além de conteúdos didáticos, trazer também relatos sobre seu cotidiano.
Apesar de não abandonar os conceitos-chave ao falar sobre autismo nas redes sociais, Akin procura fazer isso de uma forma que gere compreensão e identificação para outros autistas. “Sempre tento trazer uma linguagem menos complicada, mais acessível para que as pessoas entendam”, explica ele.
Sobre a relação entre o autismo e sexualidade, Akin menciona uma pesquisa sobre o comportamento de autistas e a dificuldade de seguir padrões sociais. Na visão dele, essa característica facilita que autistas “fujam da norma” também com relação à sexualidade, o que não quer dizer que isso vá servir para todas as pessoas no espectro. “Não é que você vai enxergar o mundo cor de rosa, mas é que nem sempre algumas regras e imposições fazem tanto sentido e, a partir desse momento, fica um pouquinho mais fácil de você se permitir ser outras coisas. Por isso eu acredito que existem tantos autistas na comunidade LGBT+”, descreve Akin Sá.
Ao falar do seu processo de entendimento como homem trans, Akin revela que nunca se identificou com questões relacionadas à feminilidade. Ele conta que passou a compreender melhor o tema ao assistir uma entrevista de João Nery (ativista, psicólogo e primeiro homem trans a fazer uma cirurgia de redesignação sexual do Brasil) quando tinha entre 12 e 13 anos. O amadurecimento da questão veio depois, já entre os 20 e 21 anos.
A importância do diagnóstico, mesmo tardio
“Eu nunca pensei que eu poderia ser autista. Quem suspeitou foi minha esposa na gestação do nosso filho, quando começou a fazer os pré-natais”, revela Fábio Souza. Depois de um tempo aprendendo e pesquisando mais sobre o assunto, ele percebeu que a esposa, Liz Miranda, tinha razão. A confirmação, porém, só veio após consulta com uma especialista.
“Antes eu me culpava pelas coisas não darem certo. Tentei me matar três vezes, porque eu me sentia um fardo para a família”, relembra Fábio sobre as marcas que a falta do conhecimento sobre o autismo causava. “O diagnóstico te muda, porque permite se entender e se perdoar e te dá o ferramental para poder trilhar o caminho que você quer com as dificuldades monitoradas e às vezes diminuídas”, complementa.
Segundo Tio Faso, o seu horário preferido para escrever e gravar conteúdos para o canal é no final do dia, depois de refletir sobre uma situação ou experiência. “O que eu quero passar é justamente quebrar o tabu do que é autismo”. Como o principal resultado, Fábio espera gerar reflexões, cutucar e, quem sabe, mudar a vida de algumas pessoas.
Um dos desafios que o motivam e estimulam é a paternidade de Gustavo, hoje com 6 anos e uma criança autista. Por ter crescido sem a referência de um pai, Fábio procura observar outras referências e cita a dificuldade de lidar com a romantização da figura paterna que gostaria de exercer. Ainda assim, reconhece a necessidade de seguir aprendendo, sempre atento às demandas do filho.
Relações de apoio e suporte
Ao falar do momento após o diagnóstico do autismo, Akin Sá menciona o acolhimento tanto pela família como no ambiente universitário como aspectos positivos. Segundo ele, a acessibilidade com relação à métodos de avaliação e a compreensão de outras pessoas, amigos e colegas, sobre algumas de suas características como autista têm ajudado bastante.
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“Têm muitos autistas que não conseguem permanecer no ensino superior, o índice de evasão de autistas no ensino superior é bem alto, justamente por conta dessa falta de acessibilidade. Mas tendo um ambiente que favoreça a sua permanência e o seu desenvolvimento, é uma experiência bem legal e enriquecedora”, comenta o estudante de farmácia, curso escolhido devido ao grande gosto por química.
Além do suporte da família, Fábio Souza diz estar buscando desenvolver alguns hobbies, como a robótica, um interesse antigo, junto com o fato de gostar de viajar. “Não é uma coisa muito comum em autista gostar de conhecer rotas e caminhos diferentes, mas eu gosto de pegar o carro e sair por aí, gosto de dirigir”, conta Tio Faso, revelando mais um aspecto da diversidade e particularidade de cada pessoa, autista ou não.
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Jornalista formado pela Universidade Federal do Pampa (Unipampa). Gaúcho de Caibaté, no interior do Rio Grande do Sul. Mestrando em Comunicação na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Escreve sobre temas ligados a questões socioambientais, educação e acessibilidade.