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Quanto menor o acesso à terra, maior é a fome

ODS 1ODS 2 • Publicada em 13 de fevereiro de 2023 - 10:43 • Atualizada em 13 de fevereiro de 2023 - 11:05

(Júnior Aleixo*) – A fome e outros graus de insegurança alimentar compõem um quadro cuja moldura se sustenta a partir de uma estrutura histórica de distintas desigualdades. Em contextos de negação sistemática de direitos, inclusive do direito ao acesso à terra para produção agroalimentar, a desigualdade racial aparece não apenas como uma mera coadjuvante, mas como um fator central de análise. A imagem da desigualdade no acesso ao alimento no Brasil reflete o projeto político-social-econômico de violência patrimonial, de renda e de extermínio de parcelas específicas da população, seja pela negação do direito à terra e ao território, seja pela negação do direito à alimentação. Assim, grande parcela da população está lançada ao corredor do que o médico Llaila O. Afrika chama de nutricídio: o genocídio que ameaça a população negra a partir da negação do acesso à alimentação.

A intelectual, pesquisadora e quilombola Fran Paula nos chama a atenção para a necessidade de olharmos para a fome de maneira interseccional cuja base principal se sustenta a partir de uma estrutura racista, patriarcal e capitalista. Fran, que é também engenheira agrônoma e mestra em saúde pública, destaca que olhar para a fome e enxergar apenas a falta de acesso aos alimentos como o problema primário é não levar em consideração as principais variáveis que a sustentam: o racismo que possui sua âncora nos navios negreiros que aqui aportaram e deram sustentação para uma economia colonial e de base escravagista.

Destaco duas pesquisas lançadas nos últimos anos: o Censo Agropecuário de 2017 e o II Inquérito Nacional Sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil, lançado em 2022 pela Rede PENSSAN. São estudos que comprovam a indispensabilidade do olhar sobre o racismo estrutural – conceito incialmente apresentado nos anos 1970 por Kwame Turu e Charles Hamilton e amplamente difundido por Silvio Almeida, atual ministro dos Direitos Humanos –, a interseccionalidade e as consequentes ações para solucionar o quadro de desigualdades históricas.
Embora o II Inquérito da Rede PENSSAN (2022) tenha sido lançado cinco anos após o Censo Agropecuário de 2017, as informações contidas na pesquisa sobre o quadro geral da fome no país e, em particular, quando versam sobre as questões raciais e territoriais, se conectam diretamente à ordenação da estrutura fundiária brasileira anunciada pelo Censo: com evidências de desigualdades raciais, de gênero e territoriais.

As pesquisas demonstram que o acesso à terra e aos alimentos no país segue sendo mais difícil para as populações negras e empobrecidas, particularmente, para as mulheres. De um lado, o estudo da Penssan evidencia que mais de 60% da população rural sofre com insegurança alimentar e cerca de 65% dos lares comandados por pessoas pretas ou pardas sofrem com restrição aos alimentos. Do outro, o Censo Agropecuário demonstra que cerca de 59% dos estabelecimentos rurais no Brasil são controlados por pessoas autodeclaradas brancas e 28% por pessoas negras.

Além disso, ainda de acordo com o Censo, cerca de 90% dos estabelecimentos rurais acima de 2.500 hectares são controlados por pessoas brancas. No entanto, segundo o II Inquérito, os estabelecimentos rurais comandados por agricultoras e agricultores familiares, pequenas e pequenos produtores rurais, enfrentam formas mais severas de segurança alimentar, contabilizando 38% dos estabelecimentos. Isto posto, do mesmo modo que o campo é o lugar mais afetado pela insegurança alimentar no país, quem menos tem acesso à terra, mais sofre com a insegurança alimentar.
Ainda sobre o quadro geral da fome no Brasil, as regiões Norte e Nordeste são as que mais sofrem com restrições e negação de acesso aos alimentos, em um contexto em que o Nordeste contabiliza mais de 50% dos camponeses no país. As mulheres também enfrentam violência patrimonial no que diz respeito ao acesso à terra uma vez que 87,3% dos estabelecimentos rurais são controlados por homens e apenas 18,7% por mulheres em um cenário em que seis em cada 10 lares geridos por mulheres também convivem com algum tipo de insegurança alimentar.

Ao mesmo tempo em que identificamos e evidenciamos as distintas desigualdades sobre acesso à alimentação e à terra que afetam parcelas específicas da população de maneira mais intensa, populações negras e mulheres, observamos o aumento da produtividade e das áreas para produção de culturas que não são evidentemente alimentares, como são os casos da monocultura de soja e de cana-de-açúcar, que conta, também, com a redução das áreas para produção de culturas alimentares da cesta básica, como arroz e feijão.

O modelo econômico e produtivo vigente, monocultural e agroexportador, reconhecidamente como “agronegócio”, tem se pautado na expansão da chamada fronteira agrícola, em especial para regiões do Cerrado e da Amazônia brasileira. Isso tem reforçado uma estrutura fundiária desigual, expulsando agricultoras e agricultores familiares de seus territórios, em sua maioria populações negras diversas e indígenas, dando lugar a espaços de produção de commodities agrícolas integrado aos mercados globais, ambientalmente insustentável e socialmente desigual.

Por isso mesmo, caso realmente intente retirar o país da rota do genocídio das populações negras, tradicionais e originárias em que se encontra, o novo governo tem mais que um desafio candente, mas um dever em reestabelecer um projeto político que seja ancorado na produção e distribuição de alimentos de qualidade com o fortalecimento de programas e políticas públicas voltados à agricultura familiar, no combate à fome, no real enfrentamento à violência racial e à desigualdade fundiária histórica. O reestabelecimento do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), do Ministério da Igualdade Racial, do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea) e a criação do Ministério dos Povos Indígenas, além da consequente e necessária interconexão entre essas instâncias, dão o tom e a cor para transformações no quadro e na moldura do que vemos quando olhamos para a fome no Brasil. O compromisso está lançado. Caberá a nós, sociedade, seguir vigilante.

*Júnior Aleixo é pesquisador e especialista em Justiça Climática da Action Aid

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