Há muitos tons entre o vermelho e o verde-amarelo

Pesquisadora relativiza a tão falada polarização da sociedade entre esquerda e direita

Por Fernando Molica | ODS 1 • Publicada em 13 de julho de 2017 - 19:52 • Atualizada em 15 de julho de 2017 - 13:46

Manifestante, em São Paulo: as múltiplas cores da democracia. Foto: Cris Faga / NurPhoto
Manifestante, em São Paulo: as múltiplas cores da democracia. Foto: Cris Faga/NurPhoto

Professora da Universidade Federal de São Paulo e da Universidad Complutense de Madrid, a cientista social  Esther Solano Gallego relativiza a tão falada polarização da sociedade brasileira. Para ela, entre os extremos delimitados pelo vermelho e pelo verde-amarelo exibidos nas ruas há, entre a maior parte da população, uma gama de outras cores e, mesmo, uma ausência de rígidas definições cromáticas.

Segundo Esther, o diagnóstico desta divisão parte principalmente de uma classe média escolarizada, acadêmica. Cidadãos que, apesar das diferenças ideológicas, ocupam lugares parecidos na pirâmide social brasileira.

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Em sua arrogância, a esquerda não consegue ler o que se passa nesses universos. Onde está a esquerda nas periferias? As comunidades de base acabaram

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“Essas pessoas pertencem a um grupo de elite, têm em média 42 anos, 80% completaram um curso superior, não representam demograficamente o país”, ressalta. No fim do mês passado, ela ministrou, na Passagens, escola de filosofia recém-inaugurada no Rio, um curso que recebeu o nome de ‘Polarização, populismo de direita e novas identidades políticas’.

De acordo com Esther, moradores das periferias e a maioria dos jovens passam ao largo desta lógica que tenta reduzir a luta política a um embate entre o bem e o mal e exibem  identidades  mais permeáveis e adaptáveis a variações de realidades política, econômica e social. Assim, um processo de adesão a valores mais conservadores, como o verificado em São Paulo na eleição de João Doria (PSDB) para a prefeitura, não poderia ser reduzido à visão caricatural do “pobre de direita”, ironia com altos teores de ofensa e desprezo lançada por setores da esquerda.

João Doria: discurso direcionado para o cidadão-consumidor. Foto: Levi Bianco/Brazil Photo Press

“Em sua arrogância, a esquerda não consegue ler o que se passa nesses universos”, critica. Para explicar o fenômeno, ela cita um vácuo relacionado à falta de espaços de participação e sociabilidade em áreas mais pobres e à baixa qualidade de serviços públicos prestados aos seus habitantes. “Onde está a esquerda nas periferias? As comunidades de base acabaram”, ressalta.

Esses fatores, somados ao aumento da crise de representatividade institucional gerada pelos muitos casos de corrupção, fortaleceram, afirma, uma tendência individualista capaz de ser atraída pela pregação de igrejas evangélicas pentecostais que seguem a cartilha da chamada Teologia da Prosperidade. A ideia do consumidor-cidadão exaltada pelos governos petistas teria, assim, jogado a lenha que alimenta projetos focados no progresso pessoal. Isto, num momento em que os recém-chegados à classe média tratavam também de adotar muitos de seus valores.

Moradores das periferias querem um Estado capaz de fornecer transporte, creches e escolas gratuitos. Mas compraram a ideia da meritocracia. Foto: Danilo Fernandes/Brazil Photo Press

A cientista social frisa que moradores das periferias querem mais Estado, um Estado capaz de fornecer transporte, creches e escolas gratuitos. Mas os sucessivos tropeços do poder público reforçaram o individualismo, a proposta de que a ascensão de cada um depende de seu próprio esforço. “A periferia comprou a (ideia da) meritocracia”, diz.

Esther afirma que o João Doria entendeu bem esta mudança, e tratou de direcionar seu discurso para este cidadão-consumidor que aderiu a valores como acordar cedo, trabalhar desde a juventude, empreender. Homens e mulheres que negam a política, condenam a corrupção, que querem chegar à classe média. “Foi um belo marketing”, resume.

Um movimento inflado também por ventos conservadores que derrubam certezas e partidos tradicionais no hemisfério norte. “Trata-se da política do espetáculo, tudo vira um grande show de marketing baseado no ódio, no enfrentamento, na existência de um inimigo. Algo que não foi inventado agora, mas que a direita sabe explorar muito bem”, afirma. Um discurso potencializado pelas redes sociais e que ajudou os conservadores a libertar suas ideias. Sentindo-se ameaçada pela emergência de movimentos como os protagonizados por mulheres, negros, LGBTs, a direta foi para o ataque.

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A esquerda se omitiu totalmente no tema da segurança pública e da guerra às drogas, o governo do PT não propôs nenhuma mudança, deixou o campo livre para a direita. A esquerda brasileira é conservadora, boa parte dela adota o punitivismo conservador, não discute o fim da repressão às drogas, o desencarceramento

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Para a cientista social, outras brechas deixadas pela esquerda facilitaram a ascensão da direita, como a falta de respostas efetivas para questões como as relacionadas à segurança pública. “A esquerda se omitiu totalmente no tema da segurança pública e da guerra às drogas, o governo do PT não propôs nenhuma mudança, deixou o campo livre para a direita. A esquerda brasileira é conservadora, boa parte dela adota o punitivismo conservador, não discute o fim da repressão às drogas, o desencarceramento”, critica.  Esther lembra que a esquerda guardou o mesmo silêncio obsequioso em torno da descriminalização do aborto.

No fim das contas, ela, que tanto relativiza a polarização detectada por muitos brasileiros, admite que a situação pode se agravar em 2018, com as prováveis candidaturas à Presidência de Lula, Doria e Jair Bolsonaro. Ressalta que o ex-presidente provoca muitas paixões, e que estes dois eventuais adversários também não costumam economizar munição e tiros verbais. O deputado e militar da reserva investe num extremo, de olho em seu eleitorado, o prefeito paulistano também radicaliza o discurso antipetista. E, apesar da possibilidade de uma nova candidatura de Marina Silva, a cientista social não vê espaço para uma terceira via e aposta na hegemonia de um dos dois lados.

Apesar de reconhecer a competência da direita em afinar seu discurso com base na nota que nasce do diapasão conservador, Esther frisa que o processo tende a ser mais complexo e elaborado, diz que pautas brandidas no Congresso e que exaltam valores mais retrógrados “não têm consistência na sociedade”. “Não houve, por exemplo, qualquer mobilização pelo Dia do Orgulho Hétero”, cita. Haveria, portanto, espaço para a esquerda institucional romper com alguns de seus silêncios e mostrar sua cara. A direita, ressalta, já saiu de seu armário, “de um puta de um armário”.

Fernando Molica

É carioca, jornalista e escritor. Trabalhou na 'Folha de S.Paulo', 'O Estado de S.Paulo', 'O Globo', TV Globo, 'O Dia', CBN, 'Veja' e CNN. Coordenou o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira da Fundação Getúlio Vargas. É ganhador de dois prêmios Vladimir Herzog e integrou a equipe vencedora do Prêmio Embratel de 2015. É autor de seis romances, entre eles, 'Elefantes no céu de Piedade' (Editora Patuá. 2021).

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