Mapa brasileiro da fome ressalta desigualdades entre estados

Estudo da Rede Penssan com dados estaduais mostram diferenças na insegurança alimentar até mesmo entre vizinhos

Por Oscar Valporto | ODS 1ODS 2 • Publicada em 14 de setembro de 2022 - 08:27 • Atualizada em 29 de outubro de 2022 - 11:01

Fila de sem teto para receber quentinhas na Lapa, Rio de Janeiro, no auge da pandemia: estudo da Rede Penssan mostra desigualdades na insegurança alimentar de um estado para outro (Foto: Mauro Pimentel / AFP – 05/05/2021)

O presidente Jair Bolsonaro pode não ver a legião de famintos do Brasil, mas a pesquisa da Rede Penssan, divulgada em junho, mostrou que 33 milhões de brasileiros passam fome, de um total de 125 milhões que sofrem algum tipo de insegurança alimentar. Agora, com a divulgação da análise por estado, os dados revelam o mapa da fome em um país desigual. Proporcionalmente, as populações do Norte e do Nordeste são as que mais passam fome no país. Em números absolutos, a Região Sudeste, a mais populosa, tem mais famintos: são 6,8 milhões de pessoas no estado de São Paulo, onde Bolsonaro nasceu, e 2,7 milhões no estado do Rio de Janeiro, onde ele fez carreira política.

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Os dados suplementares do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (VIGISAN) mostram o quadro da fome em cada estado brasileiro e no Distrito Federal. Na Região Nordeste, Alagoas é o estado que mais sofre com pratos vazios: 36,7% da população está em insegurança alimentar grave (fome). No Norte, o Amapá está no topo deste trágico ranking com 32,0% da população nesta situação. O Mato Grosso é o recordista do Centro-Oeste, com 17,7%. No Sul e no Sudeste, o problema é mais grave nos estados Rio Grande do Sul – 14,1%, com insegurança alimentar grave – e do Rio de Janeiro, com 15,9% com fome.

Apesar da ampla cobertura do Auxílio Brasil, uma parcela significativa da população com renda de até meio salário-mínimo não foi contemplada pelo benefício. É uma parte da população que já sofre com a insegurança alimentar

Rosana Salles
Professora de Nutrição e pesquisadora da Rede Penssan

Os dados foram reunidos entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir da realização de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e no Distrito Federal. “O estudo mostra que fatores como endividamento e insegurança alimentar grave estão diretamente relacionados, e são mais graves nos lares com crianças em praticamente todos os estados. As desigualdades que permeiam nossa sociedade se refletem nas diferentes regiões, e são
também o principal fator gerador de insegurança alimentar”, afirma o economista Francisco Menezes, analista de Políticas Públicas da ActionAid Brasil.

O inquérito nacional mostrou que a fome atingia 33 milhões de brasileiros. As informações referentes aos estados e ao Distrito Federal, divulgadas nesta quarta (14/9) após nova etapa de análise dos dados, foram reunidas no suplemento com o objetivo de identificar desigualdades regionais de acesso aos alimentos. “Os resultados refletem as desigualdades regionais registradas no relatório do II VIGISAN, e evidenciam diferenças substanciais entre os estados de cada macrorregião do país. Não são espaços homogêneos do ponto de vista das condições de vida. Há diferenças socioeconômicas nas regiões que pedem políticas públicas direcionadas para cada estado que as compõem”, aponta Renato Maluf, coordenador da Rede Penssan. A Segurança Alimentar e a Insegurança Alimentar foram medidas, mais uma vez, pela Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), que também é utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Famílias com crianças e sem comida

Nesta nova etapa do II VIGISAN, fica evidente que as famílias com renda inferior a meio salário-mínimo por pessoa estão mais sujeitas à insegurança alimentar moderada e grave. “Apesar da ampla cobertura do Auxílio Brasil, uma parcela significativa da população com renda de até meio salário-mínimo não foi contemplada pelo benefício. É uma parte da população que já sofre com a insegurança alimentar”, comenta Rosana Salles, professora do Instituto de Nutrição da UFRJ e pesquisadora da Rede Penssan.

Mesmo as famílias que recebem o Auxílio Brasil, por estarem endividadas, não conseguem utilizá-lo somente para a compra de alimentos. O recurso precisa ser utilizado para pagar outras necessidades básicas, como aluguel, transporte, luz e água

Ana Maria Segall
Pesquisadora da Rede Penssan

A insegurança alimentar ocorre em 65,6% dos domicílios que se encaixam neste perfil de renda no Acre, e em 67,6% no Pará. Estes altos índices acompanham as residências nesta mesma situação em vários estados brasileiros: Maranhão (72,0%), Sergipe (76,5%), Piauí (66,1%), Ceará (65,2%), Rio de Janeiro (61%), São Paulo (58,4%) Santa Catarina (65,7%), Rio Grande do Sul (64,4%) e Distrito Federal (63,9%). “A atual política pública deixa de fora famílias que estariam socialmente elegíveis ao recebimento de uma renda, e que estão em alta vulnerabilidade alimentar”, acrescenta a pesquisadora.

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A renda, insuficiente para as necessidades básicas, vem precisando estar dedicada, também, aos custos com endividamento. “Mesmo as famílias que recebem o Auxílio Brasil, por estarem endividadas, não conseguem utilizá-lo somente para a compra de alimentos. O recurso precisa ser utilizado para pagar outras necessidades básicas, como aluguel, transporte, luz e água”, explica Ana Maria Segall, pesquisadora da Rede Penssan e da Fiocruz.

É preciso uma política de enfrentamento com foco na infância, conforme demonstrado nos dados. Elas estão sofrendo mais intensamente. A falta de alimentação adequada nessa fase da infância, com sacrifício de outros membros da família, provoca comprometimentos futuros, físicos e cognitivos

Francisco Menezes
Economista e analista da ActionAid

No Norte e no Nordeste, justamente onde estão concentradas as maiores proporções de pobreza e extrema pobreza, há maior frequência de endividamento das famílias. Na maioria dos estados do Nordeste, pelo menos 45% das famílias estão endividadas – em Alagoas este índice chega a 57,5%. Os números também são alarmantes no Amazonas (52,6%) e no Distrito Federal (55,6%).

A pesquisa VIGISAN foi realizada pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), constituída por pesquisadores, professores, estudantes e profissionais, e teve execução em campo do Instituto Vox Populi. A Ação da Cidadania, a ActionAid, a Ford Foundation, a Fundação Friedrich Ebert Brasil, o Ibirapitanga, a Oxfam Brasil e o Sesc São Paulo são organizações apoiadoras e parceiras desta iniciativa.

O suplemento de 66 páginas com a análise da fome nos estados destaca ainda a proporção de insegurança alimentar moderada e grave, acima de 30,0%, nos domicílios com presença de menores de 10 anos, sobretudo, nos estados do Maranhão (63,3%), Amapá (60,1%), Alagoas (59,9%), Sergipe (54,6%), Amazonas (54,4%), Pará (53,4%), Ceará (51,6%) e Roraima (49,3%). “É preciso uma política de enfrentamento com foco na infância, conforme demonstrado nos dados. Elas estão sofrendo mais intensamente. A falta de alimentação adequada nessa fase da infância, com sacrifício de outros membros da família, provoca comprometimentos futuros, físicos e cognitivos”, afirma Francisco Menezes, da Actionaid.

O pesquisador destaca ainda os impactos da redução significativa nos recursos para merenda escolar, congelados desde 2017, e da inflação dos alimentos, que  ultrapassa 43% desde o início da pandemia em 2020. “Quando o Brasil saiu do mapa da fome, a alimentação escolar teve papel importante. A alimentação na escola vai piorando, com a substituição de alimentos de melhor qualidade nutricional para ultraprocessados, mais baratos”, acrescenta.

Distribuição de quentinhas para sem teto na Lapa, Rio de Janeiro, durante a pandemia: mapa brasileiro da fome ressalta desigualdade entre estados (Foto: Mauro Pimentel / AFP - 05/05/2021)
Distribuição de quentinhas para sem teto na Lapa, Rio de Janeiro, durante a pandemia: mapa brasileiro da fome ressalta desigualdade entre estados (Foto: Mauro Pimentel / AFP – 05/05/2021)

Auxílio insuficiente

Os programas de transferência de renda, como o Auxílio Emergencial e o Auxílio Brasil (substituto do Programa Bolsa Família) cobriram, no momento das entrevistas, realizadas entre novembro de 2021 e abril de 2022, parcela significativa da população brasileira. De acordo com suplemente do relatório com os dados estaduais, os programas alcançavam proporção de 40% a 60% dos moradores dos estados das regiões Norte e Nordeste. Nos estados das demais regiões, estes programas alcançaram entre 30% e 40% dos domicílios.

O suplemento do Vigisan II explica que, com relação ao Auxílio Emergencial, foi perguntado à pessoa entrevistada se algum morador do domicílio havia recebido alguma parcela de recurso deste programa de janeiro a outubro de 2021, período de sua vigência. Entretanto, a coleta de dados do II VIGISAN ocorreu no período em que as transferências do Auxílio Emergencial haviam sido interrompidas; além disso, a estimativa da Segurança Alimentar e níveis de IA nas famílias é feita com informações de acesso aos alimentos nos 3 meses anteriores à entrevista. Por conta dessa discrepância temporal das informações, não foram apresentadas no suplemento suplemento, as relações entre os padrões de insegurança alimentar e este programa de transferência de renda que cobria, de acordo com pesquisadores, em seu período de vigência mais de 50% dos domicílios com renda per capita menor ou igual a 1/2 salário-mínimo, em todos os estados, de todas as regiões, exceto em São Paulo (46,7%) e Acre (47,8%)

Só é possível superar a fome com o devido enfrentamento da raiz do problema, e isso envolve geração de conhecimento com rigor técnico aliado a retomada, implementação e desenvolvimento de políticas públicas efetivas e estruturadas em âmbitos nacional, estaduais e municipais

Francisco Menezes
Economista e analista da ActionAid Brasil

O documento ressalta, contudo, que apesar da alta cobertura do Bolsa Família/Auxílio Brasil, em praticamente todos os estados da Federação as famílias com rendimentos de até 1/2 salário-mínimo não tiveram melhora significativa de suas condições de acesso à alimentação adequada. “Essa situação fica ainda mais evidente quando se compara a situação de Insegurança Alimentar  moderada + grave observada em domicílios atendidos por este programa com outros domicílios dos mesmos estados, cujas famílias vivem com rendimentos de até 1/2 salário-mínimo, mas não recebiam essa transferência de renda”, afirma o relatório da Rede Penssan.

Os pesquisadores concluem que a situação de insegurança alimentar generalizada se espalha pelo país, mas de forma, entretanto, desigual. “Embora a Insegurança Alimentar  tenha se disseminado como um fenômeno social de dimensões nacionais, os dados aqui expostos permitem identificar situações típicas e agravadas nas regiões mais pobres do país”, afirma o documento em sua conclusão. “Mesmo nas regiões mais desenvolvidas, como Sul e Sudeste, ficou evidente, em seus estados, a relação entre pobreza e insegurança alimentar em todos os níveis, aí incluída a fome. Desta forma, foi possível identificar discrepâncias significativas entre estados de uma mesma região, assim como situações que destoam significativamente do panorama nacional”, acrescenta o texto.

Para os autores da análise, as diferenças entre os estados estão ligadas tanto aos processos históricos de suas dinâmicas populacionais, estruturas socioeconômicas e processos políticos, quanto à aderência das decisões político-administrativas e das agendas de organizações sociais às necessidades de suas populações locais. “Além de fomentarem reflexões sobre dinâmicas locais, as evidências aqui apresentadas permitem detectar similaridades entre estados e estabelecer conexões com os processos nacionais causadores das mazelas intrínsecas à Insegurança Alimentar”, afirma o documento da Rede Penssan. “Paralelamente aos desafios que o grave problema da fome coloca ao Governo Federal, o presente diagnóstico contém subsídios relevantes para a formulação de políticas públicas de Segurança Alimentar e Nutricional no plano estadual”, conclui.

Oscar Valporto

Oscar Valporto é carioca e jornalista – carioca de mar e bar, de samba e futebol; jornalista, desde 1981, no Jornal do Brasil, O Globo, O Dia, no Governo do Rio, no Viva Rio, no Comitê Olímpico Brasileiro. Voltou ao Rio, em 2016, após oito anos no Correio* (Salvador, Bahia), onde foi editor executivo e editor-chefe. Contribui com o #Colabora desde sua fundação e, desde 2019, é um dos editores do site onde também pública as crônicas #RioéRua, sobre suas andanças pela cidade

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