A lenta agonia de projetos sociais que perderam verbas públicas

Fundação para a Infância e Adolescência suspende repasses para quase 100 ONGs do estado do Rio. Muitas correm o risco de fechar

Por Claudia Silva Jacobs | ODS 1 • Publicada em 17 de agosto de 2017 - 08:31 • Atualizada em 18 de agosto de 2017 - 16:46

Criança no Instituto Vida Real: redução drástica do número de atendidos. Foto: Divulgação

A informação vem acompanhada de um enorme sentimento de frustração: nos últimos meses, cerca de 10 ex-alunos do Instituto Vida Real voltaram ao tráfico no Complexo da Maré. Quem conta é Sebastião Antônio Araújo, ex-inspetor escolar que, aos 54 anos,  vê o projeto a que se dedicou nos últimos 13 anos ruir um pouco mais a cada dia. E o grande responsável é justamente quem deveria tomar para si a responsabilidade de cuidar de crianças em situação de risco: o poder público. Sem receber da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA) há nada menos que 16 meses, a ONG, desde dezembro, também não conta com os repasses do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA).  É que só agora, em julho, foi lançado o edital de apreciação de projetos para 2017 pelo Fundo Municipal Para Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente. O resultado é uma redução drástica do número de jovens atendidos pela instituição criada por Sebastião: de 250 para 96.

Tião, como é conhecido, não está sozinho. “Em todo o estado do Rio de Janeiro, desde março de 2016, a FIA já suspendeu as verbas destinadas a cerca de 100 projetos voltados para crianças e adolescentes em situação de risco ou com deficiência”, diz Kátia Vasques, presidente da Federação Estadual das Instituições de Reabilitação do Estado do Rio de Janeiro (FEBIEX) e membro do CMDCA. Segundo ela, a situação é “gravíssima”.  Muitas ONGs estão reduzindo o horário de atendimento ou até mesmo fechando as portas, devido à suspensão dos repasses por parte da FIA, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Assistência Social ( SECTDS).

É muito triste ver o trabalho se perdendo e as crianças nas ruas. Sei que algumas dependiam das refeições que faziam aqui. Atuamos onde o governo deveria agir e eles não nos apoiam, ninguém marca sequer uma reunião, nada. Não existimos!

O cenário é desalentador. Não há previsão de regularização dos repasses. “As instituições fazem com que os jovens sonhem. Agora, o governo está matando os sonhos deles”, lamenta Tião, inconformado com o descaso dos órgãos públicos em relação ao futuro desses meninos e meninas. O Instituto Vida Real recebe adolescentes em situação de risco, de 12 a 17 anos. Entre eles, meninos que já se envolveram em crimes, como o tráfico de drogas. A ONG busca nas atividades extraclasse uma forma de dar suporte e abrir novas perspectivas de vida para eles.

Tião (em pé, de óculos) conversa com os alunos: adolescentes em situação de risco. Foto: Divulgação

Quando a ONG ainda estava em pleno funcionamento, na sede da rua Teixeira Ribeiro, no Parque Maré, aconteciam aulas de serigrafia, grafite, informática e música, além de reforço escolar, atendimento psicológico e assistência médica. Agora, as aulas foram reduzidas e só continuam graças a voluntários e a profissionais que permanecem trabalhando apesar de meses de salários atrasados. O que também impede o projeto de desmoronar de vez são as doações de pessoas físicas. Nada mais.

“Não sabemos até quando vamos suportar”, diz Tião, lembrando que está com um ano do aluguel do espaço atrasado. “É muito triste ver o trabalho se perdendo e as crianças nas ruas. Sei que algumas dependiam das refeições que faziam aqui. Atuamos onde o governo deveria agir e eles não nos apoiam, ninguém marca sequer uma reunião, nada! Não existimos”. A situação é tão grave que ele anuncia que será obrigado a fechar, nos próximos dias, a unidade aberta em Parada Angélica, Duque de Caxias, onde são atendidas 80 crianças. A expansão do instituto só foi possível  graças as parcerias e a doações de pessoas físicas.  Com uma sobra de orçamento, tocava o projeto. Agora, sem contar com as verbas públicas, não sobra mais. Muito pelo contrário. “Não tenho como manter. Infelizmente, vou ter que fechar para garantir o mínimo aqui na Maré”.

Apesar de tudo, ele não perde a esperança. Diz ainda acreditar que estado e município possam abraçar seu projeto. A abertura do edital do Fundo Municipal pode significar um alívio, mas ainda demora alguns meses para chegar. Mesmo assim, a conta ainda não vai fechar. Os gastos da ONG, segundo ele, somam cerca de R$ 25 mil por mês – um orçamento modesto diante do número de jovens atendidos.

Exercícios na piscina, na Dona Meca: referência no estado. Foto: Divulgação

Outra ONG  do estado do Rio que também luta para sobreviver é a Obra Social Dona Meca, que atende a 250 crianças com deficiência física e intelectual, na Taquara, em Jacarepaguá, Zona Oeste do Rio. O lugar é procurado por pais em busca de terapias para seus filhos. Além disso, uma casa de acolhimento abriga 20 crianças. Com 89 funcionários e 30 estagiários, tal como o Vida Real, a ONG sofre pela falta de repasses da FIA e do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

A instituição tem tentado receber a verba da FIA por meio de ações judiciais. Mesmo assim, já são quatro meses de repasses atrasados. “Não temos nem ideia de quando tudo será normalizado”, diz o publicitário Anderson Mendes de Souza, de 27 anos, à frente do projeto desde 2013.

Para cobrir o rombo e não ser obrigado a reduzir as atividades da instituição, que se tornou referência no estado, a saída está sendo incrementar o programa de apadrinhamento e tentar ampliar a parceria com a iniciativa privada, que já acontece em projetos específicos. “Existem poucos espaços gratuitos para o atendimento de crianças com deficiência no estado, e a demanda só aumenta”, diz Souza.

Ele ficou aliviado com o anúncio do edital do Conselho Municipal  e espera a volta da ajuda financeira para os próximos meses. De acordo com Kátia Vargas, o conselho conseguiu captar R$ 4 milhões para o exercício de 2017, o que dará um pouco de fôlego para algumas ONGs seguirem com suas atividades.

A Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), através de sua assessoria de imprensa, informa “que não está medindo esforços para garantir as condições de funcionamento das entidades conveniadas. Por conta da crise econômica, alguns convênios foram suspensos, mas os Núcleos de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Nacas) e abrigos foram mantidos, totalizando 16 instituições. Nesse sentido, a SECTDS, em parceria com a Loterj, vem realizando constantes repasses para regularizar essa situação”.

Colaborou: Gabriel Faro, do Atados

Claudia Silva Jacobs

Carioca, formada em Jornalismo pela PUC- RJ. Trabalhou no Jornal dos Sports, na Última Hora e n'O Globo. Mudou-se para a Europa onde estudou Relacões Políticas e Internacionais no Ceris (Bruxelas) e Gerenciamento de Novas Mídias no Birkbeck College (Londres). Foi produtora do Serviço Brasileiro da BBC, em Londres, onde participou de diversas coberturas e ganhou o prêmio Ayrton Senna de reportagem de rádio com a série Trabalho Infantil no Brasil. Foi diretora de comunicação da Riotur por seis anos e agora é freelancer e editora do site CarnavaleSamba.Rio. Está em fase de conclusão do portal cidadaoautista.rio. E-mail: claudiasilvajacobs@gmail.com

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