No ano passado, pesquisa da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) revelou que 33 milhões brasileiros enfrentavam situação de fome no país, onde, no total, 125 milhões sofriam com algum tipo de insegurança alimentar – leve, moderada ou grave. O aprofundamento da análise da pesquisa – o 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) – escancara o impacto discriminação racial e de gênero ao apontar que uma em cada cinco famílias chefiadas por pessoas autodeclaradas pardas ou pretas no Brasil sofre com a fome (17% e 20,6% respectivamente) – o dobro em comparação aos lares chefiados por pessoas brancas (10,6%). A situação é mais grave quando se leva em conta o gênero: 22% dos lares chefiados por mulheres autodeclaradas pardas ou pretas sofrem com a fome, quase o dobro em relação a famílias comandadas por mulheres brancas (13,5%).
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Os dados foram coletados dados através de entrevistas presenciais em 12.745 domicílios, distribuídos em 577 municípios brasileiros, localizados em áreas urbanas e rurais das cinco macrorregiões do Brasil, compondo uma amostra com representatividade nacional. “A situação de insegurança alimentar e fome no Brasil, que foi denunciada ao mundo pelo II Vigisan, em 2022, ganha maior nitidez agora. A falta de alimentos e a fome são maiores entre as famílias chefiadas por pessoas negras, principalmente mulheres negras. Precisamos urgentemente reconhecer a interseção entre o racismo e o sexismo na formação estrutural da sociedade brasileira, implementar e qualificar as políticas públicas tornando-as promotoras da equidade e do acesso amplo, irrestrito e igualitário à alimentação”, afirma a professora Sandra Chaves, coordenadora da Rede Penssan.
O 2º Vigisan foi conduzido pelo Instituto Vox Populi, entre novembro de 2021 e abril de 2022, com apoio das organizações Ação da Cidadania, ActionAid, Ford Foundation, Fundação Friedrich Ebert Brasil, Ibirapitanga, Oxfam Brasil e Sesc São Paulo. “Os números colocam abaixo qualquer hipótese delirante de que há direitos e oportunidades iguais para pessoas brancas e negras nesse país, e ainda reforça a necessidade de reflexão sobre qual é o contexto do acesso à educação e trabalho quando nos referimos às populações negras. Quais obstáculos as mulheres negras enfrentam diariamente para escalarem a pirâmide social e sustentar suas famílias?”, questiona a diretora programática da ActionAid, Ana Paula Brandão. “A pandemia da Covid-19 só escancarou o que já estava latente: o racismo e sexismo que historicamente aprofundam as desigualdades deixaram a população negra, especialmente as mulheres, ainda mais vulnerável economicamente”, frisa.
Os resultados deste suplemento da pesquisa foram divididos em três blocos: interseccionalidade de raça/cor e sexo da pessoa de referência do domicílio e segurança Alimentar/insegurança Alimentar, segundo características sociodemográficas; análises por raça/cor autodeclarada da pessoa de referência do domicílio; e análises por gênero da pessoa de referência do domicílio. “As análises indicam mais vulnerabilidade à insegurança alimentar nas famílias brasileiras chefiadas por mulheres negras. Estes domicílios apresentaram maior proporção de condições de insegurança moderada e grave, fato que se confirma quando se aplicam outros aspectos relacionados às desigualdades (por exemplo, a escolaridade e a situação de emprego/trabalho)”, afirma o documento sobre o primeiro bloco de resultados.
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Veja o que já enviamosO recorte de raça e gênero do Vigisan 2022 mostra que a maior escolaridade (quando a pessoa no comando da família tem 8 ou mais anos de estudo) não protegeu as famílias de mulheres negras da falta de alimentos. Um terço delas (33%) sofrem com insegurança alimentar moderada ou grave, comparado com 21,3% de homens negros, 17,8% de mulheres brancas e 9,8% de homens brancos. “Entre as inúmeras reflexões instigadas pelos novos números, nos chama atenção o fato de que mesmo quando têm condições socioeconômicas similares aos outros grupos, as mulheres negras têm piores índices de segurança alimentar. Por exemplo, a maior escolaridade não foi suficiente para blindar as famílias comandadas por mulheres negras da falta ou piora da qualidade dos alimentos”, aponta a historiadora Ana Paula Brandão, da ActionAid. .
A situação de emprego e trabalho também influenciou a segurança alimentar das famílias no final de 2021 e início de 2022, segundo a cor da pele autodeclarada da pessoa responsável. Onde havia desemprego ou trabalho informal, a fome se fez presente na metade dos lares chefiados por pessoas negras, comparado com um terço dos lares chefiados por pessoas brancas. Na condição de desemprego, a insegurança alimentar grave, ou seja, a fome, foi mais frequente em domicílios chefiados por mulheres negras (39,5%) e por homens negros (34,3%).Quando a pessoa responsável pelo domicílio tinha emprego formal, e a renda mensal familiar era superior a 1 salário mínimo per capita (SMPC), a segurança alimentar se fez presente em 80% dos lares chefiados por pessoas brancas e em 73% dos chefiados por pessoas negras.
No bloco com foco nas análises pelo recorte de raça/cor, os pesquisadores constataram que, quando a pessoa responsável pelos domicílios se encontrava desempregada ou em trabalho informal, foi encontrada prevalência mais alta de insegurança alimentar tanto nos lares chefiados por pessoas brancas (61,8%) como negras (78,5%), com maiores proporções de insegurança alimentar grave (fome) + moderada em famílias chefiadas por pretos e pardos, respectivamente com 52,3% e 49,3% em situação de fome. A desigualdade se repete nas famílias em segurança alimentar: na análise a partir da condição de trabalho formal da pessoa de referência do domicílio e renda mensal familiar superior a 1 salário mínimo per capita, 80% dos lares chefiados por pessoas brancas estavam em segurança, enquanto apenas 73% dos chefiados por pessoas pardas/pretas se encontravam na mesma condição.
A desigualdade também fica escancarada nas análises por sexo: a pesquisa indica que a fome era a realidade de 25,9% das famílias chefiadas por mulheres com menos escolaridade (sem escolaridade/menos de 8 anos de estudos), e em 29,1% dos domicílios em que a mulher responsável estava desempregada ou com trabalho informal. Nos lares chefiados por homens, foi registrada maior proporção de segurança alimentar, mesmo diante da menor faixa de renda domiciliar per capita (homens: 18,9%; mulheres 15,3%). Sobre o endividamento das famílias diante da pandemia de Covid-19, a insegurança alimentar grave, que retrata a fome, foi mais encontrada nos lares chefiados por mulheres (29,1%) do que naqueles chefiados por homens (21,4%). “Os resultados apresentados neste suplemento exemplificam como o racismo e o sexismo, aspectos estruturais da sociedade brasileira, penalizam fortemente as pessoas negras e as mulheres, também no âmbito da alimentação”, destaca o documento.
Crianças em insegurança alimentar
Os dados do 2º Vigisan apontam ainda que a fome foi uma realidade para 23,8% das famílias que tinham crianças menores de 10 anos de idade e eram chefiadas por mulheres negras. Neste grupo, apenas 21,3% dos lares encontravam-se em segurança alimentar, menos da metade do que foi encontrado nos lares chefiados por homens brancos (52,5%) e quase metade do que ocorre nos domicílios chefiados por mulheres brancas (39,5%). Em domicílios com moradores menores de 10 anos de idade, a segurança alimentar foi 1,6 vez menos frequente nos domicílios chefiados por pessoas pardas e duas vezes menor nos domicílios chefiados por pessoa preta.
O relatório também destaca outro aspecto da desigualdade de raça/cor e gênero: o endividamento em decorrência da pandemia de Covid-19 foi relacionado às formas severas de insegurança alimentar (moderada + grave) em mais da metade dos lares chefiados por pessoas pretas (54,5%) e pardas (51,7%), e, em menor frequência, nos domicílios em que as pessoas de referência eram brancas (40,8%). A insegurança alimentar moderada + grave em famílias com renda familiar mensal superior a 1/2 salário mínimo per capita e com filhos acessando o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar), foi constatada em 18,1% dos lares chefiados por pessoas negras, representando esta prevalência o dobro da observada em famílias chefiadas por pessoas brancas (insegurança alimentar moderada + grave = 9,4%).
A Rede Pensann afirma, nas considerações finais, que o suplemento busca contribuir para “o enfrentamento das iniquidades e discriminações presentes na sociedade brasileira, expressas também pela baixa valorização do trabalho, pelo valor desigual do salário, pelo grau mais elevado de informalidade na ocupação e pela instabilidade no acesso à renda vivenciada por mulheres negras e por negros”. Na visão da rede, “esses fatores contribuem para maior vulnerabilidade à IA nas famílias chefiadas por mulheres, sobretudo as autodeclaradas pretas ou pardas”.
O suplemento testemunha a vulnerabilidade da maior parte das famílias brasileiras chefiadas por mulheres negras e expõe os componentes do racismo estrutural. “Ninguém deveria passar fome. É urgente que o Estado retome, aprimore e construa instrumentos e políticas públicas voltadas para essas populações. Temos potência e devemos usá-la para a rápida reconstrução do tecido social, profundamente impactado pelas sucessivas violências a que estamos expostas no país. Esse é um problema de toda a sociedade, que afeta presente e futuro de todos”, afirma a diretora da ActionAid. “As mulheres negras estão no centro do que chamamos de economia do cuidado e, por isso mesmo, acabam sendo sobrecarregadas e atropeladas pelas desigualdades de oportunidades e acesso a direitos”, enfatiza.