Mesmo os mais entusiasmados otimistas não têm como deixar de reconhecer que o aumento das desigualdades no mundo contemporâneo está, de alguma maneira, relacionado às vertiginosas mudanças tecnológicas pelas quais passa a economia global. Esta correlação é paradoxal. Em tese, a revolução digital colocou nas mãos das pessoas dispositivos cada vez mais poderosos, conectados em rede e operando de forma inteiramente descentralizada. Baixou os custos de transação, ampliando os potenciais de acesso à informação e aos mercados. Em outras palavras, à primeira vista, computadores, internet, nuvens e big data deveriam ampliar e não reduzir o poder dos indivíduos, incluindo aí, claro, o poder sobre a própria riqueza. Um catador de resíduos sólidos, ou um agricultor familiar num local distante pode aumentar suas chances de inserção em mercados e seu poder de negociação graças às tecnologias digitais e, sobretudo, a seu cada vez mais rápido funcionamento em rede.
[g1_quote author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Se existe alguma luz no fim deste túnel, tudo indica que ela não está na própria tecnologia e sim na democratização do sistema educacional, na promoção de políticas territoriais que reduzam as desigualdades e na ampliação dos direitos dos mais pobres.
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Veja o que já enviamosO relatório de 2016 do Banco Mundial é rico em casos que ilustram estas vantagens. Além disso, como mostra o trabalho recente da Fundação Ellen McArthur, o impressionante avanço da internet das coisas (ou seja, a conexão em rede não apenas de computadores e smartphones, mas de quantidade crescente de objetos, desde eletrodomésticos até automóveis, passando por máquinas industriais e dispositivos médicos), abre caminhos inéditos para o rastreamento dos produtos e para a ambição de que bens e produtos sejam oferecidos sobre a base do consumo cada vez menor de materiais, de energia e de recursos bióticos. Dentro de quatro anos, computadores, tablets e smartphones corresponderão a apenas 17% das conexões por internet. A esmagadora maioria virá de objetos como roupas e utensílios domésticos, como mostra um relatório da DHL e da CISCO publicado em 2015.
Mas apesar de suas inegáveis virtudes, estas formas descentralizadas de interação encontram-se na raiz de alguns dos mecanismos que fizeram com que a riqueza e o poder se concentrassem de forma inédita. Claro que os motivos para esta concentração não se reduzem aos impactos da era digital e se explicam também, sobretudo nos EUA, pelo encarecimento do acesso ao ensino superior, pela criminalização das drogas e o encarceramento massificado, que elimina, por meio do estigma, milhões de pessoas do mercado de trabalho, pelo encarecimento dos custos da saúde e pela redução da carga tributária dos mais ricos. O que chama a atenção, entretanto, é o contraste entre os impactos sociais altamente positivos das inovações que marcaram os países desenvolvidos durante os primeiros três quartos do Século XX (eletrificação, acesso a água, saneamento básico, redução da carga de trabalho doméstico, transporte de qualidade e meios de comunicação como rádio e TV) e os efeitos paradoxalmente concentradores da revolução digital.
A revolução digital opera numa lógica que os especialistas chamam de “o vencedor leva tudo” (ou “the winner takes all”). No futebol, por exemplo, antes da era digital, as pessoas admiravam os ídolos que estavam a seu alcance nos campeonatos estaduais. Da mesma forma, apesar dos astros nacionais, artistas locais tinham reconhecimento social que lhes permitia algum grau de profissionalização. A era digital abre caminho para a “economia dos supestars”, expressão usada por Sherwin Rosen em artigo de 1981. Acompanhar o Barcelona e consumir de forma barata não os produtos locais, mas aqueles considerados os de melhor reputação no plano global amplia o mercado para estes astros e, ao mesmo tempo, reduz o espaço dos de menor prestígio. “Pessoas não vão gastar tempo e esforço na procura do décimo melhor produto, quando elas têm facilmente acesso ao melhor”, explicam Eric Brynjolfsson e Andrew McAfee, num dos mais citados livros recentes sobre este tema. Isso se aplica também aos executivos e aos próprios empreendedores: embora criar um aplicativo voltado a melhorar o trânsito esteja ao alcance de muita gente, somente o Waze foi comprado pela Google por bilhões de dólares. Embora a economia dos superstars tenha poucas barreiras de entrada, ela provoca muito mais desigualdade que a da era industrial.
Mas o segundo mecanismo pelo qual a revolução digital tem inédito potencial de concentrar renda e poder refere-se ao mercado de trabalho. Nos Estados Unidos, nada menos que 47% dos empregos estão ameaçados pela automação da era digital, segundo relatório publicado ano passado pela Oxford Martin School e pelo Citi. Mais recentemente, esta pesquisa se ampliou para países em desenvolvimento e os números são ainda mais impressionantes. Na média dos países da OCDE a revolução digital ameaça 57% dos postos de trabalho. Na Argentina, a proporção chega a 65%, na China a 77% e na Etiópia a 85%.
Claro que muitos dos trabalhadores deslocados por estas novas formas de mecanização acabarão por encontrar ocupação em outras atividades. O que desperta preocupação nos especialistas é que estas novas formas de automação não atingem apenas os trabalhos manuais, mas todas as atividades que envolvem previsibilidade e que, enquanto tal, podem ser substituídas pelo extraordinário avanço da robotização e da inteligência artificial. Aí os especialistas se dividem. Os autores dos trabalhos da Oxford Martin School e do Citi julgam que a interação entre homens e máquinas abre caminho a empregos mais interessantes e melhores que os existentes nos dias de hoje. Já Martin Ford oferece dados persuasivos mostrando a crescente dissociação entre crescimento da riqueza e a capacidade de o mercado de trabalho garantir a distribuição minimamente equitativa de seus frutos. Contrariamente ao que ocorreu no início do Século XX, quando os trabalhadores deslocados pela mecanização agrícola nos Estados Unidos encontravam empregos melhores em setores que estavam na ponta da inovação da época (a começar pela indústria automobilística), hoje tudo indica que a estrutura norte-americana de emprego esteja consolidando uma forma perversa de dualização, em que os empregos criados são fundamentalmente os de mais baixa qualificação e mais suscetíveis a serem deslocados pela inovação tecnológica.
Se existe alguma luz no fim deste túnel, tudo indica que ela não está na própria tecnologia e sim na democratização do sistema educacional, na promoção de políticas territoriais que reduzam as desigualdades, na ampliação dos direitos dos mais pobres (o que passa pelo fim da guerra às drogas e por mudanças radicais nas políticas repressivas que a acompanham), na tributação dos mais ricos e em generosas e criativas políticas de renda mínima que juntem a garantia da sobrevivência com formas criativas e inteligentes de valorizar a aprendizagem e a convivência social.