Houve um tempo em que o som de flautas, teclados e do canto doce das crianças ecoavam retumbantes pelo morro do Cantagalo, em Ipanema. Hoje, a melodia dos jovens talentos é abafada pelo barulho ruidoso da violência e pelo silêncio doído do desamparo. O projeto que deu voz às crianças da comunidade da Zona Sul carioca começou em 1999 e atravessou muitos revezes ao longo desses 18 anos. Surgiu com as irmãs do Colégio Notre Dame, que desenvolviam atividades na comunidade, onde fica a Capela Nossa Senhora de Fátima, e pensaram em ensinar música às crianças e adolescentes do morro. A primeira decisão foi contratar uma professora: Cássia Oliveira. “Quando cheguei à escola, soube que não era para trabalhar lá, mas no Cantagalo. Eu nunca tinha subido numa comunidade”, lembra Cássia, nascida e criada em Petrópolis, na região serrana do Rio de Janeiro.
[g1_quote author_name=”Cássia Oliveira” author_description=”professora da Harmonicanto” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Quando entrei na igrejinha, havia 60 crianças me esperando. Foi uma sensação incrível. Percebi que tinha achado o meu lugar
[/g1_quote]As aulas de música eram no porão da capela. “Quando entrei na igrejinha, havia 60 crianças me esperando. Foi uma sensação incrível. Percebi que tinha achado o meu lugar”, lembra a professora, que enfrentou aperto logo no primeiro dia. “Não tinha nenhuma afinidade com percussão. Era professora de canto, flauta doce e teclado. E a freira olha pra mim e fala: ‘Toca um pandeiro pra eles’. Pensei: ‘Nem comecei e já vou ser despedida’. Olhei para a garota maior e pedi: ‘Deixa eu ver o seu ritmo’. A menina tocava um pandeiro que era uma beleza! ‘Olha irmã, já temos uma percussionista’. E aprendi muita coisa com eles”.
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Veja o que já enviamosNo início do projeto, as aulas eram somente aos sábados. Mas a procura era tanta que Cássia se viu obrigada a aumentar a carga de trabalho. “No final de 1999, já estava trabalhando cinco vezes por semana”. Mas, em 2006, com a chegada do “Criança Esperança” ao Cantagalo, as freiras encerraram o projeto. “Decidiram levar para outra comunidade. O que fazer? Ir embora com tanta criança maravilhosa, tanto talento? Eu não queria deixar a comunidade”, conta Cássia.
A opção foi pedir socorro nas redes sociais, para manter o projeto vivo. Os apelos deram resultado. “Comecei a receber roupas para fazer bazar, instrumentos, tanta coisa… Mas não tinha onde botar”, recorda a professora, que resolveu a questão de forma surpreendente: “Aluguei a casa onde morava, na Tijuca, e me mudei para a comunidade, para fazer o projeto na minha nova casa”.
Em 6 de abril de 2006, juntamos os familiares dos alunos, a Rosana (Mendes de Souza Costa, coordenadora do projeto) já estava junto, fui professora dos filhos dela. Aí nasceu o ‘Harmonicanto, música e cidadania’, sem nenhum tostão”. Era uma casinha de quarto e sala, mas tinha lugar para os instrumentos, prateleiras com livros e brinquedos. “As crianças adoravam. Ficavam até 11 da noite”.
Em 2007, Cássia já tinha 135 alunos. “Cabia? Não. Ficavam 10 mexendo em livros, seis com brinquedos, oito na flauta… Saía um grupo entrava outro. No final do ano, tínhamos 21 crianças tocando flauta. Só do Cantagalo”.
Em dezembro de 2009, uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) foi instalada no morro e os constantes tiroteios, praticamente, acabaram. O morro passou a viver uma nova realidade. As pessoas do asfalto correram para conhecer a comunidade vizinha, que antes era zona proibida. E os turistas, com suas câmeras digitais, se aventuraram pelos becos e vielas da favela, de onde se tem uma deslumbrante vista.
Os moradores resolveram faturar em cima do potencial turístico do morro: montaram restaurantes, pousadas, e cada metro quadrado da comunidade foi valorizado, levando à especulação imobiliária. “As pessoas passaram a alugar as casas. E pediram a minha, quando o contrato acabou”, conta Cássia. Não dava para renovar. O preço era outro. A professora perdeu, mais uma vez, seu espaço na comunidade. Ela teve proposta para levar o projeto para o subúrbio, no bairro do Engenho Novo, e quase aceitou.
[g1_quote author_name=”Cássia Oliveira” author_description=”Professora do Harmonicanto” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]No ano passado, pedimos voluntários para o reforço escolar. Foram mais de 100 inscritos, mas voltaram os tiroteios e ninguém quer arriscar a vida para vir ajudar
[/g1_quote]“Mas, no dia 27 de dezembro de 2012, fui chamada pelo capitão Sena, que era o comandante da UPP, na época. Ele tinha visto as crianças cantando na Alerj e me disse que o projeto não podia sair da comunidade”. A princípio, o capitão ofereceu um espaço dentro da sede da UPP. Porém, tanto Rosana quanto Cássia sabiam que antes da chegada da UPP, a Polícia Militar ocupava uma área no “Brizolão”, como é conhecido o Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) João Goulart, onde estão concentrados os projetos sociais da favela. Pediram o espaço. A área tem 184 metros quadrados, somente na parte de baixo, onde acontecem as atividades. Tem ainda uma varanda, onde foi feita uma horta, e de onde se avista o mar e a Lagoa Rodrigo de Freitas. Outra vantagem do espaço é o acesso, que pode ser feito pelo elevador da Rua Alberto de Campos.
Desde o nascimento, no porão da capela, o Harmonicanto atendeu mais de 900 crianças e realizou 324 apresentações. Em 2013, chegou a receber R$220 mil de doações de pessoas físicas e jurídicas. Também teve muitos parceiros ao longo da sua jornada, mas agora mal consegue manter de pé seus dois principais programas. O primeiro, é a oficina, que funciona das 13h às 17h, onde as crianças e adolescentes, além de música (canto, percussão e flauta doce) também têm aulas de reforço escolar e artes, aprendem a cuidar de uma horta, participam de um programa de incentivo à leitura, de jogos pedagógicos e da roda da cidadania.
E tem, ainda, o projeto “Conjunto Harmonicanto”, com aulas de canto, coral, técnica de conjunto, teclado, flauta doce e percussão, visando apresentações. “Enfrentamos muitas dificuldades financeiras. Desde setembro de 2015, não conseguimos receber salário, porque não tem doador. Sofremos com isso”, lamenta Cássia, que se viu obrigada a demitir a única funcionária que ajudava com os serviços gerais. Sobraram apenas ela e Rosana. “No ano passado, pedimos voluntários para o reforço escolar. Foram mais de 100 inscritos, mas voltaram os tiroteios e ninguém quer arriscar a vida para vir ajudar. Além de tudo, o elevador estava parado”, reclama a professora.
O Harmonicanto, atualmente, tem 30 alunos. As aulas acontecem apenas no período da tarde. O espaço precisa de reformas, que não podem ser feitas por falta de verba: as janelas, por exemplo estão sem vidros. Quando chove, molha tudo; o estúdio com isolamento acústico não pode ser usado, porque é necessária uma reforma elétrica para ligar o ar condicionado, entre outros problemas. “Calculamos que seriam necessários R$200 mil, por ano, para atender 50 crianças, R$12 mil por mês”, diz Cássia, que tem recebido cerca de R$ 4 mil por mês de doações. Para melhorar a arrecadação, o Harmonicanto lançou a campanha “Abrace uma criança”, pedindo doações entre R$ 20,00 a R$ 400,00. “Está fraco. Temos dois sócios de 400,00. E temos uma mulher, que não sabemos quem é, que dá R$ 700,00 por mês”, conta Cássia, lembrando que um grupo de militares da FAB também ajuda, doando alimentos para o lanche da garotada.
Mas nenhum obstáculo é capaz de deter a professora de música. Ela acredita que, um dia, o som das flautas abafará o dos tiros e a solidariedade vai se sobrepor à indiferença. “Sou movida a sonhos”.