ODS 1
Diálogo com moradores de rua
Projeto Ruas - Ronda Urbana de Amigos Solidários
Toda terça-feira, um grupo formado em sua maioria por jovens sai às ruas de Botafogo e Leblon, Zona Sul do Rio, com uma missão: dar assistência social à população de rua. Os voluntários chegam por volta das 22h. Levam roupas, comida e propostas de inclusão social. Depois de meia-noite, quando todos avaliam como foi o encontro, fica nítida a impressão de que, se eles foram levar apoio e ensinamentos, sabem que receberam mais do que doaram no que se refere às lições da vida.
Na rotina de trabalho, os dois grupos de voluntários do Projeto Ruas (Ronda Urbana de Amigos Solidários) encontram-se pouco depois das 21h, antes de seguirem para seus destinos na Rua Nelson Mandela, em Botafogo, e na Praça Cazuza, no Leblon. Durante a prévia, os coordenadores explicam como será a abordagem e orientam novatos.
Explica-se que o trabalho não tem fim político nem religioso. É importante que não se prometa nada, não se dê dinheiro nem se tire nada do próprio corpo para doar, mesmo que tenha um igual em casa. Os voluntários seguem então para o que chamam de dinâmica, munidos com as doações, sopas e sucos, além de outros itens de alimentação.
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Veja o que já enviamosO Colabora acompanhou o grupo na Praça Cazuza. Havia poucos moradores de rua, situação que os voluntários mais experientes não souberam explicar com exatidão. Mas se reduziu o potencial de abrangência, o contato mais intimista proporcionou grande troca de experiências.
M., 40 anos, o mais falante, tenta explicar por que mora nas ruas mesmo tendo família: “Meu vício não é o roubo. Meu vício não é a droga. Meu vício não é a putaria. Meu vício é a pista. Aqui a gente aprende a se defender”; I., 23 anos, rebate: “Mas na comunidade não tem maldade? A gente sabe entrar e sair de lá”; I. diz ainda que as pessoas têm capacidade de fazer qualquer coisa. Basta ter respeito. M. conta que teve muitos amigos de comunidade que morreram. Já se envolveu com coisa ruim, foi preso, tem dois filhos que não vê e não quer ficar na rua “velhinho”. I. afirma que na rua aprendeu uma coisa muito importante: “A respeitar os outros, a não mexer nas coisas dos outros”.
Única mulher do grupo, V. lembra que a mãe sempre a mandava estudar, mas ela vivia matando aula. “Até que engravidei e deixei a escola”. M. reclama que “a crise tá braba, tá ruim pra arrumar 1 real”. Diz que quando morava no morro “roubava era tudão”. I. interveio: “Posso falar a verdade: até hoje continuo aprendendo”.
Mãe: mestre na vida
Os três apontaram a mãe como a maior mestre na vida. Um senhor chega mais tarde. Tem casa, mas pede uma sopa e começa a falar dos tempos em que foi professor de biologia. Dois ou três não participaram da conversa, apenas comeram e se dispersaram. Ao final da dinâmica, os voluntários, em círculo, fizeram uma avaliação das demandas e do encontro.
Na penúltima terça-feira do mês, a ronda é itinerante, para que a população de rua de outros lugares possa conhecer o projeto. Paola de Savo, que cuida da área de imprensa e atua em Botafogo, conta que lá existem muitas crianças, a maior parte delas agora engajadas no projeto de encenar uma peça de teatro. “Íamos fazer o Mágico de Oz, mas não tinha a ver com a realidade deles. Aí, montamos um roteiro e pronto. Eles querem demonstrar algo para a sociedade”, explica Paola.
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A abstenção de drogas é uma provação física difícil, com grande taxa de desistência no início do tratamento. O vício da rua é a sensação de falsa liberdade, que, na verdade, é cheia de restrições (alimentares, de segurança, de acesso a locais). Eles são recuperados através de disciplina, horários, atividades e orações
[/g1_quote]O Ruas também realiza projetos extra-ronda, de acordo com as demandas, encaminhando as pessoas atendidas para instituições terapêuticas e reintegração social. Para os casos de dependência química em que os atendidos demonstram interesse em superar vícios, há contato com unidades de recuperação, entre elas o Maranatha e Varão Valoroso.
“A abstenção de drogas é uma provação física difícil, com grande taxa de desistência no início do tratamento. O vício da rua é a sensação de falsa liberdade, que, na verdade, é cheia de restrições (alimentares, de segurança, de acesso a locais). Eles são recuperados através de disciplina, horários, atividades e orações”, esclarece Larissa Monte.
Segundo Larissa, há uma etapa posterior de reintegração social, com a regularização da documentação, busca de emprego e de casa e mobília. Todo o processo é facilitado por voluntários do Ruas, com informações, contatos e doações. “Para os atendidos, nosso apoio tem sido fundamental, pois, ao acreditarmos neles, eles passam a acreditar em si mesmos e em seu poder de superação. Esse é o ponto forte desse projeto”, diz Larissa.
Choque de amor
Há ainda o Projeto Ponte, complementar ao das casas de recuperação e reinserção social. A primeira perspectiva é investir na moradia individual, para que a pessoa tenha possibilidade de espaço para seus pertences e experiência de privacidade. A segunda perspectiva foca na redução de danos. “Entendemos que a responsabilidade de uma casa e um trabalho ocupa o tempo das suas vidas que antes era preenchido com o uso de drogas”, afirma Larissa.
Outra iniciativa é a Campanha Choque de Amor, focada na redução das remoções forçadas e do recolhimento de pertences da população em situação de rua em períodos de megaeventos. “Atuamos durante as Olimpíadas com três eixos de ação: prevenção, denúncia e proteção”, esclarece Larissa, acrescentando que o grupo está investindo na elaboração de um calendário de eventos para 2017, buscando diálogo com a sociedade civil e capacitação dos participantes. “O bem-estar e a capacitação de nossos voluntários é tão importante para nós quanto o bem-estar e a capacitação da população em situação de rua, dos atendidos”.
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Marcelo Ahmed é um jornalista carioca que começou a carreira em jornais impressos, passando por 'Ultima Hora', 'Tribuna da Imprensa', 'Jornal do Brasil' e 'O Dia'. Foi para a 'TV Globo' para trabalhar no Linha Direta, rodando pelo jornalismo diário, Fantástico e G1. Seu último emprego foi como assessor-chefe da ASCOM do Ministério Público do Rio. Tem dois prêmios Tim Lopes de Jornalismo Investigativo e uma Comenda da Paz por trabalhos em Direitos Humanos. E já é vovô de Théo.