ODS 1
Passos rápidos na luta contra a exclusão e a violência
Vida Corrida
Por meio de pisadas no asfalto esburacado do Capão Redondo, a baiana Neide Santos empodera mulheres e leva uma atividade de lazer e educação para crianças, ajudando a afastá-las da violência. A Vida Corrida, ONG idealizada por ela, atende gratuitamente a 320 adultos (80% do sexo feminino) e 300 meninos e meninas do bairro da periferia de São Paulo. Os alunos têm aulas de atletismo e condicionamento físico, aprimorando a técnica de corrida a ponto de estarem preparados para disputar uma maratona.
Para chegar até aqui, no entanto, Neide enfrentou longa jornada de dificuldades, que resultaram tanto no aprimoramento da iniciativa como no seu desenvolvimento pessoal. “Quando o Vida Corrida se tornou projeto oficial, em 2009, não tinha noção do que era feminismo, resiliência ou empreendedorismo. Não entendia nada de políticas públicas e sequer sabia o que era uma instituição não governamental. Era apenas uma líder comunitária que ajudava as pessoas”, diz.
[g1_quote author_name=”Neide Santos” author_description=”Idealizadora da ONG Vida Corrida” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Nos últimos anos, aumentaram os problemas de hipertensão, sobrepeso e diabetes entre as mulheres do Capão Redondo. A corrida melhora a qualidade de vida e a autoestima delas
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Veja o que já enviamosEm 1974, ainda criança, Neide participou de uma competição na região sul da capital paulista, onde fica o Capão Redondo. Era atleta do handebol, mas uma corredora do revezamento 4 x 100m faltou. Neide, veloz e ágil, foi escalada para substituí-la. “Participei da prova, chegamos em primeiro e fiz o melhor tempo do dia”, afirma. Após a façanha, Neide foi chamada para treinar atletismo em um centro de alto rendimento, onde se orgulha de ter conhecido João do Pulo e Adhemar Ferreira da Silva (ambos medalhistas olímpicos no salto triplo). “Meu sonho era correr nos Jogos Olímpicos”.
O desejo não pôde ser realizado. Nascida em Porto Seguro, de família pobre, Neide foi dada para a adoção e levada para São Paulo. Aos 16 anos, voltou a morar com a mãe biológica e mais seis irmãos: “Comecei a trabalhar e não tinha mais tempo para me dedicar ao atletismo como antes, mas o sonho ficou armazenado”.
[g1_quote author_name=”Neide Santos” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”simple” template=”01″]Quando meu marido morreu, consegui superar. Com meu filho, foi mais difícil, perdi o chão, perguntava por que aquilo foi acontecer comigo, que ajudava tanto as pessoas
[/g1_quote]Neide se embrenhou então no universo das corridas de rua. Disputou de forma amadora inúmeras provas, entre elas maratonas e a tradicional São Silvestre. No início da década de 80, sofreu um grande baque: seu marido, negro, foi assassinado pela polícia ao sair do trabalho, supostamente ao não obedecer a uma ordem dos agentes.
Mais uma vez, ela não abandonou a corrida e, alguns anos depois, nascia o embrião de sua ONG. “Ajudava uma senhora da comunidade, que tinha 60 anos, a treinar. Diziam que estava velha. Outras mulheres foram aparecendo para correr comigo, sempre bem cedo, das 6h às 7h30, pois precisava trabalhar depois. Em 1998, já tínhamos um grupo de 30 pessoas”, explica Neide, que trabalhava como costureira e decoradora.
Ela conta que, na periferia, muitas vezes a prática esportiva fica restrita ao futebol dos homens. “Nos últimos anos, aumentaram os problemas de hipertensão, sobrepeso e diabetes entre as mulheres do Capão Redondo. A corrida melhora a qualidade de vida e a autoestima delas”.
Mas no final de 2000 um duro golpe a atingiu novamente. Seu filho mais velho foi assassinado em um assalto. “Quando meu marido morreu, consegui superar. Com meu filho, foi mais difícil, perdi o chão, perguntava por que aquilo foi acontecer comigo, que ajudava tanto as pessoas”. Em depressão, deixou de ir trabalhar e treinar. Dessa vez parecia que suas passadas chegariam ao fim.
Novamente Neide não desistiu. Incentivada por amigas, atendeu a um pedido do filho que perdera: “Ele queria trazer as crianças do Capão Redondo para o projeto, uma forma de ocupá-las após o horário da escola e afastá-las de influências negativas”.
A energia dos garotos da comunidade fez Neide recuperar a alegria. O futuro reservava ainda boas surpresas. Em 2009, inscreveu seu projeto em um concurso da Nike que premiava ações de empreendedorismo social. O Vida Corrida venceu. O valor recebido foi pouco, mas ajudou a estruturar a ONG, que, a partir dali, conseguiu uma ajuda de custo vitalícia fornecida pela marca de material esportivo.
Atualmente, Neide não precisa mais trabalhar como costureira. Um empresário que se encantou com o projeto decidiu pagar um salário para a corredora se dedicar integralmente a seus alunos.
A criadora da ONG frisa que os treinos não são feitos para formar atletas de alto rendimento: “As crianças praticam atletismo e se divertem ao ar livre, ao mesmo tempo. Por causa da violência, elas passam muito tempo em casa, no celular e jogando videogame”. Em quase 10 anos de iniciativa, a baiana conta, emocionada, que seus alunos já participaram de eventos esportivos e culturais, foram a estádios, viram provas dos Jogos Olímpicos e deram entrevistas.
O Vida Corrida serve, ainda, para unir e dar oportunidade de trabalho para a comunidade. Hoje, o projeto conta com seis professores assalariados e 17 voluntários. A maioria dos voluntários, professores e alunos são do Capão Redondo. Às vezes, fica tudo em família. A moradora Giuliana Faria e Silva conta que ao observar sua filha, Anna Julia, participar do projeto, decidiu começar a treinar: “Estava deprimida. Agora, estou muito melhor. Ano passado, fiz minha primeira prova de 5 km, sem parar de correr em nenhum momento”.
O filho de Giuliana, João Vitor, também entrou para o Vida Corrida. Hoje, cursando Educação Física, tornou-se monitor. “Não teríamos condições de pagar para as crianças praticarem um esporte. O projeto é muito bom para o Capão Redondo”, diz a moradora.
Ao fim, o antigo sonho de correr nos Jogos Olímpicos de certa maneira se realizou. Em 2016 a baiana participou do revezamento da tocha olímpica em São Bernardo do Campo (SP). Um reconhecimento a sua luta. “Antes, só havia notícia ruim sobre o Capão Redondo. Agora, não. Tem muitas coisas boas acontecendo por aqui. O Vida Corrida é minha razão de viver”.
Denis Kuck é jornalista desde criança, quando acompanhava o pai repórter nas sessões da CPI do PC, em Brasília. Anos depois, formou-se pela UFRJ, foi assistente do escritor Fernando Morais e trabalhou nas redações do Ciência Hoje, O Globo, Agência EFE e do irreverente Perú Molhado, de Búzios. Recentemente, no Comitê Rio 2016, foi editor/repórter do jornal distribuído dentro da Vila Olímpica, o Village Life. Atualmente, é freelancer e editor do Notícias em Português, publicação de Londres.