É um vai e vem de caminhões sem fim. Não para nem à noite, quando os moradores de Barra Longa vão dormir. Distante 172 quilômetros de Belo Horizonte, ela é uma das 30 cidades atingidas pela lama de rejeitos da Samarco. O tráfego intenso de veículos pesados desfez até o asfalto das ruas – refeito, recentemente, com blocos de rejeitos de minério, pela própria empresa. Barra Longa virou um canteiro de obras a céu aberto. A rapidez com que a intervenção urbanística vem ocorrendo transformou a cidade numa espécie de “modelo de reconstrução” pós-desastre. O ritmo acelerado das obras esconde um lado perverso: o aumento do pó de lama, que, ao impregnar toda a cidade, passou a ser absorvido, compulsoriamente, pela população local por meio da pele e da respiração.
À medida que o tempo passa, o rompimento da barragem de Fundão vem ganhando novos contornos, além da mancha marrom que tingiu o rio Doce e o rastro de destruição que deixou pelo caminho. Como subproduto do desastre ambiental, a população começa a sentir os efeitos colaterais da lama de rejeitos na sua saúde. Aumento de problemas respiratórios e de manchas na pele, além de um surto de dengue, engordam os dados estatísticos e epidemiológicos da cidade, às vésperas da tragédia completar, daqui a dois dias, um ano.
Riscos múltiplos
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Veja o que já enviamosComo Barra Longa não tem hospital, os doentes são obrigados a pedir socorro na cidade vizinha, Ponte Nova – o que confirma, na prática, o diagnóstico do Banco Mundial (Bird), que são os pobres os atingidos com maior intensidade por qualquer que seja o tipo de desastre.
Para remediar o dano na saúde, a Samarco instalou uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) na cidade, mas o posto não oferece serviços essenciais como pediatria, dermatologia e pneumologia.
Controlada pela brasileira Vale e a anglo-australiana BHP Billiton, a mineradora já afirmou inúmeras vezes, neste último ano, desde que ocorreu o desastre, que sua lama não é tóxica – nunca apresentou, no entanto, uma pesquisa para comprovar o diagnóstico. Afirma também que a qualidade do ar está abaixo dos parâmetros estipulados pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente), que é de 50 microgramas por metro cúbico.
A doutora em patologia Evangelina Vormittag, da USP (Universidade de São Paulo), não concorda com a avaliação da empresa. Chegou a solicitar os dados, mas não recebeu até agora nenhuma informação. Depois de muita insistência, foi informada que o levantamento havia sido entregue ao Ministério Público de Minas Gerais (MPMG). Evangelina está convencida de que “a demora na divulgação de dados sobre teor e tipos de resíduos tóxicos contidos na lama multiplica os riscos à saúde da população”.
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A demora na divulgação de dados sobre teor e tipos de resíduos tóxicos contidos na lama multiplica os riscos à saúde da população
[/g1_quote]À frente de um dos seis estudos científicos financiado pelo projeto Rio de Gente, feito em parceria com o Greenpeace, para avaliar os riscos à saúde da população afetada, Evangelina garante que os níveis de poluição do ar em Barra Longa estão acima dos parâmetros da Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 150 microgramas por metro cúbico – indicador que, segundo ela, é o mais adequado para medir poluição do ar. “Pelo parâmetro do Conama, nenhuma cidade brasileira tem o ar poluído, nem mesmo São Paulo”, diz ela, comentando que os “padrões atuais usados pelo país estão desatualizados, o que dificulta, do ponto de vista da saúde, a visualização da realidade dos fatos”.
Exposição por longo tempo
Ao contrário de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, onde a lama passou destruindo absolutamente tudo, Barra Longa e redondezas continuam de pé e o número de atingidos diretamente pelo rompimento da barragem é menor. Em compensação, estão expostas ao pó de lama por um longo período, até porque a lama não sedimenta, devido ao intenso movimento de veículos. O parque de exposições, por exemplo, chegou a ser usado pela Samarco para depositar a lama retirada das ruas. Por ser irregular, a empresa foi multada em R$ 1 milhão pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis). Até hoje não pagou um único centavo, como fez com as outras quatro multas, já que recorreu na Justiça.
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O mais cruel nesse episódio é que, no futuro, daqui uns 10 anos, por exemplo, vai ficar cada vez mais difícil correlacionar a incidência de determinadas doenças com o desastre da Samarco
[/g1_quote]Os resultados da pesquisa de Evangelina serão divulgados em janeiro, mas dados preliminares indicam que, a longo prazo, não está descartada a incidência de agravamento de doenças crônicas. “O mais cruel nesse episódio é que, no futuro, daqui uns 10 anos, por exemplo, vai ficar cada vez mais difícil correlacionar a incidência de determinadas doenças com o desastre da Samarco”. Ter um banco de dados sobre a tragédia e seus efeitos no homem e natureza é fundamental para viabilizar pesquisas que comprovem o nexo causal dos eventos.
Contaminação hídrica
Os pequenos agricultores de Governador Valadares, em Minas Gerais, e de Colatina, no Espírito Santo, continuam usando a água do rio Doce para irrigar suas hortas. Os agricultores plantam no meio da lama. Alguns temem uma eventual contaminação hídrica; outros preferem nem pensar no assunto, dada a total impossibilidade de conseguir água de outra fonte, que não seja o rio que passa perto da sua casa. André Pinheiro de Almeida, do Instituto Carlos Chagas, da UFRJ, está estudando a contaminação por metais pesados na água utilizada pelos agricultores familiares – a agricultura familiar é responsável por 80% da produção de alimentos no país. Assim como a de Evangelina, sua pesquisa está sendo bancada pelo projeto Rio de Gente e também só ficará pronta em janeiro.
Logo que chegou na região ouviu dos produtores que a água estava fedorenta e com uma coloração alaranjada. O cheiro forte vem do ferro em alta concentração e a cor laranja é culpa do manganês, que é bem mais danoso à saúde. A presença desse metal pesado pode provocar rigidez muscular, tremores da mão (doença conhecida como parkinsonismo), irritabilidade e comportamentos compulsivos.
As doenças são apenas uma das dimensões da tragédia da Samarco. Os pequenos agricultores já estão sentindo no bolso o impacto econômico da lama no seu terreno. Com o solo da área atingida infértil, a terra “cimentada” está inviabilizando a produção local de vários produtos. O café, por exemplo, morre antes de amadurecer. Quem vendia café, vai deixar de vendê-lo; e quem comprava será obrigado a ir atrás de outro fornecedor. Com o produto vindo de longe, a tendência é ficar mais caro. E assim, com o passar do tempo, o desastre da Samarco vai ganhando novos contornos.
É assustador o descaso com a população atingida. A empresa segue operando como se nada tivesse acontecido, sem pagar multas, sem ter sua licença cassada. A população pobre é mais atingida e não tem nenhum suporte. As pessoas seguem como simples objetos descartáveis em meio a governo e empresas que só pensam no seu bolso. Revoltante
Quanto mais atentamos para a amplitude dos impactos desta tragédia, mais ficamos assombrados com a insignificância que as empresas Samarco, Vale do Rio Doce e BHP Billington atribuem aos valores humanos e ambientais. Insignificância que se traduz no vagar com as providências de recuperação, com as iniciativas jurídicas para evadir-se de suas responsabilidades e com o valor modesto dos recursos destinados aos investimentos na reparação dos danos. Hoje declaram ser da ordem de R$ 20 Bilhões o valor destinado às reparações, dos quais referem haver gastos R$ 1 Bilhão neste período inicial. Quem em sã consciência pode supor que já tenham sanado 5% de todos os prejuízos causados à VIDA de todos os seres vivos do afetados?