ODS 1
Os riscos políticos da desindustrialização prematura
Dependência de commodities agrícolas e minerais leva América Latina ao quarto ano consecutivo de baixo crescimento
Em nenhum lugar do mundo foi maior que na América Latina o aumento na renda dos 40% mais pobres da população, na primeira década do milênio. No entanto, como mostra um trabalho recente do Banco Mundial este inédito surto equitativo foi efêmero: o Continente encontra-se em seu quarto ano consecutivo de baixo crescimento. Na raiz deste desempenho errático está o mau preparo da região para um “crescimento de longo prazo”. A “dependência de commodities agrícolas e minerais” está entre os componentes decisivos deste despreparo.
É verdade que o início do Século XXI entrará para a história como o período de ascensão econômica do hemisfério Sul. Mas as diferenças entre a Ásia do Leste e a América Latina nos respectivos padrões de crescimento contribuem para explicar as perdas das importantes conquistas sociais que marcaram os primeiros anos do milênio entre nós, tema cuja abordagem foi iniciada em artigo anterior, nesta coluna.
O relatório do Banco Mundial mostra que os países do hemisfério Sul representavam 20% do PIB global no início dos anos 1970 e dobraram esta proporção em 2012, com a China representando sozinha 12% do total. Os aumentos foram espetaculares também nos fluxos comerciais e destacaram-se nas exportações de manufaturados que aumentaram, entre 2000 e 2012, de 32% para 48% das vendas globais. Hoje, metade do que o mundo compra e vende em produtos industriais origina-se em países em desenvolvimento. E é exatamente aí que as coisas se complicam para a América Latina.
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Veja o que já enviamosUma classe operária numerosa apoiada em sindicatos e partidos com ela identificados é um fator decisivo de participação política, de negociação e esta foi uma das bases dos virtuosos processos que, nos países desenvolvidos, reduziram de forma expressiva as desigualdades e ampliaram direitos desde a IIª Guerra Mundial até o início dos anos 1980
[/g1_quote]É inevitável a comparação com países como Coréia do Sul, Taiwan e China que tinham renda per capita, produtividade do trabalho e grau de diversificação de suas estruturas econômicas e comerciais equivalentes ou piores que as da América Latina. O economista Lucas Mations, do IPEA, mostra que a produtividade do trabalho na América Latina (excetuando o Brasil) era quase o dobro da do Leste da Ásia, em 1960. Já nesta época, estávamos na lanterninha do Continente, um pouco abaixo do desempenho do Leste da Ásia. Em 2011 continuamos abaixo da média da América Latina e do Caribe, mas o Leste da Ásia deslanchou deixando a América Latina para trás em produtividade do trabalho. A economia brasileira cresceu, é verdade, mas seu vetor fundamental não foi o melhor desempenho de nossos trabalhadores.
No que se refere às redes regionais de comércio, até 1980, elas tinham formato muito semelhante na América Latina e no Leste da Ásia, ambas centradas em alguns poucos países dominantes. Já em 2012, mostra o Banco Mundial, o Leste da Ásia diversifica sua inserção global, o mesmo nem de longe ocorrendo com a América Latina.
Mais importante porém do que saber para quem se vende é o quê cada região coloca no fluxo do comércio internacional. O que ficou obscurecido pela associação entre redução da pobreza e forte dependência de commodities agrícolas e minerais é que nosso Continente (junto com a África) ocupa hoje os mais baixos patamares das cadeias globais de valor. Sua capacidade de atrair investimentos é dada exatamente por esta pouco virtuosa vantagem comparativa e não por sua capacidade de inserir no mercado mundial produtos com alto valor agregado.
Isso se exprime na maneira como nos relacionamos com o resto do mundo e, sobretudo, com sua parcela mais dinâmica, que se encontra justamente no Leste da Ásia. O Século XXI é marcado pela intensificação dos vínculos entre países em desenvolvimento. No entanto, diz o relatório do Banco Mundial, os “laços da América Latina com outros países do hemisfério Sul é guiado em grande medida por vantagens comparativas baseadas em dotações naturais, muito mais que pela integração manufatureira nas cadeias globais de valor”. Os vultuosos investimentos chineses na América Latina hoje voltam-se fundamentalmente a fortalecer o lugar que já ocupamos nas cadeias globais de valor e concentram-se em setores marcados por baixo grau de inovação tecnológica e ameaçadores impactos socioambientais. Hidrelétricas, fósseis e exploração mineral são suas expressões mais emblemáticas.
Isso significa que a recente redução da pobreza de renda na América Latina não teve lastro num processo de mudanças estruturais da vida econômica, mas, ao contrário, apoiou-se exatamente em coalisões sociais, em comportamentos e em instituições que aprofundaram esta forma inferior de inserção nas cadeias globais de valor. A impressionante desindustrialização do Continente é a principal expressão desta fragilidade. Contrariamente ao que ocorreu no Leste da Ásia, em que o fortalecimento da indústria trouxe consigo não só novas oportunidades de trabalho, mas, sobretudo, abriu caminho à emergência de novos atores sociais e de uma densa rede voltada à inovação, a América Latina vive o drama de ter-se desindustrializado, antes de ter chegado a uma renda que lhe permita transitar a uma economia moderna de serviços.
O economista Dani Rodrik, da Universidade de Princeton, chama este processo de “desindustrialização prematura” e mostra que a América Latina e a África são hoje suas principais vítimas. Os dados de Rodrik convergem com os do Banco Mundial no sentido de que a atrofia industrial latino-americana não só inibe a inovação, mas é também um obstáculo consistente para que o aumento nos ganhos dos mais pobres se origine nas melhorias vindas do próprio mercado de trabalho.
Mas Rodrik mostra que o risco desta desindustrialização prematura não é apenas econômico. É também político. “Historicamente, a industrialização desempenhou o papel fundacional na Europa e nos Estados Unidos, na criação dos Estados modernos e na emergência da democracia política”, diz ele. Uma classe operária numerosa apoiada em sindicatos e partidos com ela identificados é um fator decisivo de participação política, de negociação e esta foi uma das bases dos virtuosos processos que, nos países desenvolvidos, reduziram de forma expressiva as desigualdades e ampliaram direitos desde a IIª Guerra Mundial até o início dos anos 1980.
Ao contrário, elites que têm diante de si segmentos sociais frágeis, desorganizados e cujos interesses comuns são difíceis de definir tendem a comportamentos políticos predatórios. “Elas podem preferir – e têm a habilidade para fazê-lo – dividir e dominar cultivando o populismo e a política da patronagem e colocando grupos que não pertencem às elites uns contra os outros”. Qualquer semelhança com a realidade não parece ser mera coincidência.
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Ricardo Abramovay é Professor Sênior do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo, autor de Beyond the Green Economy (Routledge) e coautor de Lixo Zero. Gestão de Resíduos Sólidos para uma Sociedade mais Próspera (e-book, Planeta Sustentável).
Caro Ricardo,
interessante seu artigo, e muito providencial sua comparação a situação corrente no Brasil.
Contudo, ao ler seu artigo fiquei me perguntando se num cenário de mudança climática (com acordos de metas assinados na semana passada em Paris) o processo de desindustrialização deliberado e forcado das economias do Sul, como a America Latina, largamente patrocinado pelos países do Norte, não poderia vir a seu favor. Afinal, desindustrializacão também implica em redução de CO2. Qual é, portanto, a relação (e os potenciais benefícios) entre desindustrialiacão e climate change?
Sergio Schneider
Caro Sérgio, muito obrigado por seu comentário. Reverter a desindustrialização nos dias de hoje não significa reproduzir modelos predatórios e poluentes de indústria que prevaleceram inclusive no Leste da Ásia. Hoje a China é o país do mundo que mais investe em robôs. Os segmentos mais poluentes e dependentes de exploração de mão-de-obra barata estão sendo afastados rapidamente. Na verdade, mais importante que a indústria é a inovação da qual ela é vetor. O essencial é a capacidade de agregar valor às matérias-primas que temos em abundância. E isso, cada vez menos, vai se fazer intensificando emissões. Ao contrário, a tendência é que as emissões se concentrem nos segmentos de mais baixo valor agregado. Os acordos da COP21 contribuem a um ambiente institucional em que a indústria suja terá cada vez menos lugar. E isso vai muito mais rápido do que habitualmente se imagina.