O poder do Terceiro Setor

Doação no Brasil ainda é tímida e falta transparência

Por Liana Melo | Economia VerdeODS 14 • Publicada em 4 de novembro de 2015 - 01:00 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 15:48

Se fosse um país independente, o chamado Terceiro Setor ocuparia uma posição de destaque entre as maiores economias do mundo. Precisamente o oitavo lugar, atrás de superpotências como os Estados Unidos, China, Japão e Alemanha. O poderio econômico das organizações sem fins lucrativos, incluindo aí as organizações não-governamentais (ONGs), fundações e associações, é calculado em 1,9 trilhão de dólares – uma montanha de dinheiro que supera inclusive o PIB brasileiro.

Assumindo cada vez mais um papel relevante, o Terceiro Setor virou uma espécie de força motriz da economia e da política mundo afora. Um estudo americano da Universidade Johns Hopkins dimensionou o peso desta indústria no PIB dos países: Canadá, 7,3%; Estados Unidos, 7,2%; Japão, 5,2%, Brasil, 5% e França, 4,2%.

Foram nos anos 1990 que o Terceiro Setor ganhou corpo e musculatura. A ascensão das políticas liberais propagadas na Inglaterra, por Margareth Thatcher, e nos Estados Unidos, por Ronald Reagan, desidrataram o estado protetor. As ideologias perderam força com o fim da União Soviética. Certezas absolutas caíram por terra. O que antes era considerado certo passou a ser visto como errado; e o errado, como certo.

No Brasil, foi o processo de abertura democrática que impulsionou o crescimento do Terceiro Setor, quando foi registrada uma expansão de 215% entre 1990 a 2000. O mercado social cresceu sob a ótica de qualquer indicador: número de organização, número de profissionais empregados, volume de recursos financeiros.

A puberdade do Terceiro Setor no Brasil

São 290,7 mil entidades sem fins lucrativos concentradas especialmente na região Sudeste (44,2%) do país. As instituições religiosas (28,5%) dominam o segmento, mas as ONGs estão ramificadas em praticamente todas as áreas de atividades: esportiva, cultural, meio ambiente, saúde, educação, assistência social… A idade média das organizações é 14 anos.

Os dados fazem parte de um estudo do IBGE publicado em 2010, que, desde então, não foi atualizado. Além da instituição, assinaram a pesquisa ‘Fundações Privadas e Associações sem Fins Lucrativos (Fasfil)‘ o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), a Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong) e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife).

À época do estudo eram 2,1 milhões de pessoas trabalhando no setor e a soma dos salários pagos formalmente aos assalariados do Terceiro Setor somaram R$ 46,2 bilhões. Apesar do universo ser multifacetado, o IBGE constatou que a participação das mulheres superava a dos homens. A exemplo do mundo formal do trabalho, a desigualdade entre gêneros também ocorre. A remuneração média mensal dos homens é 3,9 salários mínimos e a das mulheres, de 2,9 salários mínimos.

Com a proliferação das ONGs no país, virar ‘ongueiro’ passou a ser uma alternativa no mercado de trabalho. A profissionalização foi a consequência óbvia, ao se perceber que o tamanho dos problemas e a necessidade de encontrar soluções criativas exigiam uma gestão mais eficiente. Boas intenções e uma multidão de voluntários não mudariam o Brasil.

Falta estímulo à cultura da doação

O americano Lester Salamon, da Universidade Johns Hopkins, chegou a escrever que o mundo está passando por uma “revolução associativa global”. Considerado um dos mais importantes estudiosos do tema, defendeu em um dos seus artigos que “a proliferação desses grupos pode alterar permanentemente a relação entre os Estados e seus cidadãos”. Ele tem razão. O potencial de mudança provocado pelo Terceiro Setor atraí empresas e ricos do mundo todo. Capitalistas de carteiras, como Bill Gates, aderiram à filantropia, ajudando os Estados Unidos a manterem a fama de ser um país onde a cultura da doação é extremamente forte.

A prática da filantropia no Brasil ainda é muito tímida, não temos cultura de doação. Este traço cultural tem uma série de explicações, tais como a percepção do estado como único responsável pelo bom funcionamento da sociedade e a heterogeneidade da população. Como consequência, a expansão da renda e o do PIB nos últimos 20 anos não foram acompanhados por aumento expressivo de doações

Os Estados Unidos são o único país a ranquear o Top 10 do World Giving Index 2014 – o índice mundial de doações que abrange 135 países – nos três tipos de doação cobertos pela pesquisa: ajuda a um estranho (1º ligar), voluntariado (5ª posição) e doações de dinheiro (9º lugar). A pesquisa é divulgada por aqui pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis).

O Brasil ocupa a 90ª posição no ranking global da solidariedade. O secretário-geral do Gife (Grupo de Institutos Fundações e Empresas), Andre Degenszajn, defende a tese de que mudanças regulatórias são necessárias para retirar os obstáculos que emperram a cultura da doação no país. Enquanto em países como os Estados Unidos a doação é livre de tributos; no Brasil, os doadores são obrigados a pagar o ITCMD – imposto que incide sobre heranças. “É uma completa distorção, que não ajuda em nada a estimular a cultura da doação no país”, diz ele.

Apesar dos obstáculos tributários, o Gife entrou na briga para fomentar a cultura da doação entre os brasileiros ricos. A entidade lançou este mês o Fundo BIS e, se cada um dos 132  associados doar 1% do seu orçamento, a soma dos recursos doados chegaria a R$ 30 milhões – o dobro do valor captado pela Bolsa de Valores Socioambientais nos últimos 12 anos, desde que criou seu próprio fundo de investimento.

O Fundo BIS é resultado de um esforço coletivo para ampliar as doações no Brasil. Ele não apoiará projetos de organizações, mas financiará iniciativas que gerem benefícios coletivos para aperfeiçoar o ambiente para as doações no País

O Fundo BIS será gerido pelo banco JPMorgan, que é um dos associados ao Gife no Brasil. Será criado um comitê de investimento que decidirá sobre a alocação dos recursos em projetos de ONGs com forte potencial de transformação social. Anualmente, os investimentos sociais do Gife somam R$ 2,4 bilhões.

O potencial de crescimento do investimento social no país já havia chamado a atenção da BMF&Bovespa. Em 2003, a bolsa construiu uma ponte para aproximar as ONGs e os investidores sociais. Em pouco mais de uma década, a Bolsa de Valores Socioambientais já captou R$ 15,1 milhões para 149 projetos, dos quais 131 deles já concluíram as iniciativas para as quais vinham correndo atrás de recursos.

Autorregulação e transparência 

O mau uso do dinheiro público repassado a variadas organizações não-governamentais, vinculadas ao governo federal, virou, há sete anos, assunto de uma comissão parlamentar de inquéritos – conhecida como CPI das ONGs. O deslize de algumas entidades arranhou a imagem do Terceiro Setor. Criou-se a desconfiança que, sob o manto das causas nobres, trabalhos sociais eram apenas fachada.

Não é justo generalizar, mas também não é possível ignorar o fato. A transparência passou a ser apontada como o principal antídoto para acabar com eventuais desconfianças sobre o uso dos recursos financeiros. O Gife entrou na briga. E, para garantir o principal ativo do Terceiro Setor – a reputação, a entidade está lançando este mês o Painel GIFE de Transparência. A consulta pública  para validação dos indicadores que compõem o portal vai até o próximo dia 13.

O “Mapa das ONGs”, feito em parceria com o Instituto Phi (Philantropia Inteligente), é mais uma das formas de acompanhar de perto a vida de parte do terceiro setor no país. Indicadores de transparência, solidez, gestão e potencial de impacto fazem parte dos critérios de avaliação do Phi, que desenvolveu uma ferramenta com 60 itens. As informações são fornecidas pelas próprias organizações.

 

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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2 comentários “O poder do Terceiro Setor

  1. Leonardo Letelier disse:

    ITCMD = Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doações (não ITCMB como está no texto).
    Pessoalmente acredito que há um efeito “tostines”: a regulamentação é ruim porque doar não faz parte das prioridades da sociedade e a prática não se torna uma prioridade porque a regulamentação existente é ineficiente.

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