Vila de escombros

Moradores de Bento Rodrigues não sabem quando nova vila será construída

Por Liana Melo | Economia VerdeODS 14 • Publicada em 28 de outubro de 2016 - 09:28 • Atualizada em 2 de setembro de 2017 - 15:42

Bento Rodrigues. Foto de André Teixeira
Bento Rodrigues. Foto de André Teixeira
Às vésperas de um ano do acidente da Samarco, as marcas da destruição ainda estão presentes em Bento Rodrigues. Foto de André Teixeira

Placas estrategicamente distribuídas por Bento Rodrigues, o primeiro povoado na rota do vazamento da barragem de Fundão, da Samarco, indicam a iminência do perigo. “Ao ouvir a sirene evacue a área”, diz o letreiro, sob o título segurança, escrito em letras garrafais. Se o aviso estivesse lá no dia 5 de novembro de 2015, quando ocorreu a maior tragédia ambiental do Brasil e a mais relevante do mundo envolvendo rejeitos minerais, talvez o drama que se abateu sobre a vida dos moradores do vilarejo, subdistrito de Mariana, pudesse ter sido evitado.

Mais grave do que a inexistência da placa, é o fato da mineradora Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela anglo-australiana BHP Billiton, sequer ter instalado uma sirene em Bento Rodrigues para avisar sobre o risco de um eventual rompimento da barragem. Às vésperas do primeiro ano da tragédia, as placas, ainda novas, destoam na vila, que teve sua paisagem desfigurada pela avalanche de lama de rejeito, que atingiu 15 metros de altura, e saiu arrastando tudo que havia pela frente.

Placa de segurança alertando sobre risco de acidente foi instalada após o rompimento da barreira de Fundão. Foto de André Teixeira

Não sobrou nada de Bento Rodrigues, que perdeu inclusive seu único patrimônio sacro: a Igreja de São Bento. Só restaram os primeiros degraus de uma escada de madeira e uma parte da pia batismal. Aqui e acolá, se esbarra com vestígios do que foi a vila um dia: um guidão de bicicleta sob um amontoado de galhos, um geladeira se insinuando  debaixo de um telhado desmoronado, um cobertor enlameado no meio da rua. Não bastassem os destroços, as casas ainda foram saqueadas. Levaram tudo: janelas, portas, móveis, louça de banheiro, roupas, panelas….

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Naquele dia, o aposentado João das Graças, o Zezinho, desde os oito anos de idade vivendo em Bento Rodrigues, vestiu uma bermuda colorida e foi com um amigo para uma cachoeira nas redondezas. Ia dar um mergulho, enquanto o amigo ia a trabalho – garimpeiro nas horas vagas, o objetivo era tentar a sorte com uma bateia, um punhado de mercúrio e a esperança de sair de lá com mini pepitas de ouro. Apesar do sol forte, Zezinho decidiu voltar mais cedo para casa.

Zezinho em frente ao que sobrou da sua casa em Bento Rodrigues, com a bermuda em que estava no dia do acidente da Samarco. Foto de André Teixeira

Quando se aproximava de Bento Rodrigues, distante 1,5 quilômetro da cachoeira onde estava, ficou assustado: uma fumaça avermelhada e um barulho ensurdecedor o fez pensar que “o mundo estava acabando”. Correu em disparada. Já perto de casa, Paula, uma vizinha, funcionária da Samarco, chegava de moto e, nervosa, avisava, aos berros, que a barreira de Fundão havia rompido. Zezinho não teve tempo de pegar nada dentro de casa. Perdeu tudo em menos de 15 minutos.

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Era mulher berrando, criança chorando, bicho correndo… A sogra de uma das minhas filhas foi arrastada pela lama. Não morreu, mas, quando foi encontrada, só não estava nua, porque estava vestida de barro

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“Só fiquei com essa bermuda”, conta, mostrando a indumentária, que, desde então, virou uma espécie de amuleto. Ele chora quando reconta o que viu e viveu naquele fatídico 5 de novembro de 2015. “Era mulher berrando, criança chorando, bicho correndo… A sogra de uma das minhas filhas foi arrastada pela lama. Não morreu, mas, quando foi encontrada, só não estava nua, porque estava vestida de barro”. Era uma senhora de 75 anos, teve a sorte de quebrar apenas o fêmur.

Zezinho não perdeu nenhum familiar, entre filhos e netos. Conseguiu ainda ajudar alguns vizinhos e, já que sobreviveu, diz que não vai dar trégua para a Samarco. “Exijo reparação”, diz ele, que, desde então, está morando em uma casa alugada pela empresa em Mariana.

Com uma população estimada em 600 pessoas, que ocupavam cerca de 200 imóveis, Bento Rodrigues virou uma cidade fantasma. Os vestígios do passado recente começam a desaparecer sob o mato, que cresce de forma acelerada com a ajuda do capim braquiária. “Foi a Samarco que mandou plantar essa praga”, diz Zezinho, concluindo que o intuito da empresa é “apagar mais rápido possível a sujeira que fez”.

Samarco em operação em Bento Rodrigues tentando reduzir o volume de lama que acabou com o povoado. Foto de André Teixeira

Desde o século XVIII, Bento Rodrigues é um centro de mineração. É na vila que estão duas das principais barragens da Samarco: Fundão e Santarém. Entre 2010 e 2014, a empresa, segundo informações do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), faturou R$ 13,4 bilhões. A empresa recorreu das multas impetradas contra ela. Não pegou nenhuma. O prejuízo provocado com o acidente tem um valor incalculável, além das 19 mortes que provocou. Procurada, a Samarco não deu entrevista. O risco de uma nova tragédia no período chuvoso não está descartado, já que as obras de contenção estão atrasadas. Em recente operação do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), o órgão constatou que dos  77 pontos vistoriados, 92% não tinham obras em andamento.

Vidas desestabilizadas

O rompimento da barragem de Fundão desestabilizou a vida de 3 milhões de pessoas – população que vive na bacia do Rio Doce, que banha os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. A lama chegou no oceano Atlântico, após percorrer 680 quilômetros rio abaixo. O estrago no distrito de Pedras, nas redondezas de Paracatu de Baixo, foi infinitamente menor do que em Bento Rodrigues. Mas também lá as vítimas têm suas tragédias particulares. Antonio Marcos, que estava construindo um pesque e pague, para incrementar a renda familiar, perdeu 3 toneladas de peixes, entre Tilápia, Tambaqui, Traíra. A lama chegou a uma altura de 1,2 metro dentro da sua casa. Desde então, ele está recebendo um salário mínimo da Samarco, um acréscimo de 20% deste valor por cada filho (ele é pai de três meninos) e uma cesta básica.

Joaquim Arcanjo no quarto que um dia foi do filho André. Foto de André Teixiera

Histórias tristes e dramáticas marcaram para a sempre dos atingidos pelo desastre.  Joaquim Arcanjo, de 73 anos, chegou a pensar que um dos nove filhos tinha morrido. Demorou dois dias para receber a notícia que o caçula tinha se refugiado no mato e, assim, conseguiu sobreviver. “Como ele estava agarrado a geladeira, saiu flutuando no lamaçal. Foi muita sorte, porque não morreu”, lembra Arcanjo, que assistiu a enxurrada de lama levando seu filho embora. De uma casa de 10 cômodos, só sobraram escombros. Sob a lama, é possível avistar os azulejos do que um dia foi um fogão a lenha. Um janela é o pouco que restou do quarto do filho André. O imóvel, que ficava na parte alta da vila, virou uma planície, aterrada pela lama.

Zezinho e Arcanjo preferiam não continuar frequentando Bento Rodrigues. Se pudessem, enterrariam o passado, já que a lama levou tudo embora. Mas é impossível esquecer, ainda mais porque estão morando em casas provisoriamente alugadas pela Samarco. Acostumados a viver da terra, sofrem com o fato de estarem na cidade. A empresa tem por obrigação construir uma nova vila. O terreno já foi comprado, mas a reconstrução de Bento Rodrigues ainda não têm data para começar. O desastre da Samarco é uma tragédia que os reflexos ainda vão se estender por muitos anos. É um drama sem data para terminar.

Liana Melo

Formada em Jornalismo pela Escola de Comunicação da UFRJ. Especializada em Economia e Meio Ambiente, trabalhou nos jornais “Folha de S.Paulo”, “O Globo”, “Jornal do Brasil”, “O Dia” e na revista “IstoÉ”. Ganhou o 5º Prêmio Imprensa Embratel com a série de reportagens “Máfia dos fiscais”, publicada pela “IstoÉ”. Tem MBA em Responsabilidade Social e Terceiro Setor pela Faculdade de Economia da UFRJ. Foi editora do “Blog Verde”, sobre notícias ambientais no jornal “O Globo”, e da revista “Amanhã”, no mesmo jornal – uma publicação semanal sobre sustentabilidade. Atualmente é repórter e editora do Projeto #Colabora.

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