Foi aniversário do meu pai agora em abril, e a saudade me levou ao Riachuelo, bairro aqui no começo da Zona Norte, onde os jovens Cazé e Mariza moravam ao se conhecerem e que, na infância, frequentei para visitar parentes de minha mãe que ainda viviam por lá. Nesta minha primeira visão do subúrbio, iria beber, já na adolescência, a primeira cerveja em público com meu pai. Devia ter uns 15 anos, e ele escapou de uma visita à tia de minha mãe para tomar uma com o Comprido, amigo de infância no bairro. E eu fui atrás. Talvez pelo clima familiar suburbano, ganhei meu próprio copo de cerveja.
Na Rua Vitor Meireles, ficavam a casa dos meus avós paternos, a casa de um dos irmãos da minha avó paterna, a casa dos meus avós maternos, a casa dos tios da minha mãe, a casa do Comprido, e o botequim citado no primeiro parágrafo. Era uma típica rua de classe média do subúrbio de 70, 80 anos atrás: vilas, sobrados, prédios baixos. A Vitor Meireles e outras ruas do bairro começaram,a ser ocupadas por esta classe média com a inauguração da Estação Riachuelo, da Estrada Ferro Pedro II (depois Central do Brasil), em 1869. O trecho até o Méier foi virando um reduto de funcionários públicos civis e militares e empregados mais qualificados do comércio e da indústria, que não tinham renda para morar no valorizado Centro e menos ainda nos bairros nobres de São Cristóvão, Tijuca (ainda Engenho Velho) e Botafogo.
Foi assim que, no Riachuelo da metade do século XX, viviam ali, meu avô Gastão, oficial do Exército, casado com minha avó Bia, filha de funcionário da Rede Ferroviária, e com irmãos também militares, um deles vizinho na mesma Vitor Meireles. E também na rua moravam meu avô Mário Octavio, médico da prefeitura do Distrito Federal, casado com minha avó Elza, funcionária pública, vizinha de porta da casa de dois de seus irmãos: um padre e uma professora. Foi lá que meus pais – ele, filho do militar, ela, do médico – cresceram e se conheceram lá na metade do outro século. Nas primeiras visitas ao Riachuelo, provavelmente lá na virada da década de 60 para de 70, a lembrança deste menino de Laranjeiras registra que a casa da tia Dulce e do tio Chico ainda tinha galinhas no quintal, vizinhas conversavam pela janela e moradores colocavam cadeiras na calçada para botar a conversa em dia.
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Veja o que já enviamosCertamente pensei no Riachuelo, na primeira vez em que ouvi “Gente humilde” – “são casas simples com cadeiras na calçada/e na fachada escrito em cima que é um lar” – mas não devo ter estranhado que os poetas Vinicius de Moraes, carioca da Gávea, criado em Botafogo, e Chico Buarque, carioca de infância paulista, tivessem feitos esses versos suburbanos no fim dos anos 1960 em uma parceria póstuma com o violonista Garoto (Aníbal Augusto Sardinha), morto em 1955. E só nos caminhos desta crônica, descobri que Garoto, nascido na capital paulista, fez a melodia de “Gente humilde”, inspirado nos subúrbios cariocas. E que há uma letra original, jamais gravada, de um anônimo mineiro, amigo de um amigo, que assim começa: “Em um subúrbio afastado da cidade/vive João e a mulher com quem casou/em um casebre onde a felicidade/bateu a porta, foi entrando e lá ficou”.
Tudo isso aprendi na biografia de Garoto, escrita por Jorge Mello, onde cheguei ao andar pelas trilhas do Riachuelo no Google. Na década de 1940, quando meus pais ainda eram crianças, moravam também no bairro os violonistas Luiz Bonfá, futuro parceiro de Tom Jobim, e Badeco (Emanuel Barbosa Furtado), integrante do conjunto Os Cariocas: Garoto, amigo dos dois, também montou casa no subúrbio – primeiro em Brás de Pina, depois no Méier – ao se mudar para Rio e ia visitá-los frequentemente, sempre com o violão debaixo de braço. Não há registro que Garoto, Badeco e Bonfá tenham encontrado com meus ascendentes Valporto, Almeida ou Carnaval nas ruas do Riachuelo, mas, 70 anos depois, o bairro ainda mantém um tanto daquele clima de “Gente humilde”.
Na verdade, não havia vizinhos conversando em cadeiras na calçada quando voltei à Rua Vítor Meireles, no dia de São Jorge. Mas havia um bar com cadeiras na calçada, e a rua estava fechada para uma festa: com direito a imagem do santo e flores em sua homenagem. Os ocupantes das cadeiras garantem que o clima aparentemente pacato da rua no feriado não é rotina e que o Riachuelo sofre com as mesmas mazelas do resto a cidade. Mas a caminhada pela Vitor Meireles revela que ainda há muitas casas, pelo menos duas vilas, e só um prédio muito alto. Não achei fachada com placa dizendo que era um lar, mas ainda há residências com imagens de Jesus ou santos na fachada. As cervejas Lokal e a A Outra disputam a preferência da freguesia com Brahma e Antártica no movimentado botequim, onde a placa informa que “fiado só para maiores de 90 anos acompanhado pelos pais”. O boteco não é aquele mesmo da adolescência, mas o passeio pela vida suburbana, desde o embarque no trem, já serviu para minimizar a saudade do velho e de um tempo em que tudo parecia muito mais simples.
Que maravilha! Caindo dentro desta leitura. Amo saber das memórias da cidade.