Suburbano, graças a Deus!

A resistência cultural e os improvisos na construção dos subúrbios e dos suburbanos

Por Vitor Almeida | ArtigoODS 11 • Publicada em 29 de maio de 2017 - 09:40 • Atualizada em 29 de maio de 2017 - 13:06

A lua brilhando sobre a tradicional Igreja da Penha, um dos símbolos do subúrbio carioca. Foto Yoshuyoshi Chiba/AFP
A lua brilhando sobre a tradicional Igreja da Penha, um dos símbolos do subúrbio carioca. Foto Yoshuyoshi Chiba/AFP
A lua brilhando sobre a tradicional Igreja da Penha, um dos símbolos do subúrbio carioca. Foto: Yoshuyoshi Chiba/AFP

Já se foram mais de cem anos desde as reformas urbanas do prefeito engenheiro Pereira Passos, na primeira década do século XX. Eram postos em prática princípios de higiene sanitária e social para a inserção da então capital federal nos eixos da expansão do capital mundial: o Rio com ares coloniais deveria dar espaço à modernidade, refletida nos amplos boulevards aos moldes parisienses. Não à toa, o exemplo seguido pelo prefeito do Distrito Federal vinha de Paris, do também engenheiro George-Eugéne Haussmann, o Barão Haussmann, que ainda na segunda metade do século XIX projetou uma Paris que impedisse qualquer levante popular e suas barricadas pelas ruas da capital francesa. Passos ganha, então, o apelido de “Haussmann Tropical”.

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Os subúrbios existem por resistir neste senso de autogestão, onde o primeiro a ser chamado quando se está em apuros é o vizinho, para depois se recorrer às autoridades. Da Zona Norte à Zona Oeste é assim. Um lado mais urbanizado, outro mais rural, e o que os une? A resistência e a vida de improvisos

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A gênese dos subúrbios cariocas pode ser enxergada aí. As chácaras, fazendas, canaviais e cafezais nos distritos distantes da cidade foram compradas e loteadas, vendidas a preços muitas vezes acessíveis pelos empreendimentos imobiliários. De forma mecânica, alguns decretos da municipalidade já esboçavam os bairros, como nas isenções dadas pela prefeitura, em 1888, às indústrias que construíssem habitações para seus operários.

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São casas simples com cadeiras na calçada, já dizia o poeta. Foto: Vitor Almeida

O estigma do suburbano vem atrelado ao desmonte do valor dos costumes indesejáveis pelas ascendentes burguesias da época. O trem, que levava aos interiores preferidos por aristocratas para fugirem da cidade, vira sinônimo de transporte da ralé. Hoje ainda se acredita que só é subúrbio o bairro que tenha estação de trem, bairros estes acompanhados de “cruz credos!” quando são citados.

Nesta tentativa de varrer o que era tido como indesejável para longe das vistas e desqualificar seus modos de vida, a cultura suburbana floresce em meio a um caldeirão de costumes e vivências, com pitadas de jongo, samba, fado, santos, orixás, demônios e caboclos. Longe dos solares e dos palacetes do pomposo Botafogo do fim do Império, as casas operárias de outrora, regulares ou irregulares, têm como cenário as ruas, onde as crianças jogam bola, o padeiro buzina, os vizinhos fofocam sentados na calçada em um fim de tarde. O café da tarde não tem croissants, mas tem pão francês com manteiga, mortadela, café com leite ou Coca-Cola. Bairros planejados ou frutos do acaso dão o tom do pulsar nas veias cariocas, que alimentam a alma do indivíduo que busca o improviso no descaso das autoridades públicas, desde sempre. Os subúrbios existem por resistir neste senso de autogestão, onde o primeiro a ser chamado quando se está em apuros é o vizinho, para depois se recorrer às autoridades. Da Zona Norte à Zona Oeste é assim. Um lado mais urbanizado, outro mais rural, e o que os une? A resistência e a vida de improvisos – e não nos esqueçamos da Baixada Fluminense!

Em 2017 ainda, mediunicamente, sentimos a presença do fantasma do pejorativo relacionado aos subúrbios e ao suburbano, mas em paralelo a um interesse crescente por nossa cultura, principalmente a partir da segunda década do século XXI e o apelo pela gentrificação do espaço urbano carioca para receber os eventos internacionais de 2014 e 2016. Nesta esteira, a pauta “subúrbio” surge para os roteiros da grande mídia, ainda com tons exóticos para com os personagens suburbanos.

É importante que se entenda o seguinte: o subúrbio produz. O suburbano é autônomo em relação a isso. Exemplo maior são os camelôs dos trens: discursos originais e prontos para qualquer ocasião e aquisição. O improviso é de nossa natureza, e as soluções rápidas e paliativas esboçam muito bem isso quando decidimos reunir a família num domingo à tarde e temos a famigerada macarronese para completar o cardápio e o chuveirão feito às pressas para amenizar o calor de nossos dias quentes de verão. Acabou a bebida? Rateio! E cada um traz o que pode, desde prato principal até a sobremesa. Empadão de frango e pudim, se possível, não podem faltar.

A imperdível pelada com o gol pequeno, o popular golzinho. Foto: Vitor Almeida

Os livros de História ainda são frágeis quanto às pesquisas sobre esses lados da cidade, por onde muita história se conta, como os casos amorosos de Carlota Joaquina nos arsenais de Realengo, ou as barqueatas de pescadores na Baía de Sepetiba (cujas praias, aliás, têm lama medicinal!). Quem se lembra das pompas da tricentenária Festa da Penha? E a importância da “terra onde brota mel”, vulgo Irajá, para os costumes e economia de nossas terras? A cultura suburbana e o suburbano são pautados por  uma síntese complexa de urbanidades e ruralidades, negritudes e branquitudes, autoridades oficiais e autoridades locais, igrejas e barracões de candomblé.

Para que não mais sejam negligenciadas a gastronomia popular suburbana, seja ela baseada nas batatas de Marechal Hermes, os salgados fritos no trailer do Geleia, em Bangu, ou a junção de uma pastelaria que transmite corrida de cavalo, em Santa Cruz, precisamos implodir o que nos foi dado como legado de um apelo por desqualificar o saber popular e seu modo de conseguir resistir aos apelos cotidianos, principalmente o dos suburbanos.

O Cristo Redentor está de costa para nós. O Rio de Janeiro de vitrine esconde algo mais rico, que é a cultura das ruas, dos trilhos de trem, das roletas de ônibus e das chamadas dos cobradores de vans. E esse é o que chamo de “o Rio Suburbano”.

A entrada do Parque de Madureira. Foto: Luiz Souza/NurPhoto
Vitor Almeida

Morador da Zona Oeste, estudante de História (Feuc – Campo Grande), criador da página “Suburbano da Depressão”, autor do livro Suburbano da Depressão: casos, contos e crônicas (Autografia, 2016).

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2 comentários “Suburbano, graças a Deus!

  1. César Menezes disse:

    Como sempre esse jornal nos remete à realidade que é escondida pelos olhos da sociedade capitalista e burguesa. O cristo está de costas para nós, como se fosse um sinal de que: “fui impedido de ver vocês, mas estou de braços abertos por vocês”. Nosso dilema é continuar lutando contra as forças do mal que todo dia, bate à nossa porta. A fé é a nossa segurança. Abraços aos proprietários do Colabora.

  2. Thayná Ivo disse:

    Que texto incrível!! Daqueles que precisam ser mostrados pro mundo! O subúrbio resiste, produz e tem muita história pra contar além das formas estereotipadas e cômicas que nos mostram. Parabéns Vitor! Fiquei curiosa para ler seu livro depois deste texto.

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