Veias abertas da escravidão

Denúncia de existência de mercados de escravos na Líbia remete ao passado brasileiro e comove organizações sociais e ativistas no país

Por Flávia Oliveira | ODS 8 • Publicada em 2 de dezembro de 2017 - 13:36 • Atualizada em 5 de dezembro de 2017 - 16:58

Centro para detenção de imigrantes na Líbia. Foto Taha Jawashi/AFP
Um homem segura um foto durante um protesto contra as práticas de escravidão na Líbia. Foto Juan Carlos Lucas/NurPhoto
Um homem segura um foto durante um protesto contra as práticas de escravidão na Líbia. Foto Juan Carlos Lucas/NurPhoto

Em pleno novembro da Consciência Negra, o Brasil soube da existência de mercados de escravos na Líbia, país mergulhado no caos institucional desde a queda do líder Muamar Khadafi, em 2011. A denúncia não é nova; há anos organizações da sociedade civil documentam maus-tratos e negociações de migrantes e refugiados em território líbio. Mas uma reportagem da rede americana CNN, iniciada após a divulgação de um vídeo de dois homens, um deles nigeriano, sendo leiloados por US$ 800, causou indignação planeta afora, no mês passado. O secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou-se horrorizado. Por aqui, foi imediata a empatia com a militância afrodescendente, porque escravidão, condições degradantes e violações a direitos constituíram o país.

[g1_quote author_name=”Anistia Internacional Brasil” author_description=”Trecho da carta ao primeiro-ministro da Líbia” author_description_format=”%link%” align=”left” size=”s” style=”solid” template=”01″]

“Estão presas em condições horríveis, sem acesso a alimentos, água ou medicamentos. Além disso, estão expostas aos abusos mais terríveis, incluindo tortura, extorsão, mão-de-obra limitada e abusos sexuais”, denuncia o documento.

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O vídeo varreu as redes sociais e causou comoção. O governo federal não se pronunciou, mas no Congresso Nacional há articulações para aprovar uma moção de repúdio ao escravismo e ao tráfico de pessoas. Na semana passada, duas instituições da sociedade civil agiram para cobrar providências. Quinta-feira, a Anistia Internacional Brasil iniciou ação urgente para enviar a líderes líbios e europeus uma enxurrada de e-mails reivindicando que trabalhem em conjunto para libertar os detidos em campos de retenção, investigar ocorrências de tortura e maus-tratos, revisar políticas de migração, reconhecer formalmente e permitir o trabalho do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados.

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No texto, endereçado ao primeiro-ministro líbio Fayez Al-Sarraj e ao presidente da Comissão Europeia, Jean Claude Juncker, a organização afirma que, atualmente, mais de 20 mil migrantes e pessoas refugiadas estão presas em centros de detenção oficiais dirigidos por milícias e grupos armados ligados ao governo. “Estão presas em condições horríveis, sem acesso a alimentos, água ou medicamentos. Além disso, estão expostas aos abusos mais terríveis, incluindo tortura, extorsão, mão-de-obra limitada e abusos sexuais”, denuncia o documento.

Centro para detenção de imigrantes na Líbia. Foto Taha Jawashi/AFP
Centro para detenção de imigrantes na Líbia. Foto Taha Jawashi/AFP

Terça-feira, Merced Guimarães dos Anjos, presidente do Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN), apelou a Ali Moussa, responsável pelo projeto Rota do Escravo da Unesco. Em carta pede o fim da mercantilização de humanos na Líbia:

“Vimos expressar o nosso mais absoluto horror pelas imagens que viralizaram nas redes sociais, com chocantes registros em vídeo de um escancarado leilão de escravos africanos, ocorrido na Líbia. As cenas são tão impactantes, que trazem os horrores do passado à nossa porta. Não podemos simplesmente ter contato com esta informação e sonegarmos apoio para que algo muito eficaz seja feito para acabar com o tráfico e a mercantilização de seres humanos na Líbia”.

O IPN abriga o Sítio Arqueológico Cemitério dos Pretos Novos, na área portuária do Rio. Ali, entre o fim do século XVIII e as primeiras décadas do XIX, eram enterrados os africanos recém-desembarcados e ainda não comercializados para o trabalho escravo. Daí a expressão pretos novos. O memorial fica na chamada Pequena África carioca, que engloba também o Cais do Valongo, declarado este ano patrimônio mundial pela Unesco. O Centro do Rio foi o mais importante porto de desembarque de africanos do Brasil e do mundo. Os que sobreviviam à travessia atlântica eram vendidos em mercados nas redondezas.

Por isso, as notícias sobre a comercialização de migrantes e refugiados na Líbia assombrou brasileiros. Oriundas da África subsaariana, as vítimas são vendidas por traficantes que supostamente as levariam para a Europa. Na Líbia permanecem em locais fechados, sem água ou alimentação digna. Quando não negociam as pessoas para o trabalho forçado, os mercadores de humanos exigem resgate das famílias para liberar os aprisionados.

À rede britânica BBC, o etíope Harun Ahmed, de 27 anos, contou que foi vendido três vezes por mercadores de escravos. Ele deixou Agarfa, onde nasceu, para tentar a vida no Sudão. Depois de um ano e meio migrou para Líbia, na intenção de cruzar o Mar Mediterrâneo e chegar à Europa. Até chegar à Alemanha, onde vive hoje, Harun sobreviveu a meses de tortura, fome e trabalho pesado. São evidências de que a brutalidade do passado vive em pleno século XXI.

Protesto em Londres contra a escravidão na Líbia. Foto Alberto Pezzali/NurPhoto
Protesto em Londres contra a escravidão na Líbia. Foto Alberto Pezzali/NurPhoto

Flávia Oliveira

Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.

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