ODS 1
Trilha sonora da tristeza política
Na lembrança dos jingles, uma história diferente que o tempo se encarregou de tornar igual demais
A chave da história – uma delas, ao menos – passa num átimo, dura perto de um segundo, pouco além da metade do vídeo de 1min24s. Cena forte, cuidado. Na euforia da pré-vitória no segundo turno de 2002, mera formalidade diante da abissal diferença para o tucano da hora, o clipe de campanha apresentava compreensível estilo triunfal. Naquele quase minuto e meio, desfilava um Brasil ensolarado, de inegociável euforia, para emoldurar o canto arrebatador:
Chegou a hora, Brasil
Que você tanto esperou
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Veja o que já enviamosManda a tristeza embora
Que a mudança começou
Agora vem!
Vem mudar a sua sorte
Nada pode ser mais forte
Que a vontade de mudar
Lelê, lelê, vem!
Ser feliz é seu direito
Solte esse grito no peito
Ninguém vai me segurar
Ôôôô, vem!
O Brasil está unido
E jamais será vencido
Nossa estrela vai brilhar
Vem!
E a estrela da esperança
Do emprego e da mudança
Mora do lado de cá
Agora é Lula
Falta pouco, quase nada
Nossa pátria tão amada
Já não quer mais esperar
Agora é Lula
Por um Brasil diferente
Vem entrar nessa corrente
Aqui é o seu lugar
A internet permite conferir:
Precisamente aos 40 segundos, deitada num leito de hospital (recuperava-se de uma cirurgia), surge Roseana Sarney para, com um sorriso apático, encenar com a mão direita o gesto do “vem” – sem cantar. No reclame, a herdeira de um dos clãs-símbolo do atraso político brasileiro resume a sem-cerimônia da mistura que consolidou o arco generoso de apoios ao virtual presidente eleito. (Pouco antes dela, passa Garotinho com movimento semelhante.) O tempo transformou a geleia numa trágica lição.
O clipe expressa, em sedutora linguagem audiovisual – paga, reza o bafafá judicial que espreita a era petista, pelo dinheiro do mensalão -, o elixir para as três derrotas do torneiro mecânico que sonhava ser presidente. Estava ali o candidato repaginado, “Lulinha Paz e Amor”, sem a barba desgrenhada de 1989, descolado visualmente dos tempos sindicais que causavam pesadelos na elite. Na propaganda eleitoral, Lula reinava grisalho e aparado, embrulhado em ternos impecáveis, sorriso tatuado no rosto. O conteúdo no bojo daquela forma convidava todo mundo – literalmente – para o barco. “Vem!”, convocava o refrão. O atraso veio com tudo.
Eram dias de “A esperança venceu o medo”, o bordão irresistível que varreu a rejeição e levou, afinal, um brasileiro do andar de baixo ao Planalto. No primeiro turno, no jingle mais lindo de todos, a letra espetacular repete a ideia que o tempo, de novo ele, travestiu em ironia: “A favor do que é direito, da decência que restou”, prega um verso. “É o desejo dessa gente, querer um Brasil mais decente”, ratifica outro, mais adiante. Até corações oposicionistas se comoviam:
Não dá pra apagar o sol
Não dá pra parar o tempo
Não dá pra apagar estrelas, que brilham no firmamento
Não dá pra parar um rio, quando ele corre pro mar
Não dá pra calar um Brasil, quando ele quer cantar
Bote essa estrela no peito
Não tenha medo ou pudor
Agora eu quero você, te ver torcendo a favor
A favor do que é direito, da decência que restou
A favor do povo pobre mas nobre, trabalhador
É o desejo dessa gente, querer um Brasil mais decente
Ter direito a esperança, e uma vida diferente
É só você querer, que amanhã assim será
Bote fé e diga Lula, bote fé e diga Lula
Eu quero Lulá
Para citar outra música, quem brincava de princesa, não se acostumou na fantasia. O samba de uma nota só chamado pragmatismo contaminou tudo. Basta observar o primeiro ministério – um time de sonho, com Cristovam Buarque, Marcio Thomaz Bastos, Marina Silva, além de Carlos Lessa (no BNDES) e Luiz Pinguelli Rosa (na Eletrobrás) –, e a depreciação dos quadros, à medida em que a vida real batia cada vez mais forte à porta do poder. No segundo mandato, teve Edison Lobão, filhote do aliado José Sarney (ele mesmo, o pai de Roseana, que ouviu a filha, e veio); Geddel Vieira Lima, do PMDB baiano; e Eunício Oliveira, cearense do mesmo partido, entre muitos outros. Ainda com Lula e depois com Dilma, escancarou-se a porteira para a fina flor do fisiologismo. Por ela entraram PP, PSD, PRB, o baile todo, na versão política de uma roupa bonita que desbotou rápido demais.
Não tem outro jeito, ensina o cotidiano da corte. Durante muitos anos, valeu a pena aturar a proximidade com o repulsivo Brasil de sempre, em nome de mudar a cara de generosos pedaços do país, democratizar o acesso à universidade, bater com força na desigualdade que tristemente nos define como povo. Por isso que dói ver o desfecho melancólico. Tinha tudo para ser diferente, mas acabou ficando igual demais.
Talvez tenha faltado se inspirar, um pouco que fosse, no lindo jingle conceitual, que mora no coração de algumas gerações de eleitores cansados de guerra: o lendário “Lulalá”, que o tempo – de novo e para sempre – transformou em hino à pureza necessária. Porque nem tudo pode ser pragmatismo.
De tão popular, foi exumado do YouTube para ganhar as redes sociais, no Fla-Flu da crise. Chico Buarque (desde sempre) e Lídia Brondi, Betty Faria e Luiz Armando Queiroz, Gilberto Gil e Armando Bogus, José Mayer e Jards Macalé, uma constelação afinada, ensinando algumas lições ao futuro.
Passa o tempo e tanta gente a trabalhar
De repente essa clareza pra votar
Sempre foi sincero de se confiar
Sem medo de ser feliz
Quero ver chegar
Lula lá, brilha uma estrela
Lula lá, cresce a esperança
Lula lá, o Brasil criança
Na alegria de se abraçar
Lula lá, com sinceridade
Lula lá, com toda a certeza pra você
Seu primeiro voto
Pra fazer brilhar nossa estrela
Lula lá, é a gente junto
Lula lá, valeu a espera
Lula lá, meu primeiro voto
Pra fazer brilhar nossa estrela
Tomara que ainda dê tempo para (re)aprender.
(Rápida nota pessoal: você eu não sei, mas eu choro toda vez que ouço esses jingles.)
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Aydano André Motta
Niteroiense, Aydano é jornalista desde 1986. Especializou-se na cobertura de Cidade, em veículos como “Jornal do Brasil”, “O Dia”, “O Globo”, “Veja” e “Istoé”. Comentarista do canal SporTV. Conquistou o Prêmio Esso de Melhor Contribuição à Imprensa em 2012. Pesquisador de carnaval, é autor de “Maravilhosa e soberana – Histórias da Beija-Flor” e “Onze mulheres incríveis do carnaval carioca”, da coleção Cadernos de Samba (Verso Brasil). Escreveu o roteiro do documentário “Mulatas! Um tufão nos quadris”. E-mail: aydanoandre@gmail.com. Escrevam!
Eu tb, Aydano, choro toda vez que leio/ouço esses jingles, e qdo lembro da emoção que eu (pobre, moradora da z. oeste, filha de operário – mecânico da finada Fábrica Bangu) senti qdo o Lula tomou posse no primeiro mandato…