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Qual é o sentido de reclamar do Instagram no Instagram?

Exaustão com vida altamente conectada nos faz cair na ironia de alimentar o próprio algoritmo que criticamos

Artigo • Publicada em 10 de dezembro de 2024 - 07:44 • Atualizada em 10 de dezembro de 2024 - 13:26

Na semana passada, neste buraco negro chamado internet, fui cair no vídeo de uma entrevista do ator Hugh Grant, crush de nove entre dez mulheres que viveram o que eu chamo de Era de Ouro das comédias românticas, os anos 1990, até lá para 2004, pouco depois da virada do milênio. Eu poderia falar aqui sobre como essa idealização do amor romântico, sexista e heteronormativo deixou a gente ruim da cabeça, mas isso é papo para outra hora. Por ora, importa é que o Hugh foi um ícone dessas produções e para além disso, dá check no estereótipo de inglês sarcástico e meio rabugento, dando declarações que eu sempre acho hilárias.

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Em um dos vídeos, ao ser perguntado se tem um “diário da gratidão”, que serviria para anotar todas as coisas pelas quais é agradecido, ele responde a Drew Barrymore, a entrevistadora: “Não seja absurda, eu tenho uma lista de coisas que eu odeio!”. Em outra sequência, ele fala sobre seus inúmeros “pet peeves”, que a gente poderia abrasileirar para “ranços”: mochilas (“tem sempre alguém no metrô com uma na minha cara”, garrafas d’água (“por que todo mundo precisa de uma?”), gente que anda devagar (“insuportável!”), e várias outras coisas absolutamente cotidianas, mas que o tiram do sério e contra as quais ele pragueja de maneira impagável.

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Como todo mundo, eu também tenho uma lista de coisas triviais que me irritam. Barulho de moto. Maçã na maionese sem aviso prévio (visualmente parece uma batata, engana). Banana na farofa também inadvertida (parece ovo). Quando a faca arranha o prato e faz aquele barulho intragável (pior que arranhar lousa). Gente que só conta caso comprido e cheio de pessoas que não conheço. Papo de elevador. Palavras que se juntam para formar outra: “namorido”, “crepioca, “bebemorar”. E recentemente, uma categoria emblemática: a pessoa que usa rede social para reclamar de rede social.

É óbvio que não é uma crítica séria, e nem estou apontando um problema, é mais uma irritaçãozinha, um azedume, um nariz torcido. Uma das vezes em que me bateu foi quando viralizou no Instagram, uns tempos atrás, uma mensagem que vinha escrita numa lousa: “só o livro expulsa o algoritmo das pessoas”. Bombou nos stories de gente de todo o tipo: amigos, colegas de profissão, senhorzinhos do Zapzap, jovens, muita gente mesmo, E eu pensava comigo, toda vez que via: mas COMO essa pessoa acha que essa imagem com ares de superioridade intelectual chegou até ela? Num livro de sebo garimpado?

Coisas que me irritam: barulho de moto, papo de elevador e gente que usa rede social para reclamar de rede social. Foto Yoshinobu Goto/Yomiuri via AFP
Coisas que me irritam: barulho de moto, papo de elevador e gente que usa rede social para reclamar de rede social. Foto Yoshinobu Goto/Yomiuri via AFP

Além disso, me dá uma gastura essa coisa de tirar a leitura do seu lugar de algo terrivelmente mundano, humano, e que dá prazer para cristalizá-la como um bastião da superioridade moral. Entre o grupo de leitores vorazes, há gente absolutamente desprezível. Diz-se que Hitler, o mesmo que queimava livros por toda a Alemanha, era um leitor fanático, por exemplo. Além do mais, depende do que se lê. Ignorância, violência, preconceito e todo tipo de horror podem ser impressos e vendidos em versão de capa dura.

Para além da minha óbvia implicância e chatice, claro que entendo que está todo mundo saturado de rede social, de algoritmo, de anúncio, de estar conectado o tempo todo. Ninguém mais aguenta habitar a internet eternamente, sem a possibilidade de “entrar” e “sair” dela. E justamente porque estamos on-line a cada minuto, é realmente nas redes que vamos nos queixar disso. Mas eu não prometi coerência e nem empatia, estou apenas contando sobre um ranço pessoal dos tempos do cólera digital e, ironicamente me valendo de um meio digital para isso.

Na contramão deste exemplo, no livro “Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida”, Byung-Chul Han, que também escreveu “A sociedade do cansaço” para falar de nós, explora o conceito de “não-coisas”. São elementos que dominam a contemporaneidade, em oposição às “coisas”, tudo aquilo que é material e tangível, e que moldou nossa cultura e nossos valores por séculos. As “não-coisas” são dados, informações, imagens digitais, algoritmos, junto com outros aspectos intangíveis que invadem o cotidiano, transformando nossas relações com o mundo, com o tempo e com as pessoas. Assim, notificações digitais, e-mails ou imagens em redes sociais, seriam “não-coisas” que não possuem a durabilidade ou a materialidade das “coisas”, como uma cadeira, que tem durabilidade, utilidade e valores simbólicos que podem ser associados a elas.

Passei o último fim de semana rodeada por algumas das pessoas que eu mais amo na vida. E fiquei pensando com meus botões que as melhores relações da vida têm esse poder de transformar “não-coisas” em coisas. Embora possa soar impossível, até eu, que sou rabugenta e cheia de ranços, percebo que o amor e o afeto, tão subjetivos, são capazes de passar por uma alquimia misteriosa e se tornarem completamente tangíveis, visíveis, materializados. “Coisas”. Tem amor que dá para encher um contêiner imenso inteiro, e ainda fica coisa para fora, escorrendo. E ele pode chegar por uma mensagenzinha de WhatsApp ou na concretude de um abraço longo, daqueles de deitar a cabeça no ombrinho alheio. Talvez ele, o amor, na forma que for, seja o algoritmo supremo: quando mais a gente tem e dá, mais a gente vai receber.

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